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Publicado em 21 de julho de 2024 às 14:21
Certa vez, peguei o metrô em Londres e ainda andei um bocado para visitar o túmulo de Karl Marx. Estava com um amigo meu sindicalista, comunista mais ortodoxo que rótulo de “Maizena”. O Cemitério de Highgate, oficialmente chamado de Cemitério de St. James, fica no norte da cidade e se lê no túmulo famoso: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos”, frase que está na última linha do Manifesto Comunista, que ele publicou em 1848. O cemitério também abriga túmulos de gente famosa como o cantor George Michael e uma curiosidade: quase à frente do túmulo do alemão fica a sepultura de Herbert Spencer (1820-1903), um pensador do liberalismo clássico que é a antítese de Karl Marx. >
Máxima ironia capitalista, hoje se paga 4 Libras para visitar o túmulo do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), e o valor cobrado por sepultura é de £ 25 mil (ou US$ 31,7 mil). O local já foi vandalizado duas vezes por ultradireitistas radicais. Karl Marx se mudou para Londres em 1849 e morou na capital britânica até sua morte.>
Vandalizar o túmulo de Marx é um absurdo, pois ele teve um papel importante na história da economia. Surpreendentemente, Marx admirava David Ricardo (um dos maiores economistas clássicos ao lado de Adam Smith), embora Ricardo fosse capitalista. É que Ricardo via um conflito inevitável entre as classes devido ao comércio internacional e, no cerne do marxismo, também havia uma complexa sociedade de classes cujas desigualdades inerentes do capitalismo continham as sementes da sua autodestruição.>
É curioso que a vida de Karl Marx seja o próprio espelho da sua doutrina. Nunca deu certo! Sempre viveu às custas dos outros. Descendente de uma longa linhagem de rabinos de Trier, na Alemanha, Marx nunca se sustentou. Seu abastado amigo Engels, que era um típico burguês e ao mesmo tempo posava de revolucionário, foi quem o bancou por longos períodos de sua vida. Depois disso, em 1863, recebeu duas heranças, a da sua mãe e a do seu amigo e correligionário Wilhelm Wolff, que tratou de torrar comprando uma casa nova, em Londres, com governanta e serventes, enfim, todas as mordomias capitalistas que tanto criticava.>
Foi no final do século XIX que o marxismo viu suas teorias comunistas em ação. O russo foi o primeiro idioma para o qual O Capital foi traduzido. Em 1917, Lenin tomou o poder e então, a Rússia se tornou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em 1949, mais de meio século após a morte de Marx, Mao Tsé-Tung, financiado pelos soviéticos, implantou o comunismo na China. Hoje os regimes econômicos chinês e russo são fortemente voltados ao mercado internacional porém com ditaduras implantadas no Governo.>
No lado ocidental, após sucessivos fracassos seguintes à queda do Muro de Berlim, a doutrina socialista e a esquerda têm buscado, com algum sucesso, um novo discurso capaz de seduzir a classe média. A defesa das liberdades, da liberdade feminina na escolha no aborto, já que as mulheres são donas de seus corpos e seriam as principais afetadas; o acolhimento e defesa da causa gay e a política de gênero.>
Ninguém se dá conta de que esses discursos são lorotas muito mal contadas. Um sistema desprovido de economia de mercado, em que o governo determina tudo, todas essas liberdades são ilusórias, ainda que postas em forma de Lei e inscritas na Constituição.>
Tomemos, por exemplo, a liberdade de imprensa. Se o Governo for o dono de todas as máquinas impressoras, é o Governo que determinará o que deve e o que não deve ser impresso. A liberdade de imprensa desaparece. Não existe Google nem YouTube na China, não existe imprensa livre em Caracas. Esse falso mundo de promessas é fartamente amparado em uma série de mitos sobre o socialismo. Entre eles alguns que eu gostaria de destacar:>
(a) o socialismo coloca o poder na mão do povo: piada, né! O socialismo só existe com a ditadura de um líder militar ou de um partido político. Os líderes socialistas prometeram derrubar ditaduras apenas para substituí-los por seus próprios ditadores marxistas em lugares como a China, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela;>
(b) o socialismo defende os direitos humanos e as liberdades democráticas: é mesmo? Na China maoísta, crianças de até 12 anos estavam sujeitas a penas capitais, mulheres eram forçadas a trabalhar em minas de carvão e trabalhadores podiam ir para a prisão caso se atrasassem. Desde 2003, mais de 15 dissidentes russos desapareceram e as suspeitas recaíram sobre o Kremlin por mortes ou tentativas de assassinato;>
(c) a Escandinávia é um exemplo de país socialista que deu certo: na verdade, os escandinavos têm uma economia de livre mercado que produz bens e serviços que são fortemente taxados pelo governo para assim financiar um amplo Estado de bem-estar social. Empresas como a Volvo, Akzo Nobel, Astra Zeneca, Spotify são símbolos do capitalismo.>
Diz-se por aí nas rodinhas de chope com colegas neoliberais uma frase famosa muito citada: “o melhor governo é o que menos governa”. Eu não concordo. Ao governo cabe o estabelecimento de um sistema jurídico eficaz e fornecer apenas aqueles bens e serviços que o mercado não consegue fornecer de maneira eficaz, como infraestrutura básica (estradas, pontes), defesa nacional e certas formas de educação e saúde pública. Mais nada. Meu amigo e professor da Uefs, Saulo Rocha, discorda. Grande polêmico, bem-preparado e inteligente, para ele a privatização é um crime pois vende “de graça” o “patrimônio do povo brasileiro”.>
Agora aqui se pergunte: que patrimônio de povo brasileiro é esse que fez até 2022 a Petrobras devolver aproximadamente R$ 6 bilhões em recursos desviados por meio dos acordos de colaboração e leniência firmados no âmbito da Lava Jato? Esta quantia inclui valores devolvidos por indivíduos e empresas envolvidos no esquema de corrupção. Patrimônio de quem, cara-pálida?>
Ocorre que, ao dirigir empresas, o governo está subordinado ao mercado. Ao administrar, por exemplo, os correios, os aeroportos, refinarias de petróleo e postos de gasolina, o governo é obrigado a contratar pessoas, comprar matérias-primas e produtos necessários para a operação delas. Ainda que no discurso o governo administre essas instituições utilizando os métodos do sistema econômico livre, na verdade, o resultado, quase sempre, é um déficit. Por quê? Porque não pode demitir os funcionários com tanta facilidade, porque a diretoria é formada por apadrinhados políticos com interesses não republicanos, porque, se aumentar o preço da gasolina ou da energia, aumenta a inflação além da grita geral na imprensa.>
A situação privada é bem diferente. Sua capacidade de agir em um empreendimento deficitário é bem diversa. Se o déficit não for eliminado, o indivíduo vai à falência e a empresa acaba. Já o governo goza de condições diferentes. Pode ir em frente com um déficit, porque tem o poder de impor tributos à população. Acho curioso, fico pasmo, para não dizer coisa pior, quando ouço dos meus amigos professores de administração que é necessário segurar, por exemplo, o preço da gasolina, mesmo sabendo que há uma defasagem de 35% em relação ao mercado mundial, em dólar. Ou seja, estamos admitindo que é bom o governo administrar uma empresa de maneira ineficiente do que faria uma empresa privada, ou seja, nós pagadores de impostos estamos dispostos a bancar a ineficácia administrativa do governo com o nosso próprio e suado dinheiro. Só em 2024, as estatais registraram um prejuízo de R$ 4,2 bi. A gente sabe bem quem vai pagar a conta desse “patrimônio do povo brasileiro”.>
Ah!, houve uma tentativa do governo russo de levar o corpo de Marx para perto da sua estátua em frente ao Teatro Bolshoi, no centro de Moscou. Não houve acordo. Eu acharia um insulto à memória do velho Karl pois, na sua sabedoria, mesmo sendo o pai do comunismo, preferia mil vezes a cerveja dos pubs capitalistas londrinos que tomar vodca na gelada capital socialista soviética. Aliás, Marx jamais pôs os pés em Moscou. Bobo ele não era!>
Jorge Cajazeira é Ph.D. em Administração pela FGV/EAESP e professor da Uefs>