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Da Redação
Publicado em 19 de dezembro de 2021 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Nos países do Norte, mais sisudos e gélidos, há uma tradição de histórias de Natal. Contos e novelas que, publicados às vésperas do nascimento de Cristo, tentam refletir sobre o que é o Natal, confortam, sugerem solidariedade e bondade, trazem algum alento, especialmente aos necessitados.>
A utilidade prática dessas narrativas, muitas das quais não passavam de imitação de obras célebres, proporcionou o surgimento de um outro espécime do gênero: as narrativas ou mesmo poemas que questionavam ou ironizavam o Natal, mas com arte e elegância, sem a gritaria que marca a literatura contemporânea, esquecida de que a Literatura já é uma lição, mesmo quando não pretende ser.>
Um excepcional exemplo daquele primeiro espécime é o sempre reeditado e recorrente “Um conto de Natal” (1843), de Charles Dickens. Aliás, para muitos teóricos este texto “inventou” o Natal. Antes dele, o Natal existia, mas não com a proporção que adquiriu nos anos que o sucederam. Essa novela tem tanto prestígio, que já foi publicada em dezenas de idiomas, virou filme, peça de teatro e rádio, quadrinhos, desenho animado, e um dos personagens de Walt Disney se apossa do nome de seu protagonista: Scrooge (Uncle Scrooge/Tio Patinhas). Sim, é a história de um velho capitalista, avaro e ranzinza!>
Magistralmente bem escrita, e direcionada a qualquer público, é o tipo de obra que não decai, pelo contrario, intensifica-se com o tempo e, sucessivamente, conquista e enriquece mais leitores, se não pelo ponto de vista formal, literário, pelo ângulo do humanismo e do crescimento da alma. Mas, tudo bem, como disse certa vez o poeta Paulo André, “só as pessoas melhoráveis melhoram”. O certo é que o leitor atento haverá de notar, nas páginas de “Um conto de Natal”, o desejo do autor de mudar o mundo, mas não pela imposição, e sim pelo exemplo, devidamente arranjado e sem panfleto. A transformação dos personagens é o propósito, pois é cimento posto e seco que nascer e ser o que se é até o fim é como digerir sem degustar. Os grandes personagens são os que avançam na linha vertical, do conhecimento e da lapidação do caráter.>
Como exemplo de textos que subvertem essa ideia proposta inicialmente por Dickens, sempre refiro duas obras: “Missa do Galo”, de Machado de Assis, que integra o volume de contos intitulado “Páginas recolhidas” (1899), e “Esquecer o Natal”, de John Grisham, uma novelinha mais ou menos recente e que, neste ano de 2021, completa vinte anos desde que veio a público. Comecemos nosso comentário final por ela.>
Ora, como disse no início, nos países do Norte o Natal ganha uma proporção que é como se compensássemos a imanência do frio com toda uma preparação para aquela noite ímpar, que marca o nascimento do Cristo. >
Obviamente que não podemos ser românticos e ignorar que, sob a aura de festa religiosa, existe um amplo comércio, bem como a conveniência da data, que praticamente nos obriga à solidariedade e à bondade. Não sei se em todas as pessoas... É desse talho de consciência que a novela de Grisham vai emanar. O casal de protagonistas, em seu primeiro Natal a sós, pois a filha se encontra no estrangeiro e por lá há de passar o 25 de dezembro, decide “esquecer o Natal”. Ou seja, não vão se preparar, nada de comidas especiais, nem árvore natalina, nem enfeites e luzes na fachada da casa... Em vez disso, eles vão fazer um cruzeiro ao Caribe, vão desfrutar do sol, do mar, de bebidas exóticas e momentos eróticos... A narrativa natalina foi subvertida, mas ainda assim continua natalina. Leia e descubra. Esse pequeno livro impressiona, por conseguir flertar com a tradição e, ao mesmo tempo, trazer-lhe aspectos novos, de nossa época, que se incorporam ao gênero. Nesse aspecto, segue à risca, embora talvez inconscientemente, a orientação de T. S. Eliot, segundo a qual as grandes obras literárias, de qualquer época, tendem, grosso modo, a modernizar a tradição, a reinventar as formas canônicas. Todos os elementos que condensam o gênero e o consagraram estão em “Esquecer o Natal”, mas comparecem ali com um sopro novo, de ar fresco, que o alimenta e lhe confere nova feição.>
Já o conto de Machado de Assis... Esse é até difícil de comentar. Não se parece com nada e apenas toma, de empréstimo, a tradição do gênero. A história é tão simples quanto o é a vida. Noite de Natal... O cenário é o Rio de Janeiro do século XIX, capital do Império. O jovem Nogueira, hóspede dos Menezes, lê à sala, enquanto espera dar a hora da Missa do Galo, na corte, a que pretende assistir em companhia do vizinho. Lá dentro, no silêncio da noite, dormem a senhora da casa, D. Conceição, e sua mãe. O Sr. Menezes foi ao teatro... A leitura é Os três mosqueteiros, de Dumas. Não é um adendo gratuito: obra romântica por excelência, favorece a aventura, o desvario. Passada uma hora, D. Conceição se levanta e vem ter com o rapaz. Conversam, e é dessa conversa que o conto se constrói: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Sob o manto branco do Natal, sempre referido, conforme os minutos correm rumo à meia-noite, uma colcha de não-ditos se costura. É Natal, mas forma-se em volta do casal outra atmosfera, sensual e intrigante. O que vai acontecer?... Quais serão os próximos passos?... Bem, o resto é história, ou melhor, leitura. Se você tem o conto, releia-o. Como só muito raramente ocorre com um relato, este continua brilhante e cheio de significados, mesmo passado tanto tempo e cumpridas tantas leituras. Acabei de relê-lo e o fiz já pela, sei lá, décima vez!? Continuo tão intrigado quanto o próprio personagem, que, mesmo anos depois, quando imerge na escrita daquela noite, talvez para tentar entendê-la, o que obtém é, ainda, enigma, mistério. Continua ele sem respostas, como quase sempre sem respostas é a vida.>
Eis talvez as minhas sugestões de leitura para esse tempo de espera do Natal. De Dickens a Machado de Assis, muitas são as lições. Mas acima da tudo muitas e proveitosas serão as horas de abandono, como aquela em que, à espera da Missa, o rapazote Nogueira pensava tudo compreender, ao passo dos três mosqueteiros, sem saber que a abertura do verdadeiro livro, a existência, viria com D. Conceição em seu roupão “mal apanhado na cintura”.>
MAYRANT GALLO. ESCRITOR E PROFESSOR. AUTOR DE O INÉDITO DE KAFKA (COSACNAIFY, 2003) E TRÊS INFÂNCIAS (CASARÃO DO VERBO, 2011).>