A origem da população negra em Salvador

Três décadas após a fundação da cidade, o padre Anchieta estimava em 3 mil os negros baianos. Fernão Cardim estimou em 4 mil, e Capistrano de Abreu cravou em 20 mil no século XVII

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  • Nelson Cadena

Publicado em 14 de março de 2024 às 05:00

Faz 475 anos que os primeiros negros chegaram em Salvador, um grupo reduzido em relação ao mais de um milhar de homens que aportaram aqui na terrinha, a bordo das naus comandadas por Thomé de Souza, nosso primeiro governador, com status de presidente da República, numa simplista comparação com a estrutura de poder de nossos dias. Desse grupo, a história registrou apenas dois nomes: o grumete Cristovão e o serradeiro Ignácio Dias.

Grumete, aprendiz de marinheiro, executava um serviço de bordo. Naqueles idos, sua tarefa consistia em molhar o convés para evitar que a madeira rachasse, com os excessos de sol; virava a ampulheta que sinalizava a passagem do tempo; prestava outros serviços de organização interna e limpeza. Serradeiro era serviço em terra que consistia em serrar a madeira utilizada na construção da cidade. Cristovão e Ignácio receberam seus salários, como a maioria dos trabalhadores, em mantimentos.

Outros negros vieram na armada de Thomé de Souza, alguns escravos, o resto formando as fileiras da soldadesca, conforme registrou Theodoro Sampaio: “Contavam-se os soldados por 320 ao todo. Gente de diversas nacionalidades, como se costumava naqueles tempos de exércitos de mercenários. Havia entre eles flamengos, castelhanos, italianos, galegos, portugueses. Alguns eram homens de cor”. Mercenários, 475 anos depois, continuam a ser a regra nas guerras pelo mundo afora.

Entre os escravos, o padre Nóbrega registrou a moça que Thomé de Souza trouxe para seu serviço e o religioso informou que um colono pediu ao governador autorização para “casar” com ela, sob promessa de alforriá-la. Foi uma das raríssimas mulheres que vieram na esquadra do governador, uma armada preparada para a guerra, temia-se uma reação dos Tupinambá e, no percurso entre a Europa e a Bahia, um eventual ataque de adversários ou corsários, portanto, empreitada inapropriada para o sexo feminino.

Nóbrega, em carta endereçada a D. João III, datada de 1551, sugeria a vinda de escravos da Guiné para auxiliar nos trabalhos da construção do Colégio dos Jesuítas: “O Colégio da Bahia seja de Vossa Alteza para o favorecer porque está já bem principiado ... e mande ao Governador... mande dar alguns escravos de Guiné à casa para fazerem mantimentos, porque a terra é tão fértil que facilmente se manterão e vestirão muitos meninos, si tiverem alguns escravos que façam roças...”

Os escravos da Guiné vieram. Em 1552, em carta ao Padre Provincial, Nóbrega lamentou: “Já tenho escrito sobre os escravos que se tomaram, dos quais um morreu logo, como morreram outros muitos, que vinham já doentes do mar”. E ponderava da necessidade de mais escravos africanos: Se El-Rei favorecer este e lhe fizer igreja e casas, e mandar dar os escravos... a esta terra, de Guiné, se assim for, virão para mais três ou quatro, além dos de um ano se sustentarão bem meninos e mais, porque, assim... mantém a 30 pessoas...”.

Três décadas após a fundação da cidade, o padre Anchieta estimava em 3 mil os negros baianos, Fernão Cardim estimou em 4 mil e, séculos depois, Capistrano de Abreu cravou em 20 mil o número de africanos e seus descendentes, no início do século XVII. Certamente, que a maioria, escravos rurais, ao serviço dos engenhos de açúcar.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras