O Capeta Carybé virou Doutor na Bahia!

A cerimônia que reconheceu o artista como Doutor Honoris Causa foi monumental como sua arte

Publicado em 6 de agosto de 2023 às 16:00

Homem com Galo
Homem com galo (50 x 30), 1981, Carybé Crédito: Reprodução

O artista que foi “Capeta Carybé” e “Mestre Carybé”, em 1982, recebeu também o título de Doutor pela UFBA. Carybé, nome artístico de Hector Júlio Páride Bernabó, nascido em 1911, em Lanús, subúrbio de Buenos Aires (Argentina), naturalizado brasileiro em 1957, sempre foi um artista baiano.

Parece que a luz daqui, junto com as cores que ressaltavam os tons marcantes de cada coisa, enfeitiçaram, de algum modo, os olhos do dito cujo; e, ele que nunca foi bobo, registrou tudo isso, sugerindo movimentos e ritmos. Muita gente sabe disso. E foi o que concluiu também o Conselho Universitário da UFBA, na época em que era Reitor o Doutor Luiz Fernando Macêdo Costa, que outorgou o título de Doutor Honoris Causa ao artista, no salão nobre da Reitoria, em 27 de julho de 1982, há exatos 41 anos.

Hoje, há outro mecanismo de reconhecimento de saberes e dos conhecimentos - construídos fora dos itinerários universitários e trajetórias acadêmicas - bem importante, que é o Notório Saber. Por este dispositivo se pode, inclusive, dar aulas nas universidades. Os dois tipos de titulação são concedidos para pessoas detentoras de conhecimentos e habilidades mesmo que elas não tenham cursos ou carreiras universitárias. Carybé até frequentou, entre 1927 e 1929, a Escola Nacional de Belas Artes, da UFRJ, mas não concluiu o curso. O que não importa muito, porque o que se assente com tais títulos é que o conhecimento pode ser estabelecido por outros tipos de vínculos, que não só o construído em ambiente acadêmico.

É certo que o homenageado precisa ter se destacado em seu saber, no fazer de seu trabalho ou ter exercido grande influência em determinadas áreas, como nas artes, na literatura, na política, nos direitos humanos e na defesa da paz. Na época da homenagem ao artista, não existia o doutoramento por notório saber e era o Honoris Causa que cumpria papel de manter o contato da universidade com a sociedade, já que Honoris Causa - expressão em latim, usada atualmente como título honorífico - significa literalmente “por causa da honra”.

O interessante disso é que mesmo antes de o título estar na moda, a UFBA já o concedia. Carybé não foi o primeiro doutor conferido por esse instrumento de reconhecimento que reveste de honra saberes e habilidades, que é o Honoris Causa. A primeira homenagem feita pela universidade aconteceu em 1948. Calculando os números, Carybé assume a posição do 62º (sexagésimo segundo) homenageado pela Instituição Federal de Ensino Superior. A solicitação à concessão do título veio da Congregação da Escola de Belas Artes. Consta na Ata de 04 de fevereiro de 1982, que todos votaram pelo reconhecimento de Carybé como artista que se destacou, engrandeceu e inovou nas artes plásticas da Bahia.

Hoje, com diversas possibilidades de reconhecimento doque se sabe e do que faz, essa honraria pode parecer miúda. Ou não, se for levado em conta que nenhuma homenagem supera os homenageados. Carybé é um desses. Segundo se sabe, ele ficou contente para diabo com essa graça! Carybé era um capeta, pelo menos para Jorge Amado, que em livro que faz breve biografia de seu compadre, demonstra que o quadro “Homem com galo” é um autorretrato, onde o artista reconhece isso, ao pintar-se, como capeta.

Jorge Amado conta que: "o homem descalço, de roupa azul, com galo sobre os joelhos, não parece, mas é o pintor Carybé. Nesse personagem, o pintor estaria em seu verdadeiro nome Hector Julio Paride de Barnabó, indivíduo que tem parte com o Cão, sendo, por isso, todo feito de enganos, confusões, histórias absurdas e aparentes contradições. Ao mesmo tempo em que é a pura simplicidade – Como pode ser? ‘Homem com galo’, uma beleza de quadro, trata-se de um autorretrato; se duvida, pergunte ao próprio autor. Quanto ao senhor que aparece ao fundo, com traje de cangaceiro, ele diz que sou eu, seu compadre". O compadrio de Carybé com pessoas ilustres era fato também conhecido por professores da Universidade.

O professor Carlos Eduardo da Rocha, ao abrir as saudações ao homenageado, lembrou que desde que aportou por aqui, em 1950, com uma bolsa da Secretaria de Educação do Estado, conduzida por Anísio Teixeira, no governo de Octávio Mangabeira, para atuar em projeto vinculados às Escolas Parques, Carybé se encontrou com um sonho de Bahia inspirado em fatos históricos, manifestações e atos do próprio povo em um ritmo típico. Para o professor, o ponto alto foi quando o então Capeta Carybé fez o mural para uma das Escolas Parques, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro.

Quem não lembra? Colocar suas mãos e sua inventividade a favor de um ideal de educação para todos e em todos os lugares era também uma forma de ação social, bem ao jeito de alguns artistas. E esse jeito, para Eduardo Rocha, “era a sua expressão de compor peças monumentais que buscavam os olhares dos transeuntes de Salvador, enquanto ele mesmo se esgueirava, olhando de lado, num canto, preferindo contar mentiras sobre a vida comum.” A saudação foi longa, não ficou só nisso.

Eduardo Rocha disse que “Carybé fez da Bahia temática constante em sua obra admirável, em sua motivação maior e em componente de sua linguagem plástica”. O professor recordou também que a vida artística de Carybé, naquela altura, era de intensa atividade na Bahia, no Brasil e além dessas fronteiras, sendo demasiadamente conhecido e divulgado em muitos livros, por seus nanquins, suas aquarelas, esculturas e diversas composições, dominando quase todas as técnicas e gêneros de arte. O próprio artista assume isso por sua voz, quando afirmou que: “Tenho quarenta anos de ofício, durante os quais estudei e trabalhei em quase todas as técnicas conhecidas, da encáustica a fogo à cerâmica; do óleo às resinas sintéticas. Tratei de familiarizar-me com todos os materiais possíveis, para adquirir mais volume de conhecimento técnico que me permitisse uma maior escala de soluções aos problemas plásticos que surgissem”. Um mestre, o Mestre Carybé que de vez em quando dava uns rabos de arraia.

A cerimônia, que reconheceu o artista dos gradis do Campo Grande, da Praça da Piedade e da escultura em homenagem à “Mãe Baiana” como Doutor, foi monumental como sua arte. Os discursos fizeram o inventário dos feitos do artista. Já Carybé falou, por sua vez, do andor que carregava, o da arte. Charola que passou a segurar quando conheceu Mário Cravo e o grupo que renovou as artes visuais na Bahia. O Reitor Doutor Macedo Costa tratou da importância dos feitos e da história, observando o legado deixado ao povo baiano que já reconhecia o direito de Carybé de usar o capelo e a beca que tanto o incomodava e prendia seus movimentos e que a UFBA lhe conferia em traje completo.

Dançou-se a importância da Coleção Recôncavo, como uma de suas primeiras publicações pensando o estado. O painel que esteve por muito tempo no aeroporto Internacional John F. Kennedy de Nova Iorque, hoje, parece que se encontra no aeroporto internacional de Miami, EUA; o Mural dos Orixás, exposto no MAFRO, por comodato; e o livro Iconografias dos Deuses Africanos da Bahia, publicado em 1981, que, com certeza, é sua grande tese. Obras pelas quais o título de Doutor era tão devido, quanto justo. Foi uma festa.

A celebração perdura. É só caminhar pelas ruas de Salvador, como a Chile, visitar os Center’s ou ir ao MAFRO/UFBA, no Pelourinho, que se poderá encontrar com os movimentos e ritmos das peças desse artista diplomado. Salve o Doutor Carybé!

Wal Souza é pesquisadora Associada MAFRO/UFBA, em cooperação técnica entre IFES (UFRJ – UFBA)