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Publicado em 18 de maio de 2025 às 08:38
Eu tinha uma amiga psiquiatra, bipolar como eu, que gostava de ir à minha casa para debater sobre nossas vivências distintas como profissional e paciente. Eu digo “tinha”, no pretérito imperfeito, porque essa garota rompeu a amizade comigo de modo irreconciliável quando viu o comentário que eu fiz em uma discussão que levantou no Instagram sobre a práxis médica brasileira na saúde mental. Eu a ofendi tão completamente que a mulher me bloqueou em tudo. >
Nem me lembro direito o que eu disse sobre sua seara profissional, mas não foram flores: se existe alguém que não deu sorte no passado com psiquiatras, esse cara sou eu. Devo ter escrito para ela o que sempre repito: sete ou oito dos cerca de dez médicos desta categoria que me atenderam deviam incinerar seus diplomas. Eles debocharam do meu padecer, tinham extrema pressa para terminar a consulta, impunham uma distância robótica até mim, me medicaram excessivamente e não queriam conhecer o meu histórico - algo fundamental para se tratar corretamente.>
Hoje, felizmente, recebo do SUS o melhor tratamento que já encontrei. Sou atendida todo mês e gratuitamente no Hospital das Clínicas por estudantes de psiquiatria prestes a concluir o curso de medicina. Gosto do fato de eles serem jovens e emprestarem um frescor necessário à árida e ainda algo antiquada especialidade que escolheram. Mas não penso que é algo geracional. O problema no trato com doenças mentais é o preconceito entranhado em todas as camadas da sociedade, que não aceita conviver no mesmo mundo que loucos como eu.>
Alguns médicos tiveram medo de mim, eu podia sentir. Outros me transmitiram ódio puro, como se tivessem escolhido a carreira não pelo gosto em cuidar de outros seres humanos, ou mesmo pelo sedutor tilintar de moedinhas dos ótimos salários, mas pelo sadismo mais elementar de poder tratar mal e humilhar quem já está na lona. O primeiro psiquiatra que me atendeu era um jovem que parecia um abutre faminto diante da carcaça. Ele me tratou como a um pedaço de carne podre, sem nunca tirar aquele sorriso perverso do rosto.>
Este psiquiatra não se dirigia a mim, só à minha mãe, e não tentava explicar minimamente para nenhuma de nós, que éramos só interrogações, o que estava acontecendo. Eu experimentava minha primeira crise psicótica e não tinha ideia do que me atravessava. Não entendia porque, de repente, eu tinha perdido a minha liberdade. Minha mãe carregava uma expressão de morte no rosto. O homem, em certo ponto, quis me dar uma injeção; naturalmente, eu protestei e ele ameaçou chamar os seguranças para me conter. Aceitei levar, na nádega esquerda, uma dolorida ampola de Haloperidol e desmaiei. Acordei amarrada.>
Eu costumava colocar no altar dois ou três psiquiatras que eu chamava de bons e que cruzaram o meu caminho depois daquele primeiro. Mas, com o tempo, percebi que eles não fizeram mais do que o corriqueiro em outras especialidades médicas: mostrar um mínimo de cortesia e humanidade, olhar nos olhos, dialogar com o paciente e oferecer um lenço em caso de lágrimas. Os psiquiatras não precisam fazer muito para serem considerados salvadores porque ninguém liga para os doentes mentais, especialmente os graves. Via de regra, qualquer tratamento que deixe os pacientes catatônicos serve.>
Se um médico obstetra faz uma cesariana e esquece um pedaço de gaze dentro da mulher que foi operada, o tema vira caso de polícia, estampa os jornais e o conselho de medicina se pronuncia. Porém, se um paciente com ideações suicidas que estava em tratamento constante com o seu psiquiatra tira a própria vida, nada é questionado. Ninguém confere as dosagens dos remédios prescritos. Não há investigação de conduta por parte dos pares. A culpa pela morte do paciente por suicídio não seria do médico, é claro. Mas será que não caberia a ele um mínimo senso de responsabilidade, íntimo que fosse, no desfecho dessa tragédia anunciada? Não parece haver.>
Eu necessito de atendimento psiquiátrico. Não quero, com esse texto, atacar a categoria que viabiliza grande parte da minha qualidade de vida. Mas é preciso humanizar esses médicos com urgência, sobretudo os que atuam na linha de frente no cuidado das patologias mais graves e mais temidas, como a esquizofrenia, a bipolaridade e o transtorno de personalidade borderline. O ideal seria uma tomada de consciência de toda a sociedade, que achincalha e violenta esses pacientes diariamente. Porém, se não conseguimos mudar o mundo por decreto, que melhorem, pelo menos, aqueles que juraram nos cuidar - e têm falhado.>
Joana Rizerio é jornalista e autora de O Diabo Também Manda Flores e Na Pior em Berlim, Londres e Salvador (Noir Editora - www.editoranoir.com.br)>