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Paulo Sales
Publicado em 1 de novembro de 2021 às 05:09
- Atualizado há 2 anos
Há alguns anos, li um bonito livro de Saul Bellow, chamado Ravelstein. Nele, o autor canadense recria no terreno da ficção a amizade que cultivou ao longo de décadas com o filósofo Allan Bloom, o Ravelstein do título. Uma amizade marcada pela sinceridade sem amarras, pelo compartilhamento dos pequenos e grandes prazeres da vida e pela afeição mútua e silenciosa. Assim costumam ser as verdadeiras relações de amizade.>
Bellow e Bloom eram intelectuais de formação sólida, com bagagem cultural suficiente para que suas tertúlias se tornassem atraentes não apenas para os dois, mas também para o leitor. O livro me veio à mente neste final de noite na varanda, enquanto bebo sozinho um agradável tinto duriense ao som dos solos de Coltrane. Talvez porque fosse bom ter agora algum dos meus velhos amigos ao meu lado para conversar, beber e ouvir música, não necessariamente nesta ordem.>
É evidente que nossos diálogos não mereceriam ser reproduzidos em livro, como fez Bellow. Afinal, somos pessoas comuns. No máximo, daria para fazer alguns balanços, tecer comentários autodepreciativos ou lamentar escolhas erradas, sempre com doses fartas de ironia e bom humor. E também projetar o que faremos no futuro, de preferência pensando que estaremos numa varanda ou numa mesa de bar para questioná-lo ou louvá-lo.>
Há algo na amizade que me agrada: a cumplicidade silenciosa de quem conhece intimamente os conflitos do outro, num momento da vida em que a competição mútua, quando existiu, já foi devidamente superada. Aquela compreensão tácita diante de uma crise no casamento ou do tédio causado por anos seguidos numa mesma profissão.>
Só um velho amigo sabe compartilhar aquele saco cheio do mundo ou o desejo irrefreável de rever alguma paixão da juventude. Ou, ainda, nos acompanhar em comentários divertidos, toscos e despretensiosos a respeito de futebol, viagens, mulheres e bebidas. Amigo é pra essas coisas, já dizia a velha canção imortalizada pelo MPB-4.>
A maioria dos meus grandes amigos está longe. Meu amigo mais antigo é justamente o que vive mais distante, embora nos vejamos com alguma freqüência quando ele vem ao Brasil. É curioso como nos entendemos com pequenos silêncios que dizem muito mais do que os substantivos, artigos e verbos expressam.>
Como essa, muitas outras amizades foram e são essenciais na minha formação. Amizades maturadas em salas de aula, viagens e, principalmente, mesas de bar. E que hoje se restringem a longas conversas via zap e encontros esparsos, sobretudo após a quarentena, como é o caso de um velho amigo de São Paulo com quem falo quase todos os dias. Amizades sólidas como rocha. Em Serotonina, Michel Houellebecq discorre sobre elas, com sua amargura peculiar:>
“Os anos de estudante são os únicos felizes da vida, os únicos em que o futuro parece em aberto, em que tudo parece possível, depois disso a vida adulta, a vida profissional, não passa de um lento e progressivo estancamento, com certeza é por isso que as amizades da juventude, aquelas que fazemos durante os anos de estudante e que no fundo são as únicas verdadeiras, nunca sobrevivem à entrada na maturidade, nós sempre evitamos rever os amigos de juventude para não ter que encarar testemunhas das nossas esperanças frustradas nem a evidência do nosso próprio fracasso.”>
Discordo de Houellebecq. Talvez porque tenha tido a felicidade de conservar as melhores amizades da minha juventude. Algumas, claro, se foram ou desbotaram. Mas as que realmente valem a pena, essas permaneceram. Tanto é que gostaria muito de ter aqui ao meu lado um desses maus elementos, para bebermos um bom tinto do Douro e ouvirmos uns belos solos de Coltrane.>