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Paulo Sales
Publicado em 18 de abril de 2022 às 05:07
Está chegando a hora de entregar a crônica da semana e não sei sobre o que escrever. Ou melhor: não tenho inspiração para falar sobre qualquer assunto. Neste momento, sou movido pelo enfado. Havia pensado em abordar a volta da normalidade em um país que ainda está longe de nos oferecer uma vida normal. Não, isso não será possível enquanto estivermos sob o jugo de uma quadrilha que estende seus tentáculos Brasília afora e nos empobrece e enche de desalento.>
Também pensei em escrever sobre a incomunicabilidade que encarcera os personagens de Drive My Car, o bonito filme do japonês Ryûsuke Hamaguchi. São pessoas que prosseguem porque não há outro jeito: tanto o ator e diretor teatral Yûsuke quanto a motorista Misaki. Ambos tentam se adequar ao processo de luto e reagem a ele de diferentes formas, tendo o silêncio como traço comum. São solitários, calados, sorumbáticos.>
Mas outras pessoas escreveram sobre o filme com muito mais propriedade e talento, como João Pereira Coutinho em artigo recente para a Folha. Não acrescentaria nada, porque me falta substrato e sobretudo ânimo. Para usar os versos de Caetano, eu me sinto vazio e ainda assim farto. Hoje é um daqueles dias em que gostaria apenas de me refestelar na água ao pôr do sol.>
É o momento em que mais gosto de estar no mar. Quando o sol se extingue e deixa seus rastros na forma de um colorido que vai do laranja ao lilás e se espalha pela água como tinta. Observo tudo isso maravilhado, enquanto me resguardo do frio ao imergir quase completamente, deixando só a cabeça de fora. Fico ali até a noite desabar sobre o meu mundo e o oceano ficar quase invisível, como se céu e mar fossem um só breu.>
Observo meu sobrinho de pouco mais de um ano, que passa uns dias aqui em casa. Tenho um carinho enorme por ele, por seu jeito sorridente e brincalhão que prolifera alegria por toda a casa. Ele bagunça a minha biblioteca, arranca as fotos do meu mural para brincar com os ímãs, tira tudo do lugar. E eu adoro esse caos devastando a incerta ordem das coisas no pequeno aposento onde escrevo e onde ele dorme com os pais esses dias.>
Lembro de mim mesmo ainda criança, na casa de parentes, quando ficava com meus irmãos e primos em colchões improvisados, num agradável e desordenado clima de calor humano. A inocência sendo conspurcada como um rio limpo que aos poucos recebe esgoto. O despertar do desejo, personificado no corpo ainda impúbere de uma prima. O despertar do medo, nascido das histórias de assombração que escutava de uma tia. O despertar da consciência de quem era.>
O pequeno bebê que corre e brinca pela casa ainda não vive esse processo. É pura inocência. Um pequeno bárbaro ainda sem cultura, religião, linguagem falada (com exceção de raros esboços de palavras) ou qualquer noção de que pertence a um mundo civilizado. Tudo é instinto e uma incipiente percepção da passagem dos dias. Mas, nesse processo, sua memória vai sendo constituída. Quando voltar para casa, ele terá carregado a lembrança dos tios, da prima e de Pu, como chama nosso cachorrinho Pudim.>
Tenho a sorte de ter dois sobrinhos bebês. Ambos são meus afilhados. O outro, que também mora longe, é ainda menor e chegou ontem a Salvador. Espero vê-lo o mais rápido possível. Curioso como o afeto que sentimos por essas miniaturas de pessoas que gostamos vai aos poucos se avolumando até que chega o momento em que os amamos incondicionalmente. Esses tipinhos que há dois anos sequer tinham visto o mundo se tornam o centro de nossas atenções e do nosso amor.>
Pronto, a crônica saiu. Quem sabe um dia, daqui a alguns anos, meus dois sobrinhos a leiam e consigam entender um pouco melhor quem é o tio que os ama e que coloca neles apelidos engraçados, como Zeleléo e Fredex. Esse texto meio sem pé nem cabeça é uma pequena homenagem a eles.>