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Paulo Sales
Publicado em 9 de junho de 2024 às 05:00
A pedido do jornal norte-americano The New York Times, um grupo de renomados fotógrafos e especialistas de várias partes do mundo se reuniu para escolher as 25 imagens que melhor captaram o mundo desde 1955. Ou melhor, as imagens que foram fundamentais para materializar o que conhecemos como era moderna. Apesar de irregular e excessivamente centrado na história norte-americana, o painel reflete com alguma propriedade o período, embora eu tenha me ressentido da ausência de registros que se impregnaram no nosso imaginário, como o da garotinha vietnamita fugindo nua e em desespero de um bombardeio de Napalm. >
Entre tantas imagens captadas por profissionais de currículo notável, a que mais me comoveu é obra de um anônimo. Provavelmente um tipo abjeto, algoz desprezível ou um zeloso cumpridor de ordens, como foi Adolf Eichmann, o oficial nazista que inspirou Hannah Arendt a cunhar a expressão “banalidade do Mal”. A foto em preto e branco que vejo agora à minha frente é de uma garotinha cambojana. Deve ter por volta de oito anos, se tanto. Ela olha fixamente para a câmera, não com pavor, ódio ou rancor, mas com surpreendente tranquilidade, determinação ou, mais provavelmente, absoluto desconhecimento de qual seria o seu destino. >
A garotinha – cujo nome, origem ou filiação se desconhece – está vestida com o que parece ser um modesto vestido com gola arredondada, fechado até o pescoço, e seu cabelo liso e preto forma uma curva assimétrica no lado direito. Ela foi uma das mais de 20 mil pessoas encarceradas na prisão conhecida como campo da morte S-21, que esteve em plena atividade durante os quatro anos de terror (1975 a 1979) promovidos pelo grupo Khmer Vermelho no Camboja. Dos 20 mil prisioneiros – que antes da execução eram submetidos a torturas para confessar sabe-se lá que crimes – sobreviveram doze. Você não leu errado: apenas uma dúzia de seres humanos permaneceu viva.>
Que o século 20 foi um laboratório de atrocidades hoje todos sabemos. Mas, quando nos detemos na individualidade, num alguém específico que de uma hora para outra deixa o oblívio a que foi condenado para invadir o nosso presente, o sentimento de dor e repulsa torna-se lancinante. Sob o comando de Pol Pot, o Khmer Vermelho matou cerca de 2 milhões de pessoas. Gente miserável em sua maioria, camponeses que viviam do cultivo do arroz trabalhando em campos alagados. Gente sem nome, como os mujiques que sucumbiram aos milhões durante o grande expurgo promovido por Stálin em seus anos de glória. Em nome do quê, em nome de quem?>
As imagens reunidas pelo New York Times mostram outras formas de opressão do homem comum pelo Estado. Uma delas, tirada pelo suíço Robert Frank em New Orleans, aborda a segregação racial nos Estados Unidos: um ônibus com brancos nos bancos da frente e negros nos bancos de trás. Outra captura o ato extremo de um monge budista no Vietnã, que em 1963 tocou fogo em si mesmo para protestar contra a perseguição ao budismo pelo governo sul-vietnamita. A foto é do repórter Malcolm Browne. Há, ainda, o clássico registro de Stuart Franklin do cidadão anônimo que se pôs em frente aos tanques chineses durante os protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989.>
Em meio a tantas cenas de brutalidade e ignomínia, desponta a primeira foto da Terra vista do espaço, tirada pelo astronauta William A. Anders em 1968, a bordo da nave Apollo 8. Lá está ela, não ainda um pálido ponto azul – como definiu Carl Sagan anos depois, ao contemplar o registro da sonda Voyager –, mas sim uma linda esfera minguante coberta de nuvens, observada da lua. É provavelmente a mesma imagem que Caetano viu na prisão e que o inspirou a criar os versos de Terra. “Por mais distante o errante navegante, quem jamais te esqueceria?”>
Na lua não se ouvem gritos de desespero, gemidos de dor ou disparos de fuzis AR-15. Que dirá em Netuno ou na Constelação Orion. Enquanto isso, imigrantes ilegais são abandonados à própria sorte em locais ermos da Mauritânia, do Marrocos e da Tunísia, alguns até no deserto do Saara, sem água ou comida. Nossa desdita cotidiana prossegue indiferente ao curso do universo, quando deveria ser o contrário. Muito do que se vê nas fotos do NYT não pertence a um mundo antigo. Ele permanece e se replica, tenebroso e sombrio como um incômodo leitmotiv a soar indefinidamente. Um moto-perpétuo de sofrimento e incompreensão que arrasta multidões como um artista pop. >
No parágrafo inicial do autobiográfico Fala, Memória, Vladimir Nabokov escreveu: “O berço balança sobre um abismo e o senso comum nos diz que nossa existência não é mais que uma breve fenda de luz entre duas eternidades de escuridão”. Permanecemos oscilando sobre esse abismo, ricocheteando o conhecimento adquirido, refratários à ciência, imersos em violência desmedida. Glorificamos nosso fardo, ignorando até mesmo o senso comum, que nos mostra o que é luz e o que é treva. E assim prosseguimos, botes contra a corrente.>