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Hilza Cordeiro
Publicado em 12 de dezembro de 2020 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
O programador Arthur Hardmann, 25, viu a pandemia bater à porta da sua família em junho. A doença já era uma fatal realidade e alcançou pico na Bahia naquele mês, mas tudo aquilo ainda parecia distante, coisa de noticiário, até que atingiu seu avô, de 88 anos. O familiar dele precisou de internamento, está enfrentando sequelas, mas é considerado um caso recuperado. Mais recentemente, pelo menos três colegas de trabalho de Arthur, que estão em home office, testaram positivo para covid-19. Os números da doença seguem crescendo cumulativamente e histórias assim vão ficando cada vez mais frequentes.>
Neste momento em que a Bahia já ultrapassa os 440,5 mil infectados e mais de 8,5 mil mortes — fora as subnotificações — inevitavelmente, os casos vão se aproximando dos círculos afetivos e de conhecidos. Todos os dias, mais gente vai vendo acontecer perto de si. São casos de parentes, amigos, colegas, vizinhos.>
Só no círculo social de Aline Paes*, moradora do bairro Vila Laura, ela tem conhecimento de ao menos sete casos próximos: dois vizinhos, a madrinha de sua mãe, primos distantes, o tio de uma amiga, colegas de trabalho do marido da prima e também da irmã.>
Com tantas ocorrências perto, ela e a irmã, que é profissional de saúde, dizem ter ficado um tanto “paranoicas” com medidas de segurança. Elas precisam se proteger ao máximo para evitar que a doença chegue aos pais delas, que são idosos e têm comorbidades. Esse temor de contrair o vírus passou a rondar ainda mais o apartamento das irmãs, no 2º andar, quando elas ficaram sabendo que uma vizinha do térreo tinha sido infectada. >
“Foi o pior momento porque eu senti chegar muito perto mesmo. Foi o primeiro caso mais próximo que eu soube. A sensação era de que o vírus ia subir pelas paredes e chegar aqui. Ela morreu poucos dias depois, foi muito triste... Dava para ver que esses vizinhos estavam recebendo muitas pessoas em casa. Sempre rola uma crise de ansiedade e medo maior quando chega um caso perto”, conta ela.>
Existe um método chamado Número de Dunbar, criado por um professor da Universidade de Oxford, que mede a quantidade de pessoas com quem você consegue manter relações sociais. Segundo esse conceito, somos capazes de ter relações ótimas com, em média, 150 pessoas. Claro, pode haver gente que só conviva com três pessoas.>
Mas imagine, por exemplo, uma situação em que um infectado vem a falecer e essa informação chega aos seus 150 contatos significativos. Levando o método ao pé da letra, se na Bahia há 8,5 mil óbitos pela doença, isso significa que mais de 1,2 milhão de pessoas já tiveram que lidar com a dor de uma notícia ruim como essa.>
Com Aline, quando veio a informação de que a vizinha do térreo não resistiu, isso logo provocou uma mudança de comportamento. A família dela então se dividiu: os pais foram para a casa dos avós, e ela e a irmã ficaram morando juntas. Desde março, as compras são só por delivery, elas se encarregam de lavar os produtos e entregar aos parentes do grupo de risco. Às vezes, esse medo se mistura com um pouco de humor. “A gente um dia estava saindo para ir na casa de minha avó e ouvimos alguém espirrar na escada do prédio. Esperamos 10 minutos para poder sair e saímos borrifando álcool no ar”, ri ela.>
Campanha política>
A publicitária Flávia Souza, 39, também seguia todos os protocolos de segurança e evitava sair de casa. Ela estava em home office no fim de julho quando veio a notícia do primeiro caso muito próximo: a mãe dela pegou a doença. No mês seguinte, Flávia embarcou numa viagem que teve como resultado outras quatro pessoas infectadas, inclusive ela mesma. Especialista em marketing político, a publicitária precisou deixar o lar seguro para trabalhar nas eleições municipais do Pará. >
“Fiquei assustada com o comportamento da população da cidade que eu fui. As pessoas, além de não usar máscara, se aglomeravam e a campanha aconteceu como se não tivesse uma pandemia. Com o passar dos dias, acabei relaxando e minha postura aqui de Salvador não era a mesma lá”, recorda. >
Flávia seguiu trabalhando até o fim da campanha e, justo no último dia, uma colega sua começou a apresentar os sintomas e testou positivo. Do jeito que as coisas funcionaram, era um sinal claro de que não era o único caso, com certeza mais gente da equipe havia contraído o vírus. Assintomática, Flávia quis saber e viu que também foi infectada. Com o resultado em mãos, correu para avisar dois colegas com quem teve contato e, sim, eles também pegaram. >
“A política no Pará foi irresponsável, até ostentei que na Bahia foi melhor. Eu achei que nunca fosse pegar. Eu meio que tirava onda que, na Bahia, a galera respeita mais a covid-19, por mais que quem está aqui ache que não”, diz ela, que acaba de se recuperar e já teme reinfecção.>
Para Arthur, o vírus poderia ter chegado nele independente de ter um caso próximo ou não. Como ele não teve contato direto com o avô durante os delicados dias de internamento no hospital, o programador pensa que poderia ter contraído a infecção de outras formas, como em uma saída ao supermercado, mas sabe que um caso confirmado dentro de casa é um pontapé para um efeito dominó numa família. “Quando aconteceu com meu avô, fiquei preocupado com ele, mas não cheguei a redobrar os cuidados em casa porque já estávamos nos cuidando muito bem, limpando tudo e saindo só para o que era necessário. Com estes casos mais recentes, [dos colegas que pegaram mesmo estando em trabalho remoto], vejo que pode chegar em todo mundo e todo mundo deve ter receio de pegar”, comenta.>
A aflição da gestante>
Grávida de sete meses na época, a estudante Ilmara Rocha, 26, estava afastada da empresa que trabalhava e o pânico tomou conta dela quando recebeu o diagnóstico de covid-19. Tinha muito receio do que podia acontecer com a filha. Antes de ter testado positivo, já tinha ouvido relatos de que uma vizinha também tinha sido infectada junto com o marido e a filhinha de quatro anos. E que outra vizinha idosa que estava internada acabou falecendo. A cada história de caso próximo que chegava aos seus ouvidos, maior era a aflição no dia a dia da gestante, que passava a pesquisar os efeitos possíveis.>
“Era medo, medo e medo. Não tinha estudo que explicasse a reação no feto. Eu tinha muito medo de perder minha filha, isso do desconhecido amedronta. Quando peguei, no começo me deu um ódio mesmo, sinceramente, porque segui todos os protocolos e ainda assim me contaminei”, conta.>
A bebê de Ilmara nasceu antes do previsto e com um leve probleminha para respirar. Agora com três meses, a criança não apresenta nenhuma sequela, mas esses sustos sucessivos marcaram mãe e filha. Há pouco tempo, o marido de Ilmara deu uma grande flexibilizada e foi a uma festa de paredão no bairro do Arenoso. Desde então, ela proibiu o pai de ver a bebê para não a expor novamente ao risco.>
Uma pesquisa do Datafolha mostrou, em junho, com apenas três meses de pandemia no país, que mais da metade da população brasileira já conhecia alguém que tinha contraído o vírus. No Nordeste, a porcentagem era ainda maior do país: 60% disseram saber de casos. Nove meses depois, não é difícil afirmar que praticamente todo mundo já deve ter relatos semelhantes a esses para contar.>
Até os cientistas>
Há histórias de casos próximos mesmo entre quem está estudando o avanço da pandemia e conhece bem a dinâmica do vírus. O médico e neurocientista Miguel Nicolelis, presidente do comitê científico do Consórcio Nordeste e professor na Universidade de Duke (EUA), conta que até pesquisadores do grupo tiveram a doença. “Então, acho que é difícil acreditar que não exista um brasileiro hoje, e mesmo um cidadão no mundo, que não tenha tido notícia de algum parente ou conhecido que tenha passado por um quadro de covid-19”, crê.>
Essa garantia de que hoje todo mundo tem conhecimento de pelo menos um caso próximo é ainda maior quando se pensa na subnotificação. O professor lembra que a Bahia é o estado com maior número de ocorrências no Nordeste e que, por causa da falta de testes no país, os casos divulgados pelas secretarias de saúde podem estar de quatro a sete vezes abaixo da quantidade real de infectados. >
Ou seja, os 440 mil casos acumulados que existem atualmente podem ser, na verdade, de 1,7 milhão a até 3 milhões. Colocando em perspectiva a população do estado, que é de cerca de 15 milhões de habitantes, este último valor equivale a 20% de baianos infectados. “O que as pessoas devem saber, independente de números, é que nós vivemos numa sociedade hiperconectada, com rádio, televisão, celular, então as notícias sobre infectados certamente vão chegando à população”, ressalta.>
Com o aumento expressivo de casos sendo notado por aqui a partir da segunda semana de novembro, os cientistas projetam que a fatura disso chegará, a qualquer momento, na forma de um crescimento de óbitos. O médico Alexandre Medeiros, membro do comitê e professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFPB), lembra que a pandemia começou maior nos municípios com mais de 100 mil habitantes e que os últimos locais de entrada do vírus foram as cidadezinhas, de menos de 10 mil moradores. Até a última segunda (7), os indicadores mostravam que a incidência de casos está agora justo nestes pequenos locais, que podem ser o novo foco de ocorrência. >
“Vamos ter outra batalha no país, talvez pior do que a primeira. Não é porque a gente tem subnotificação que vamos sentar e não fazer nada. Isso é uma guerra e continua sendo uma guerra. Ninguém pode estar satisfeito com quase 180 mil óbitos. A gente precisa de uma sala de situação e uma força tarefa para discutir uma forma de ganhar essa guerra”, comenta Nicolelis. >
5 fatores que podem fazer a doença se aproximar cada vez mais de você>
Em algum momento, você não conhecia ninguém que tivesse contraído covid-19. E agora, nove meses depois? Veja pontos elencados pelo neurocientista Miguel Nicolelis que podem fazer com que a doença se materialize ainda mais perto de nós:A taxa de transmissão aumentou e os casos voltaram a explodir. No começo deste mês, a taxa teve a maior alta desde julho, quando houve pico na Bahia. Na sexta-feira (11), cada grupo de 100 pessoas contaminadas estava transmitindo a doença para, em média, 122 pessoas, de acordo com dados do Observatório de Síndromes Respiratórias da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O Brasil continua interconectado. As estradas estão fluindo… Lembra que o vírus se espalhou no país primeiro pelas rodovias? Imagina como vai ser esse fim de ano. Uma pesquisa do comitê revelou que as 26 principais rodovias brasileiras foram responsáveis por um terço dos casos no país no primeiro momento da pandemia. Os novos casos estão acontecendo ao mesmo tempo nas capitais e interior. Isso tem potencial de provocar uma saturação dos leitos dedicados à covid-19. O estado já iniciou a reabertura de vagas para dar conta do provável aumento de demanda. As pessoas estão cansadas dos métodos que existem. Manter isolamento social e uso de máscaras não é fácil, mas é a única alternativa. “O instinto de sobrevivência no país tem que ser maior do que o hedonismo”. Falta uma liderança forte nacionalmente para nos guiar e impor que não é aceitável termos quase 180 mil mortos. Por mais que seja uma medida impopular, é preciso que o governo federal tenha uma postura como a da chanceler alemã Angela Merkel, para explicar que o custo de se reunir com a família no Natal desde ano pode ser o de não ter esses mesmos familiares no Natal de 2021. >