Documentário é retrato honesto dos conflitos da família Cravo

Longa mostra a relação conflituosa entre Mário Cravo Júnior, Cravo Neto e Christian Cravo

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  • Roberto Midlej

Publicado em 23 de novembro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: fotos: divulgação

O documentário Cravos, que estreia nesta quinta-feira, pode ser submetido a todo tipo de crítica, mas jamais poderá ser acusado de ser desonesto. Na tela, a família Cravo - que revelou três artistas igualmente talentosos e de gerações diferentes - aparece completamente desnudada. A relação turbulenta entre o escultor Mario Cravo Junior (1923 – 2018) e os fotógrafos Mario Cravo Neto (1947 – 2009) e Christian Cravo (1974) está no eixo central do filme.

Uma briga entre o patriarca e uma de suas filhas, filmada por Cravo Neto, é uma das provas de que a família não se importa em revelar suas imperfeições. O bate-boca entre Mario Cravo Junior e Kadi é de deixar o espectador constrangido. E no fim da briga, Kadi olha para a câmera e pergunta ao irmão: "Mariozinho, você gravou?!". E a pergunta não é em tom de reprovação nem espanto. Ela queria mesmo que o momento ficasse registrado.

O registro estava em uma coleção de fitas que o diretor de Cravos, Marco Del Fiol, encontrou no acervo da família. Ali, ele se fartou com um vasto material, já que Cravo Neto, o Mariozinho, tinha mania de filmar tudo. "Quando vi as cenas de briga, como aquela de Mario Cravo com Kadi, fiquei com vergonha de estar assistindo", revela Marco, que dirigiu o documentário Espaço Além: Marina Abramovic e o Brasil, de 2016. Leoa que aparece no filme, em uma das viagens ao continente africano O diretor diz que, ainda assim, não teve pudor em incluir cenas como aquela. "Acho que o documentarista não pode ser paternalista, não pode 'roubar' o personagem, não pode limpar as arestas dele. Mas precisa ter uma ética e saber até onde vai". 

Marco diz que quando começou a ver o material da família, imaginou que a dinâmica dos Cravos é como a dos Irmãos Karamazov, do romance de Fiodor Dostoievski: "O mais velho é emocional; o do meio é mental e o mais novo é espiritual, tem capacidade de conciliar. E os Karamazov tem uma 'teatralidade ao se colocar na vida. Vi isso nos Cravos também".

As cenas de arquivo são intercaladas com imagens deslumbrantes de três países africanos onde Christian foi trabalhar e Marco o acompanhou: Tanzânia (2012), Uganda (2013) e Namíbia (2014). Christian, que hoje tem 47 anos, é o personagem que conduz o filme. Em seus depoimentos, não poupa o pai nem o avô de críticas. Queixa-se do pai ausente, que não se preocupava em mandar os filhos à escola ou sequer escovar os dentes.

Quando Cravo Neto se separou de Eva Christensen, Christian foi morar na Dinamarca com a mãe e a irmã, Lua, quando tinham em torno de seis anos de idade. O pai, segundo Christian, não dava suporte emocional nem financeiro. Na Dinamarca, conheceu a escassez. Quando vinha para a Bahia, nas férias, percebia o contraste: "Aqui, tinha dinheiro. Nunca fomos ricos, mas minha vó fazia os mimos. O Brasil representava vida para mim e a Dinamarca, escassez", revela o fotógrafo. Hipopótamos também aparecem no documentário O filme, segundo Marco, trata da dificuldade emocional masculina, refletida na relação entre os três artistas. Mas Cravo Júnior, Mariozinho e Christian simbolizam diversos homens. "Os homens têm um analfabetismo emocional uma atrofia emocional, que acaba gerando dor. O filme procura revelar que solo é esse de onde saem esses artistas tão talentosos e tão atormentados".

Na Dinamarca, Christian foi criado pela mãe, que não voltou a se casar. Não teve, portanto, uma figura masculina em casa. "Fui criado num matriarcado. Minha família era dirigida por uma mulher solteira. A figura feminina foi quase um salva-vidas para mim. Quando vim para o Brasil, tive essa imersão no mundo masculino", diz o fotógrafo.

“É hora de repensarmos o papel do homem, seja pai, filho, avô ou marido, dentro das dinâmicas familiares. No processo do filme, houve conflitos com Christian, é natural, afinal nem todo mundo aceita se expor. Mas ele foi corajoso. Ele diz que queria chegar mais perto das dores e do trauma dele", revela o diretor.