O STF precisa de pluralidade

Não é razoável imaginar que somente homens tenham capacidade intelectual ou sejam dignos de confiança

Publicado em 22 de agosto de 2023 às 23:21

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Artigo Crédito: Arte CORREIO

O Supremo Tribunal Federal assumiu um protagonismo inédito no cenário nacional. Algumas causas são extremamente positivas, como o fato de ter sido a principal trincheira de manutenção da nossa democracia. Omissões dos poderes Legislativo e Executivo também obrigaram o judiciário a resolver diversos problemas sociais, jogando nele os holofotes. Por outro lado, a notória incivilidade do antigo chefe do Poder Executivo, associada ao populismo e à irresponsabilidade de procuradores e juiz da Lava- Jato desinformaram e fizeram parcela da sociedade desconfiar e odiar a Corte. Porém também há erros próprios. Especialmente desde a criação da TV Justiça, é evidente que ministros passaram a se preocupar muito com a mídia, seja nos julgamentos, seja falando demais e antecipando decisões fora deles.

Somados todos aqueles fatores, a escolha dos novos integrantes do STF passou a despertar paixões. Estamos prestes a presenciar mais uma delas, com a iminente aposentadoria compulsória da sua atual chefe, Rosa Weber. É verdade que o Presidente da República tem total liberdade para escolher qualquer cidadão com mais de 35 e menos de 70 anos de idade, com notável saber jurídico e reputação ilibada. Atendidos esses requisitos, a escolha é eminentemente política. Mas, ainda que respeitemos as decisões, podemos discutir a política.

Tratando-se de escolha política para um cargo vitalício, é evidente que a confiança no indicado é uma espécie de requisito não escrito. Não falo aqui de subalternidade ou cumplicidade, mas de confiança na visão de mundo e do direito desejadas (desde que compatíveis com os fundamentos e objetivos da República). A escolha por simples relação pessoal, ou pela atuação em apenas um caso específico, não parece segura nem do ponto de vista partidário. Um processo é um recorte, não uma história. O mandato do presidente terminará e as bandeiras da sua legenda permanecerão, assim como o ministro.

O ideal é que o órgão mais importante do Poder Judiciário represente a maior diversidade possível de histórias de vida e trajetórias profissionais. Todos os julgadores devem ser imparciais, mas nenhum ser humano é neutro. Em cada decisão que tomamos na vida, somos influenciados pelos nossos valores e pelos pontos de vistas de onde encaramos os diversos conflitos sociais. Uma análise profunda desses caminhos, em conjunto, pode ser uma forma menos superficial de minimi zar a chance de erros.

Hoje o Supremo é muito pouco diverso. Quando aberta a próxima vaga, restará apenas uma mulher no STF. Não é razoável imaginar que somente homens tenham capacidade intelectual ou sejam dignos de confiança. Pior ainda é lembrar que não há uma pessoa negra na corte. Não estou afirmando que alguém deva ser escolhido apenas por ser mulher ou negro, mas sim que existem inúmeras pessoas com essas características que preencheriam os requisitos e, principalmente, que atualmente poucos ministros sabem o que é sofrer na carne com o machismo e o racismo e isso tem consequências.

Do prisma do percurso profissional, o quadro desejado também não é atendido. Os ministros têm uma restrita origem comum. A maior parte deles se destacou como advogados de grandes empresas ou pessoas ricas. Os oriundos do Poder Judiciário não costumam ter chegado a ele por concurso, mas por terem sido advogados de grandes empresas ou pessoas ricas indicadas para tribunais pela OAB. Os que fizeram carreira pública desde o início costumam ser membros do Ministério Público (como Joaquim Barbosa) ou advogados do Estado. Não há defensores públicos ou advogados populares na corte. Em síntese, o STF costuma ser formado por pessoas que passaram a vida defendendo detentores do poder econômico, defendendo o Estado, julgando ou acusando pobres. Não há representação de pessoas que tiveram por atividade principal interpretar o direito a favor dos pobres.

A análise do último anuário da Justiça no Brasil permite visualizar o efeito das trajetórias pessoais nas decisões. Única oriunda da Justiça do Trabalho, Rosa Weber foi quem mais decidiu a favor dos trabalhadores em 2022, ao lado de Fachin (71% das vezes). Na outra ponta, 8 dos ministros decidiram contra eles em pelo menos 80% dos casos, com destaque para Gilmar Mendes com impressionantes 100%. Na área penal, cuja clientela habitual, inclusive no STF, é formada por negros e pobres, somente 2 ministros concederam mais de 10% dos pedidos de Habeas Corpus (novamente Fachin, 19% e Gilmar Mendes 16%). Fux não concedeu nenhum.

O último ministro nomeado, Cristiano Zanin, ficou famoso por defender com brilhantismo o próprio presidente Lula. Mas a sua trajetória não se resume a um processo. É um homem branco, oriundo da classe média, que habitualmente atuava como advogado de grandes empresas, entre elas as Lojas Americanas. Um dos seus primeiros julgamentos foi o de dois homens acusados de furtar um macaco de carro enferrujado, dois galões velhos vazios e meia garrafa de óleo diesel, avaliados em R$ 100,00. Os itens voltaram para os donos. A defesa argumentou que bens tão inexpressivos, ainda por cima devolvidos, não justificavam a atuação do direito penal (princípio da insignificância). Qualquer pessoa acostumada a ler o direito a partir da visão dos pobres concordaria com a tese. Mas a ótica do novo ministro era outra. O voto foi pela condenação e prisão. Pluralidade não é algo bonitinho. É essencial para uma democracia de verdade.

Rafson Ximenes é defensor público