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Da Redação
Publicado em 17 de setembro de 2022 às 11:00
Sentada na mesa de palestrantes, nem parecia que a doutora Eliane Nunes era uma médica veterana na área de psiquiatria, com doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Sua fala trêmula denunciava a emoção de ver um sonho realizado. Presidente e fundadora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (Sbec), pela primeira vez a médica especialista no tratamento deu início ao primeiro Congresso Brasileiro de Cannabis Sativa, etapa Nordeste, realizado em Salvador até este sábado (17). Na pauta, um projeto que ela ajudou a construir: as mães jardineiras. São mulheres que recebem ajuda e apoio para cultivarem a maconha em casa, para fins medicinais dos seus filhos, boa parte autistas. >
“É a realização de um sonho num solo sagrado de Salvador. A gente está aqui hoje como congresso brasileiro, primeiro congresso de uma entidade sem fins lucrativos de pesquisa sobre cannabis em solo nordestino. Este evento seria em 2020, mas não podemos, por conta da pandemia. Agora, estamos aqui divulgando estudos sobre os benefícios e a luta pela medicina da cannabis”, disse Eliane, que divulgou pela primeira vez, fora de São Paulo, o projeto Mães Jardineiras, fomentado pela Sbec. O movimento foi a união entre Eliane e o Padre Ticão, um ativista religioso que sempre defendeu o uso medicinal da planta, mas morreu em janeiro de 2021. >
“Ele sempre ajudou as mães e mulheres que precisavam fazer uso da cannabis medicinal, mas não tinha condição nem amparo judicial para fazerem o tratamento de seus filhos autistas. Lembro que o Padre Ticão distribuía até sementes para as mães plantarem, não deixava ninguém desamparada”, lembra Eliane. “Ticão é o padroeiro da Farmácia viva de cannabis do Brasil. Informal, mas foi. Um dia, ele me chamou para auxiliar nesta luta, em 2020, quando fundamos o Movimento Mães e Mulheres Jardineiras. Iniciamos o auxílio jurídico, de transformação do medicamento e da plantação. Chegamos, agora, ao ponto de disseminar este movimento, inclusive aqui na Bahia”, completa a médica.>
Atualmente, quase 70 pessoas são beneficiadas pelo movimento, só em São Paulo. A doutora Eliene e outro voluntários de diversas áreas auxiliam desde o diagnóstico da mulher ou da mãe que possui filho em situação que poderia ser tratada com cannabis, até a entrada de habeas corpus para que elas consigam plantar seu próprio medicamente no jardim de casa, além do auxílio na hora de produzir o medicamento. “Por que esta planta medicinal tem que ser proibida? Já está provado os benefícios, o quanto pode ser inclusivo. Eu sei disso desde os tempos de faculdade, quando percebi que o problema é muito mais estrutural e segregador. Infelizmente, a política do governo sobre a cannabis é de repressão, não de cura”, revela a médica.>
A grande luta da doutora Eliane Nunes não é apenas a liberação do uso medicinal da maconha, mas superar a barreira que separa a sociedade conservadora e os benefícios da planta. Ela enxerga a proibição como um aparthaid, na tentativa de afastar a comunidade pobre do uso consciente da cannabis. “As mães jardineiras estão fazendo justiça com as próprias mãos. Imagine quantas pessoas estão presas porque estavam com 100 gramas de maconha. Esta quantidade é suficiente para se fazer um medicamento de canabidiol. Coloque esta quantidade com a família, usando o medicamento para a melhoria da qualidade de vida daquele filho autista, melhorando toda uma estrutura familiar... É uma cadeia social que poderia mudar com apenas uma canetada dos políticos e juristas. Mas não fazem”, comenta. >
Reparação Formada em medicina na Faculdade de Medicina de Botucatu, a cannabis sempre foi objeto de estudos de Eliane, que afirmou ter ajudado no processo de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), no final da década de 80. Especialista em psiquiatria, a doutora se especializou em diversos assuntos que envolvem drogas. Entres seus trabalhos de mestrado e doutorado estão a prostituição e o abuso de droga como um sintoma e Adolescentes que vivem na rua: um estudo sobre a vulnerabilidade ao HIV/aids relacionada à droga, à prostituição e à violência. Ela também é especialista em psicanálise infantil e dependência química, além de diretora-geral da Sbec, entidade sem fins lucrativos pioneira na defesa da substância e criada pela própria médica. >
“Eu trabalhei no sistema manicomial brasileiro e tenho a dimensão do poder da cannabis. Temos famílias que se tornaram funcionais com o tratamento dos filhos autistas com a cannabis, a mãe pode voltar a estudar e ter uma vida social. A cannabis é transformadora e precisa ser liberada e vou lutar sempre por isso. Por que uma planta medicinal tem que ser proibida, se o próprio Jesus usava? Desde os tempos de Moisés, existia o óleo sagrado de cannabis”, revela a doutora, que justifica o atraso da liberação. >
“O interesse da proibição é uma forma de repressão contra a camada marginalizada. É preciso colocar a planta no seu lugar que merece, mas devemos nos perguntar: será para o benefício de quem? empresários internacionais? Já tem muita gente se preparando, pois sabem que o cultivo será um bom negócio. Mas e o povo? Queremos orientar estas mães que precisam do medicamento. Elas precisam plantar e terem o auxílio na manipulação dos medicamentos. Esta é nossa luta”, completa.>
Eliane Nunes agora pretende disseminar o Movimento das Mães e Mulheres Jardineiras na Bahia. No congresso, ela auxiliou pessoas interessadas e promete ampliar a ajuda. "Aqui nasceu o Brasil que conhecemos. É preciso reparar todo este preconceito, confiar na ciência e ajudar estas mães que precisam da cannabis. Vale lembrar que a planta é mulher e mãe também. É preciso liberar e aceitar seus benefícios", completa a médica.>