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Fernanda Santana
Publicado em 25 de setembro de 2022 às 05:00
Dois dias após a campanha eleitoral começar, na segunda semana de agosto, Marcos Rezende, candidato a deputado estadual pelo Psol, percorreu sete encruzilhadas de Salvador para deixar um ebó, oferenda feita a orixás em agradecimento ou pedido. O político vestia branco, com adesivos da candidatura no peito. Por onde passava, ouvia: “Oh, o deputado macumbeiro”. >
Enquanto a quantidade de pastores e pastoras só cresce nas disputas eleitorais - desde 2014, eles estão 500% mais frequentes na Bahia, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) -, ialorixás, babalorixás, ekedis e ogãs, como Marcos, permanecem sem menções diretas nos nomes de urna. Esses religiosos até são candidatos, mas com seus nomes civis e vulneráveis a agressões.>
Desde aquele fim de tarde de agosto, o “deputado macumbeiro” acompanha o candidato. Quem fala para ofender, erra na mira - ele responde "Axé". Pela primeira vez, aos 48 anos, ele tenta uma cadeira na Assembleia Legislativa da Bahia. Rezende é iniciado no candomblé e ogã, protetor de uma casa de culto, o Terreiro Oxumarê. Embora utilize o cargo religioso em peças políticas, seu nome na disputa é o civil. "Sou professor, como boa parte das pessoas me conhece, e não usei ‘professor’. Tinha um peso histórico também: quando se fala em ‘mãe’, ‘pai’, ataques podem ocorrer, e há quem evite votar em gente do candomblé", justifica.. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE) não respondeu à reportagem se recebeu denúncias de intolerância religiosa. Marcos Rezende, candidato a deputado estadual (Foto: Arquivo CORREIO) Até junho deste ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou 39 queixas de intolerância religiosa - sem distinção por religião. “Os orixás sempre foram entidades políticas religiosas. A gente do Candomblé também precisa fazer política, se não, a gente vai sucumbir”, acredita.No estado, 47.069 pessoas disseram seguir religiões de matriz africana, mostrou o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, realizado em 2010. Católicos e evangélicos eram, oficialmente, a maioria. >
Sacerdotes querem 'romper invisibilidade'>
A realidade na Bahia destoa de uma tendência nacional: segundo o jornal Folha de S.Paulo, o Brasil teve, neste ano, recorde no número de candidaturas ligadas a religiões de matriz africana, com menções a funções religiosas ou orixás. Mas a concentração desses candidatos está no Sul e Sudeste do país.>
A existência de políticos com referências religiosas africanas atiçou a curiosidade de um historiador capixaba em 2012. Naquelas eleições, um candidato teve a atenção de Iljorvânio Ribeiro, historiador e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Era Pai Rogério de Iansã.“Foi a primeira candidatura, aqui no Espírito Santo, de uma pessoa que usava o nome religioso do Candomblé”, recorda o pesquisador, que decidiu estudar as relações entre política e a religião dois anos depois a partir da trajetória de três sacerdotes.A chamada "bancada evangélica" estava em ascensão - das eleições de 2010 até 2014, o número de candidatos evangélicos cresceu 45% no Brasil. A imagem do Estado laico, imparcial a questões religiosas, era um decalque da realidade. >
Uma pergunta fundou a pesquisa de Iljorvânio: "Por que candomblecistas resolveram utilizar nomes religiosos?" As respostas vieram. “A primeira razão era romper a invisibilidade. As lideranças se encheram de força, vontade de participar. E a partir disso, mesmo sabendo que não tinham chances de vencer, conseguir mostrar suas caras, suas casas”, recorda. Quando lançou a candidatura a vereadora, em 2008, Tâmara Azevedo, 49, lembra do conselho de marqueteiros: evitar se posicionar como makota - no candomblé, uma zeladora e cuidadora de orixás. Ela não seguiu o pitaco.“Ouvi barbaridades por isso. Programa passando na televisão e vizinho gritando: tá amarrado, em nome de Jesus”. Candidata ao Senado pelo Psol, Tâmara manteve o hábito de se apresentar assim: mulher, mãe, avó, capoeirista e makota. Ela prefere, no entanto, não citar seu cargo religioso no nome de urna. "O papel do político não está restrito a um povo", pontua. Candidata ao Senado relembra agressões (Foto: Leandro Saraiva/ Divulgação) Fundamental>
Mas, no Brasil de hoje, ela entende que há problemas na falta de representação: "É fundamental que pessoas de terreiros participem, sentimos na pele o que é, de verdade, a extrema direita, intolerância".>
A religiosidade, em si, é utilizada como "arma política" no Brasil desde o início da colonização portuguesa, explica Jorge Almeida, professor de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (Ufba).>
Feito um salto histórico, o professor elenca quais são as atuais configurações das ligações entre religião e política partidária. Para entendê-las, é necessário olhar a ascensão das igrejas evangélicas, sem considerar "evangélicos" um bloco único e com destaque para as neopentecostais.“São as maiores igrejas, que viraram fontes de lucro, com estruturas empresariais. O discurso geral une três elementos: dinheiro, saúde e amor. Essa é a teologia da prosperidade, que numa realidade de crise social profunda, ganha força”, explica. A popularização desses templos levou a um crescimento econômico que exigiu "um pé no Estado". Como essa parcela religiosa é a que mais faz oposição a cultos afro-brasileiros, continua Jorge Almeida, "talvez haja mais interesse de pessoas [adeptas de candomblé e umbanda] na política". Mas, para ele, esse movimento terá "mais viés antirracista que religioso".>
Nas postagens em redes socais, Marcos e Tâmara falam aos adeptos de religiões de matriz africana, mas esses discursos não são os principais. "Se os evangélicos perceberam que 'pastor' dá voto, se criou um contraponto de que povo de Axé não elege. É mito. Quem sabe na próxima eleição eu seja ‘Ogã Marcos’?", diz o candidato.>