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Da Redação
Publicado em 16 de outubro de 2022 às 16:00
- Atualizado há 2 anos
Era para ser um passeio escolar de quinta série como qualquer outro. Indaiá iria com os colegas visitar o museu Nina Rodrigues. Ao chegarem, houve um alvoroço da turma ao avistarem cabeças humanas empalhadas. Indaiá foi para o cantinho chorar. “O que foi, querida? Ficou com medo das cabeças?”, perguntou a professora. “Não, é que uma daquelas cabeças é de meu avô”, respondeu a garotinha, neta de Corisco, o Diabo Loiro do cangaço. Seu avô não poderia fazer nada, mas a vovó Dadá, vivinha da Silva, não deixou barato. A mulher mais corajosa do sertão, que sempre andava armada pelas ruas de Salvador, foi tirar satisfação na escola. No outro dia, a neta foi para outro colégio. >
Atualmente com 63 anos, Indaiá lembra, emocionada, de sua saudosa voinha, que parece estar viva em cada canto do pequeno quarto e sala, em Cosme de Farias. A neta de um dos casais mais famosos de cangaceiros foi criada como filha pela avó, vivia com ela e herdou os dotes de Dadá na costura. Indaiá vende bornais floridos dos tempos de cangaceiro, chapéus de couro e roupas genuinamente nordestinas. Qualquer coisa que remete ao cangaço ela faz. Contudo, sua maior herança é guardar as memórias dos casos que Dadá fazia questão de contá-la, a qualquer hora do dia ou da noite. >
“Uma vez, quando a gente morava em Mussurunga, Dadá começou a gemer de dor, em plena madrugada, alegando uma dor de dente. Acordou a casa toda, aos berros. Naquela época não tinha tantas farmácias e fui ao vizinho pedir um remédio para dente. O rapaz prometeu verificar se tinha o medicamento, mas voltou com uma indagação: ‘ô Indaiá, e sua vó tem dente pra doer?’. Quando voltei, minha avó estava se acabando de rir, dizendo que estava sem sono e não ficaria acordada sozinha. ‘senta aqui, estou sem sono e queria alguém pra contar casos do sertão’, disse pra mim. Ah, fiquei retada”, lembra Indaiá Silva dos Santos. >
O cangaço permanece vivo até hoje na vida de Indaiá, que, apesar de desconhecida por boa parte dos soteropolitanos, é referência em estados que cuidam da memória deste período histórico, como Pernambuco, Sergipe e Paraíba. Ela é convidada frequentemente para palestras sobre a história dos avós, principalmente de Dadá, que viveu em Salvador até 1994, quando um câncer tirou a vida da cangaceira que nem as volantes (espécies de policiais da época) tiveram coragem de tirar. Os avós de Indaiá, Corisco e Dadá, nos tempos do cangaço. Sua avó estava grávida na foto Sentar com Indaiá é como viajar no tempo e se deliciar com as histórias que Dadá contava a ela. Enquanto fumava na janela da sala e seu gato Sol pedia carinho aos visitantes, os olhos de Indaiá enchiam de lágrimas com a possibilidade de contar os casos da avó para alguém de Salvador. “Novidade alguém daqui perguntar sobre isso. Nossa cidade não se interessa pelo assunto. Tem tempo, meu filho? É muita coisa para contar”, avisou. “Minha vó me ensinou muita coisa, como ter orgulho de minhas raízes e a história da minha família. Aquele episódio da escola foi a última vez que chorei por conta do preconceito que sofri. Dadá me ensinou a costurar, mas também me fez forte como uma cangaceira”, lembra. >
O jeito alegre de Dadá disfarçava a luta que viveu nos carrascais do sertão. Sempre alegre, Indaiá lembra que sua avó virava uma sussuarana, muito mais brava que Juma, de Pantanal, quando alguém mexia com seus 7 filhos e 34 netos espalhados pelo Brasil. Boa parte foi criada em Salvador, sob a saia da matriarca, que vivia 24 horas por dia com sua pequena pistola guardada entre os seios, justamente para proteger seus rebentos. >
“Ninguém mexia com ela, pois sabia que Dadá só andava armada. Também dormia armada, debaixo do travesseiro. Uma vez, estávamos todos vendo TV na casa dela, à noite, quando ela ouviu um barulho. ‘fiquem todos quietos, abaixem o volume da TV e desliguem as luzes’, disse. Ela foi até a cozinha, pegou a arma, mirou no escuro mesmo e atirou. Colocou todo mundo pra dormir na sala. No outro dia, tinha vestígios de sangue no quintal. Nunca mais ninguém tentou roubar a casa dela”. >
Este jeitinho de Dadá foi herança de anos na caatinga, sempre em estado de alerta e enfrentando os macacos (outro nome para as volantes). Aos 12 anos, foi sequestrada por Corisco. Com 17, teve o primeiro filho, em pleno sertão, enquanto enfrentava os inimigos. Na verdade, os sete filhos foram concebidos no entre os mandacarus e Dadá fazia os próprios partos. “Meu filho, quem iria fazer os partos, se não ela mesma? Se embrenhava no mato e paria em meio a troca de tiros, naquela vida do cangaço que conhecemos. Ela também fez meu parto, na casa dela, na época no Barbalho”, conta Indaiá. Um dos filhos de Dadá, conta a neta, estava atravessado na barriga e se tornou um parto de risco.>
“Minha avó contou que chamou meu avô Corisco e um cabra, pedindo que cada um segurasse uma perna dela e a deixasse de cabeça para baixo. Ela foi mexendo a barriga até meu tio ficar certo para sair”, conta Indaiá. Os filhos, após os partos, eram entregues a parentes para criarem. Dadá só juntou os rebentos após a captura, quando chegou a ser presa em Salvador, mas conseguiu anistia e passou a morar na capital com seus filhos. Casou novamente, mas nunca escondeu, nem do próprio segundo esposo, que seu grande amor era Corisco. Dadá casou com Bartolomeu Serafim Chagas, lembrado com muito carinho por Indaiá. Ele morreu em 1987, vítima de atropelo. Indaiá, sua avó Dadá e o prefeito de Miguel Calmon, na sepultura de Corisco. Os restos mortais foram trazidos para Salvador e enterrados na Quinta dos Lázaros A vida de Dadá em Salvador sempre foi discreta, mas com amizades ilustres, como a de Jorge Amado, que encomendava bornais para presentear amigos na França. “Todo ano Jorge comprava meu material escolar. Sempre ajudou minha avó”, lembra Indaiá, que só faz ressalvas a Glauber Rocha, autor do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, que retrata Corisco. “Minha avó odiava o filme e não queria ver Glauber nem pintado de ouro. Glauber, coitado, ficava procurando Dadá, pedindo perdão e dizendo que a amava”, lembra. “ela ficava pedindo pra Jorge Amado escrever um livro sobre ela. Jorge dizia: ‘Dadá, eu faço romances e ficções, você só gosta de verdades. Você só anda armada e não quero perder sua amizade’”. >
Outro admirador de Dadá era Fidel Castro, que a presenteou com um dos seus casacos revolucionários que até hoje Indaiá guarda. “Minha avó era apaixonada por Fidel. Dizia que, se fosse mais nova, casava com ele, pois lembrava muito Corisco. O olho chega brilhava quando via Fidel”. >
Indaiá conta que sua avó era temida e admirada também no cangaço. Lampião tinha uma admiração incondicional pela cumadi, e sempre dizia para Corisco que “quem tem uma mulher como Dadá não precisa de segurança”. Lampião também amava a costura da esposa do Diabo Loiro. Indaiá conta que Dadá falava com admiração de Virgulino Ferreira, mas tinha pouca prosa com Maria Bonita. “Não conversavam muito. Vovó contava que Maria Bonita era a dondoquinha do bando, ficava mangando das outras mulheres, só vivia toda enfeitada. Minha avó era das armas, do plano tático, foi a primeira a costurar as vestimentas com a cor cáqui, para camuflagem no sertão. Até hoje a polícia usa, né? Antes, o bando só andava de azul. Ela também sugeriu a Corisco que só viajasse à noite. Lampião andava de dia, visado, era um erro que minha avó sempre alertava”. >
O que a neta de Dadá diz tem fundamento e foi objeto de estudo de um dos maiores historiadores do mundo, Eric Hobsbawm. Em seu livro ‘Bandidos’, onde ele fala sobre o banditismo pelo mundo, o cangaço tem uma atenção especial como o primeiro fenômeno em que as mulheres pegaram em armas, literalmente. Sobre Maria Bonita, Hobsbawm retrata como uma mulher que “bordava, costurava, dançava e tinha filhos no meio do mato…”. Entretanto, Eric falou de Dadá de um modo diferente: “Dadá, mulher de Corisco, tinha muito de Lady Macbeth e seria bem capaz de chefiar um bando ela própria”, escreveu. Macbeth é uma personagem de Shakespeare que se torna rainha da Escócia. >
Corisco chefiava seu próprio grupo, sob a benção de Lampião, que sempre mandava o cumpadi escutar a esposa, como ocorreu na chacina da Fazenda de Patos, em Piranhas, Alagoas. Logo após a morte de Lampião e Maria Bonita, Corisco procurou vingança e ficou sabendo de um pessoal que teria entregue Virgulino às volantes. Sem a presença de Dadá, o Diabo Loiro foi até o local e matou seis pessoas da mesma família. Produtos costurados por Indaiá, que aprendeu a fazer apetrechos do cangaço com sua avó Dadá “Minha avó disse que, quando chegou ao local, as cabeças já estavam empilhadas. Ela entrou na casa e percebeu um barulho na cozinha. Quando viu, eram duas crianças escondidas. Mandou os dois correrem, mas Corisco percebeu”, lembra Indaiá. O Diabo Loiro, então, pegou a arma para matar as crianças. “Minha avó pegou a arma dela e ficou de frente para ele, enfrentou o cabra, dizendo a Corisco que teria de matar ela primeiro. Corisco começou a gritar de raiva, mas voltou para a frente da fazenda, onde ficou tomando pinga”, complementa Indaiá, mostrando o copinho que Corisco bebia cachaça, com ela até hoje. >
Anos depois, Indaiá foi com a avó para o programa do Chacrinha. Lá, Dadá reencontrou os meninos que ela salvou. “Eles abraçaram e agradeceram a ela pela vida poupada. Minha vovó chorou tanto… Ela era uma pessoa honrada, todos gostavam dela. Quando ela morreu, em 1994, fiquei sem chão. Até hoje sinto sua falta”, lembra Indaiá, em meio às tragadas no cigarro. “Minha avó sempre foi guerreira e, apesar das coisas que meu avô fez, ela sempre esteve ao lado dele até sua morte. Era o amor da vida dela. Dadá muitas vezes dizia que sentia o cheiro do suor de Corisco no meio da casa. Aquilo me assombrava”, completa.>
Corisco morreu em 1940, após ser surpreendido pela volante de Zé Rufino. Na época, Dadá e Corisco iriam aceitar a anistia proposta pelo Governo Vargas. Com dinheiro e ouro, ambos estavam preparando os últimos detalhes para viverem em Minas Gerais. Corisco já não conseguia atirar, após levar um tiro que, surpreendentemente, atravessou os dois cotovelos e o deixou praticamente sem forças para levantar uma arma. Dadá fazia a guarda do marido, quando foram surpreendidos. “Minha avó viu um barulho no mato e mandou Corisco correr. Ela correu também, mas levou um tiro no pé, que ficou pendurado. Ela mesma, com uma faca, cortou o pé, enquanto Corisco era atingido na barriga”, conta a neta. >
Indaiá lembra que os avós estavam repletos de ouro e dinheiro para recomeçarem a vida, o que despertou a cobiça de Zé Rufino. O tenente fez questão de que ninguém tocasse em Dadá, que precisou amputar a perna na altura do joelho. Corisco acabou enterrado em Miguel Calmon, na Bahia. Menos sua cabeça, que foi para o Nina Rodrigues. Somente na década de 70, Dadá conseguiu enterrar todos os restos mortais do cangaceiro mais temido do sertão, no cemitério Quinta dos Lázaros. Mais tarde, um dos filhos cremou os restos mortais e jogou no mar de Alagoas. Dadá está descansando na Igreja e Convento de Nossa Senhora do Carmo, em Salvador. Três dos seus sete filhos ainda estão vivos, incluindo a mãe de Indaiá, dona Maria Celeste, atualmente com 84 anos, a única que ainda mora em Salvador. Os demais estão em Alagoas. Indaiá segura o copo que pertenceu ao seu avô Corisco Mesmo sem o devido reconhecimento e cuidado histórico, Salvador ainda respira o cangaço, mesmo de forma silenciosa e sem o merecido apoio. Indaiá luta para manter o legado da avó, seja na costura ou nas memórias. Além de uma pensão do governo, Dadá criou todos os filhos e netos com a costura, hoje um dos sustentos da neta, que tem três filhas crescidas. “Eu tinha 10 anos quando aprendi a costurar com ela. Hoje costuro por encomenda, pois minha máquina de costura quebrou e não tenho como consertar. Quando aparece, alugo uma máquina de costura e faço as peças”, disse. Quem puder ajudar ou quiser fazer alguma encomenda, basta seguir Indaiá no Instagram (@indada126). >
Antes de se despedir da prosa com o CORREIO, Indaiá foi até o quarto e trouxe duas relíquias de sua avó Dadá. Uma, um bornal que ela não terminou e até hoje a neta não teve coragem de finalizar. O outro, um rifle Winchester bem velhinho, já sem gatilho, que também pertenceu a cangaceira. Dadá era isso: “Minha avó era a verdadeira mistura da delicadeza e da coragem de uma mulher nordestina”. Salve, Dadá!>
QUEM FOI DADÁ?>
Sérgia Ribeiro da Silva Chagas>
Dadá nasceu em Belém do São Francisco, Pernambuco, no dia 25 de abril de 1915. Aos 12 anos foi sequestrada por Corisco e violentada. Viveu um tempo com a família do bandoleiro, quando resolveu, aos 17, entrar no cangaço, onde casou com Corisco e permaneceu com ele até sua morte, em 1940, quando foi decretado o fim do cangaço. Ela sobreviveu, mas perdeu a perna. Dadá chegou a ser presa em Salvador, mas recebeu anistia e passou a fazer costuras para sobreviver. Se casou novamente com Bartolomeu Chagas, mas não teve filhos com ele. Ela morreu em 1994, em Salvador, vítima de um câncer. >