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Priscila Natividade
Publicado em 19 de abril de 2020 às 13:00
- Atualizado há 2 anos
Como um pente pode mudar a vida de alguém? Nascida e criada na comunidade da Baixa da Égua em uma casinha com mais 15 irmãos, no Engenho Velho da Federação, a trançadeira Jandira Ferreira dos Santos queria mesmo era tirar a família da pobreza. >
Era R$ 1 aqui, R$ 2 ali trançando o cabelo de quem passava pela esquina do Teatro Castro Alves, onde sua mãe, Alaíde, tinha um tabuleiro de acarajé. E haja trança para ela conseguir montar seu salão especializado em penteados para cabelos crespos, mudar de bairro e ainda trazer a família junto.>
A gente vai precisar voltar um pouquinho no tempo. No final da década de 80, um fotógrafo do balé do TCA na época, lançou o desafio: “Mulher, porque você não se inscreve no concurso de tranças e penteados que vai ter no Pelourinho? Fiquei sabendo que o prêmio é um pente de ouro”.>
Ouxe, não deu outra: Jandira topou na hora. “Como é que é isso? Eu vou mudar a vida da minha mãe com esse pente de ouro. Foi só o que passava pela minha cabeça. Quero tirar minha família dessa pobreza, da miséria que nós vivemos e eu vou ganhar esse concurso”, lembra a trançadeira.>
Na humildade E Jandira só pensava nesse pente. Pesquisou tudo e mais um pouco sobre penteados afro, foi em busca da modelo, do figurino e dos adereços, que comprou com o dinheiro que ganhava com as tranças que fazia na rua. Na hora do concurso faltou coragem, mas nada como uma dose de cravinho para resolver.>
“Ali eu me encantei por essa área de tranças e penteados. Ia tirar minha família do buraco. O Pelourinho tomado de gente, a quadra do Olodum cheia e aquelas meninas lindas, maravilhosas, descoladas cada um com um penteado diferente e eu fui chegando para ocupar o meu espaço. Eu estava toda me tremendo, mas esse cravinho me deu uma coragem que eu não sei de onde veio”.>
Não te falei? O penteado vencedor tinha nome, sobrenome, búzios, palha da costa e talisca de bambu. “A modelo entrou dançando linda parecendo uma deusa. Eu fui tirando o lenço do cabelo dela devagarzinho, quando surgiu aquele penteado alto, bonito. Todos os holofotes se viraram para mim. Alubaça significa cebola. Foi o nome que eu dei para ele, um penteado bem pra cima, parecia aqueles caminhos da cebola. Aí ficou assim: Alubaça”.>
O tão esperado pente veio em uma caixa dourada, mas na verdade, era de isopor. Porém, o talento de Jandira, esse sim, era de ouro. Como prêmio, ela ganhou uma cadeira de salão, um espelho e uma bancada. A partir daí, a trançadeira não parou mais. Deu cursos, participou de projetos de valorização da cultura negra e até trançou o cabelo da atriz Jacqueline Bisset, durante as gravações do filme Orquídeas Selvagens (1989), em Salvador.>
“Peguei o pente de ouro com toda humildade e de lá para cá abri meu salão, comprei meu carro, comecei a mudar de vida. Dei casa para algumas pessoas da minha família que não tinham. Amo o que faço. Eu só tenho a agradecer a Deus por tudo que ele tem feito e o que há de fazer na minha vida”.>
Respeite esta história Hoje a trançadeira emprega no seu salão localizado na Garibaldi, dez mulheres - entre elas, parentes e as mais 'chegadas' - que mudaram de vida junto com Jandira. Por conta da pandemia provocada pelo novo coronavírus, o salão está temporariamente fechado, mas ela segue se virando e se superando também. 'Eu não aguentava mais ver tanta violência'. Superei muita coisa para chegar até aqui', afirma Jandira. (Foto: Tiago Caldas/ CORREIO) “Minha equipe tem ainda os ‘achegos’, algumas meninas que eu resgatei aqui, que eram da vida do crime. Dei profissão, trouxe pra perto de mim e hoje é pessoa do bem. Dei dignidade. Isso aí pra mim não tem preço. É o meu orgulho”, pontua.>
Mesmo quando perdeu um sobrinho de 16 anos para a violência, Jandira não desistiu de realizar o sonho de mudar a vida da sua família, sem deixar de empoderar mulheres negras. “Eu não aguentava mais ver tanta violência. Superei muita coisa para chegar até aqui. A gente tem mostrar que o preto é lindo, é bonito. Eu venci”. Um salve para essa rainha.>
PALAVRAS QUE NUNCA SAÍRAM DA CABEÇA DE JANDIRA>
Humildade O pente não era de ouro, mas despertou o talento que Jandira tinha para tranças e penteados.>
Confiança Não duvide do seu sonho. A vontade de tirar a família da pobreza foi o que fez com que a trançadeira conseguisse conquistá-lo.>
Empoderamento No sentido coletivo, empoderar a si e aos outros e colocar as mulheres negras para protagonizarem suas próprias mudanças, seja na aceitação do seu cabelo, na profissão e na sua dignidade também. Esta é a lição que Jandira quer deixar. "Não desista nunca, apesar de qualquer dificuldade", defende a trançadeira.>