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Sob as bençãos dos orixás: saiba como é possível casar num terreiro de candomblé

Os principais requisitos são amor e axé; entenda os ritos da celebração

  • Foto do(a) author(a) Moyses Suzart
  • Moyses Suzart

Publicado em 21 de agosto de 2022 às 16:00

. Crédito: Acervo Pessoal

Um manto sagrado protege o casal do sol e de qualquer pensamento ruim. Ali embaixo, só amor e proteção. Os familiares seguravam sobre as cabeças dos cônjuges o Alá de Oxalá, um pano branco todo bordado do orixá da criação. Enquanto o vento balançava suavemente o Alá e os atabaques davam o tom, Jéssica Campos exibia um sorriso  que denunciava sua satisfação de ter feito a escolha certa. Não se tratava apenas da união sacramentada com seu agora marido, Marco Menezes, mas pelo lugar da cerimônia,  que ela escolheu para celebrar o casamento: em um terreiro de candomblé. 

"Fomos de olhos fechados e coração aberto, pois sempre que íamos às festas da casa [do terreiro] tínhamos uma sensação de paz e pertencimento, tudo o que fazia sentido para celebrar esse momento importante.  A vibração dos atabaques intensifica as sensações de amor, de cuidado e de alegria. Aquela  energia jamais será esquecida”, disse Jéssica, filha de Oxum. Seu marido, Marco, é filho de Oxalufã. Ambos se casaram no candomblé, assim como a atriz Cléo Pires, que ganhou repercussão nacional ao divulgar seu casamento com Leandro D' Lucca sob as bênçãos dos orixás.   Afinal, qualquer pessoa pode se casar no candomblé? Na teoria, bastam duas coisas: amor e axé. 

A primeira lição de todo terreiro é ter suas portas sempre abertas. Não importa raça, crença ou gênero. Se tem fé, ou melhor, axé, vai se casar.  Desenvolvedora de Software nutricionista, Jéssica não é iniciada no candomblé, mesmo assim fez questão de casar no Terreiro Ilê Obá L'okê, sob a regência do babalorixá, antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Vilson Caetano. O primeiro receio do casal foi justamente não saber se poderiam sacramentar o matrimônio sem terem feito antes a iniciação na religião. Acabou sendo uma surpresa também para os convidados.

“No casamento, o mais curioso é que ali estavam pessoas que jamais tinham pensado em um casamento no candomblé ou sequer tinham qualquer ligação ou vivência anterior com a religião. Mas, até hoje,  falam do casamento com alegria”, lembra Marco Menezes, fotógrafo.   Na verdade, a celebração é apenas a fase final do casamento, já sacramentado bem antes da hora do ‘sim’. 

“Houve alguns rituais prévios fechados que participamos no terreiro. Búzios, banhos e bênçãos fizeram parte do dia em que selamos a nossa união no terreiro, mas dias antes da celebração com nossos familiares e amigos”, revela Jéssica. É preciso lembrar que cada terreiro tem um ritual com suas particularidades, mas os ritos que antecedem a celebração são mais importantes que a própria festa.  Dias antes do casamento, o sacerdote vai jogar o obí ou búzios para o casal, vai verificar o desejo dos orixás de cada um, além de seus ancestrais. 

O candomblé tem um laço muito forte com a constituição das famílias. Para as religiões de matriz africana, o casamento será o sacramento da união de duas ancestralidades.  O próprio Pierre Verger, no seu livro Orixás, já falava sobre a relação da religião com o simbolismo familiar. “A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado”, escreveu Verger.  Lucas Felipe e Vavá Rocha se casaram após um aviso de um caboclo. Ambos alegam que o casamento ficou muito mais forte após união no terreiro (Foto: Acervo Pessoal) Os antepassados e os orixás também pedem oferendas para que sejam feitas antes da celebração. Feitos os trabalhos, as revelações dos jogos de búzios ou obí  serão conhecidas no dia do casório. Ou seja: antes do sim dos noivos, há possibilidade dos orixás dizerem não. É raro, mas acontece. 

Ao contrário do catolicismo, onde conhecemos o Santo Antônio como casamenteiro, não existe uma figura única no candomblé que se dedica à união. O orixá do terreiro que está celebrando o casamento será homenageado, além das respectivas entidades de cada um dos noivos. Apenas Oxalá, o pai maior - e seu manto citado no início da reportagem -, é sempre o homenageado. 

“A água, o mel e as ervas também se repetem. Vamos imaginar que estaremos diante de duas pessoas que escolheram fazer parte de um único destino. Por isso,  o jogo [búzio ou obí] vai dizer o caminho. No dia do casamento, revelamos o que os orixás disseram e orientaram.  Pensamos no casamento como uma pessoa que sai de sua casa para se juntar a outras casas”, revela o babalorixá Vilson. 

O casamento de Gayaku Sinay e Vidaxò Odesì fez história. Eles não se casaram dentro do terreiro, mas no lugar mais sagrado das religiões de matriz africana na Bahia: a Pedra de Xangô. Foi o primeiro casal a realizar seu casamento  no local, que ficam em Cajazeiras. Eles se casaram em 2021. 

“A pedra de Xangô é símbolo da Africanidade contida e preservada em Salvador. Se unir na frente da pedra é como casar e ter o corpo vivo de Xangô entre os convidados . É sentir-se em meio às plantas, às pessoas, os animais e, principalmente, em meio aos deuses africanos. É sentir-se abraçados por todos eles!”, disse Gayaku, que é também  sacerdotisa da nação Jeje. 

No Jeje, as divindades possuem entidades diferentes dos orixás da nação Ketu,  que conhecemos. Nesta outra doutrina, são conhecidos como  voduns. Nesta nação, Xangô equivale a Sogbo. Na nação Jeje, os ritos do casamento são semelhantes, mas é preciso ter uma ligação mais forte com a religião.  “Qualquer pessoa pode receber  as bênçãos matrimoniais. No entanto, para que o casamento seja litúrgico e que tenha os  rituais, é preciso que as pessoas sejam iniciadas ou que já tenham alguma  ligação com o terreiro. ‘Todxs xs pessoas’ (sic), independente de orientação ou identidade de gênero, podem se casar no Vodun Kwe To Zo”, conta Gayaku. Ela também celebra casamentos. 

A Umbanda também celebra matrimônios, mas existe uma mistura maior com outras religiões, como o próprio catolicismo e espiritismo, realizando inclusive orações cristãs, como o Pai Nosso.  No candomblé, os cânticos são sempre em Iorubá.  O casamento de Gayaku Sinay e Vidaxò Odesì fez história. Eles selaram a união na Pedra de Xangô, um dos lugares mais sagrados para o candomblé (Foto: Nara Gentil/Arquivo CORREIO) Validade jurídica  O casamento no candomblé também tem efeito civil. Assim como a figura do padre, a bênção do babalorixá também gera anuência jurídica para um  matrimônio. 

A Constituição Federal (1988) diz que “o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei”, não especificando a religião. Afinal, somos um país laico. Ou pelo menos deveríamos ser. Porém, é preciso ter alguns cuidados, pois nem todos os terreiros estão aptos para celebrar o casamento com efeito civil.  

Para realizar uma união apenas civil é preciso um juiz de paz para validar o casório. No religioso, um sacerdote faz este papel, seja  qual for a religião. Nas de matriz africana, é preciso que o terreiro tenha registro civil de pessoa jurídica e o sacerdote esteja devidamente registrado, em cartório, como ministro religioso. 

“Existem duas formas de você se casar num terreiro: o casamento religioso com reconhecimento civil e  o puramente religioso. O próprio terreiro prepara a papelada toda e encaminha para um cartório. O babalorixá pode fazer o casamento, que tem validade jurídica, e entrega o reconhecimento da certidão de casamento na hora”, disse o advogado Pai Ari de Ajagunã, babalorixá e  presidente da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro. Ele realiza casamentos e conta outro detalhe interessante: sabia que os orixás também podem participar  do evento?

“Já celebrei um casamento de uma filha de santo que me marcou muito. No momento que consagrei o matrimônio, Oxum ‘pegou’ a noiva. Foi muito lindo, pois Oxum estava ali, recebendo também a união. Os orixás são imprevisíveis. Pode ser que o culto não tenha estas surpresas, mas acontece”, conta Ari. 

No caso do casal Lucas Felipe e Vavá Rocha, o caboclo chegou antes para dar um aviso. Ambos já moravam juntos, mas nunca pensaram em se casar. Um belo dia, numa festa de terreiro, o caboclo Lage Grande parou os dois e indagou o motivo de tanta demora para casarem. 

“Ficamos tão surpresos com este ‘aviso’ que três meses depois estávamos casados. O candomblé tem ainda o diferencial de  não julgar a diversidade. Não importa seu gênero, todo mundo pode casar, pois é o amor que importa. Posso te dizer que, após o casamento e as bênçãos dos orixás, nossa união ficou bem mais sólida”, disse o ogã e fotógrafo Lucas. 

Os custos do casamento são dos noivos, como comes e bebes, mas a celebração é de graça. É possível também contratar assessorias e cerimoniais para a festa. Procuramos algumas empresas  que promovem casamento, mas  a maioria alegou ser raro pedidos de casamento em terreiros. Porém, alguns especialistas em cerimoniais já estão começando a fazer a festa de candomblé. É o que sinaliza a assessora de casamentos Carolina Peixinho. Só este ano, ela terá três casamentos de matriz africana, suas primeiras na profissão. Uma delas será da cantora Majur.

“Estou super empolgada. O que me deixa comovida é o fato de estarmos trazendo o resgate da história, de descoberta e  com muita diversidade. É de uma riqueza muito grande.  É um cuidado muito especial com tudo, inclusive as cores de cada orixá, por exemplo. Os elementos, as obrigações... A procura está crescendo, sim”, disse. 

Outra lição importante: no candomblé, tudo é eterno enquanto dura. Diferente da esfera cristã, não existe a frase ‘até que a morte os separe’. Enquanto tiver amor e companheirismo, haverá eternidade. “O casamento não é indissolúvel e verdades absolutas não fazem parte de nossa religião.  Pedimos e esperamos que aqueles laços sejam eternos, mas que sejam eternos enquanto durem. Nenhum orixá quer ver seu filho preso a algo que não tem mais amor”, disse pai Vilson Caetano.  Existe um conto em que uma entidade chamada Orunmilá se casa com três esposas para ser feliz: a Paciência, a Discórdia e a Riqueza. O casamento é justamente a harmonia entre estas três ‘noivas’. Tem felicidade, mas  sofrimento também. É como canta  Vinícius de Moraes:  "Pergunte pro seu orixá, o amor só é bom se doer…”

Os ritos da celebração:

Cada terreiro tem suas particularidades na realização de casamentos. A celebração a seguir é da Casa  Ilê Obá L'okê:

A prévia - Dias antes da celebração, o casal terá um encontro com o babalorixá, que joga os búzios. O orixás de cada um falará sobre o casório, além dos ancestrais. Depois, o pai de santo fará algumas perguntas sobre o que o casal espera do futuro, dos cuidados, de fi- lhos, entre outras questões;

As oferendas - Os orixás também pedirão oferendas para o casamento, além do orixá do terreiro. No caso do Ilê Obá L'okê, regido por Oxum, o casal vai até a casa da divindade e coloca lá as réplicas das alianças, que ficarão na casa de Oxum;

Dia da festa - Feitos os trabalhos, o casamento começa com cânticos em Iorubá e ata- baques. O babalorixá contará um pouco sobre o casamento, fará orações do candomblé e revelará, diante de todos, o que o jogo de búzios disse. Depois, os convidados seguram o Alá de Oxalá na cabeça dos noivos, que ainda recebem banhos de folha, mel e água. Pode beijar a noiva...

Casamentos em outras religiões

Umbanda - Também com conceitos de religiões de matriz africana, o casamento de Umbanda tem a figura dos orixás, mas também mistura doutrinas cristãs e do espiritismo. A figura do caboclo é bem comum;

Católico - É preciso ter certidão de batismo, além de um curso espe- cífico antes do casório. Não é permitido casamento homoafetivo ou de divorciados. O casamento é considerado indissolúvel;

Judaico - É um casamento exclusivo para judeus. É nele que tem a figura da taça de vidro quebrada, que simboliza o rompimento do passado;

Budismo - Também não há distinção de crença, raça ou gê- nero. Qualquer pessoa pode se ca- sar. O casal fica de frente para um altar que tem um pergaminho sagrado. A cerimônia tem a leitura de trechos sagrados de Buda, com muita oração e meditação;

Evangélico - O pastor ce- lebra o casamento com muita oração e canções. Há também uma ceia que re- presenta a última re- feição de Cristo. Divorciado pode se casar novamente