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Um vilão no pedaço de pão: quando o glúten pode ser perigoso

Doença ativada pelo consumo de glúten levou 200 pessoas a precisarem de internação neste ano na Bahia; sintomas podem confundir, mas saiba quando ligar o alerta

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 12 de novembro de 2022 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Faz um mês que Marineide Batista, 46 anos, recebeu alta do Hospital das Clínicas (HC), em Salvador. Desse último internamento, saiu com 44 quilos e a terceira prescrição, em dois anos de um diagnóstico que mudou tudo, de não comer glúten. Dentro do corpo da aposentada, essa proteína é só destruição. Para se manter saudável, ela gasta R$ 1 mil (95%) de sua renda mensal. Como nem sempre consegue, acaba internada.   Os estragos que o glúten causa em Marineide têm nome: doença celíaca. É uma patologia autoimune identificada quando o sistema imune, que nos defende de invasores, como vírus, ataca a si próprio. Nos celíacos, o invasor é o glúten, contra o qual o corpo produz inflamações que destroem células do intestino delgado ao sistema nervoso. 

Leia mais: Saiba onde encontrar de pãozinho delícia a pizza sem glúten   Pelo mundo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 1% da população tenha doença celíaca, que, sem diagnóstico, provoca desidratação intensa a ponto de exigir internação ou matar e aumenta a predisposição de cânceres. De janeiro a agosto deste ano, 200 pessoas foram internadas por doença celíaca na Bahia, segundo a Secretaria de Saúde do Estado (Sesab). Em 12 anos, 28 morreram da doença.   O único remédio para os celíacos é excluir o glúten. Não é simples. Primeiro porque essa proteína viscosa, presente nos cereais, trigo, centeio e cevada, está fartamente presente na mesa dos brasileiros. Basta lembrar do pão francês, cuja massa só cresce pois o glúten aprisiona o gás carbônico lançado pelo fermento.  Dispensa de Marineide: entre restrições alimentares e econômicas (Foto: Marina Silva/CORREIO) Em um país onde 33 milhões de pessoas passam fome e a renda média mensal é de R $1,3 mil, blindar-se do glúten é uma alternativa cercada de ainda mais impossibilidades. 

Até  porque não basta se livrar do perigo visível, seja em pães, massas, bolos, biscoitos e na cerveja. Lançadas no ar pela mistura de um bolo com farinha de trigo e aspiradas, partículas já podem contaminar um celíaco. É a chamada contaminação cruzada, que também pode ocorrer quando alimentos são preparados em utensílios onde o glúten passou.   Para tentar fugir disso, Marineide cozinha quando os dois filhos estão longe. No café da manhã, come raízes ou cuscuz. O almoço é mais difícil.“Bastante salada e carne, que está muito cara. Eu nem conhecia essa doença. Quando descobri, não podia macarrão, pão... Fechar o mês é caro”, conta.Em um mercado, 500 gramas de macarrão custam R$ 3,69, enquanto a versão sem glúten, identificada por um rótulo criado no Brasil em 2002, sai por R$ 17,90, mas não é encontrada na vizinhança de Marineide, em Fazenda Coutos, no Subúrbio Ferroviário. A restrição alimentar é também econômica e territorial.     É por razões como essa que, em janeiro do ano passado e em julho deste ano, Marineide “recaiu”, como ela fala de quando largou a dieta e parou no hospital.  Da desconfiança ao veredito: como é o diagnóstico da doença celíaca?   De repente, no final de 2020, Marineide começou a emagrecer tantos quilos que médicos cogitaram ser câncer o mal dela. Nada parava no estômago, as articulações doíam. Em um mês, ela saiu dos 52 quilos, distribuídos em 1,61 metro, para 36, esperados para uma menina de 11 anos, não uma mulher de 45. O peso de antes do diagnóstico não foi recuperado: está em 43 quilos. Marineide: antes e depois da doença celíaca (Foto: Marina Silva/CORREIO) "É uma vida que não desejo para ninguém”, resume ela, que mantém contato com uma amiga, celíaca, internada no HC. Na hora das refeições no hospital, chegam pratos vindos de uma cozinha terceirizada, já que a da unidade acaba de ser reformada. As refeições são padrão, adaptadas para versão sem glúten.

Para substituí-lo, são utilizadas féculas e farinhas que não a de trigo, como a de amêndoa, de arroz, de chia, de quinoa e amido de milho, fubá e polvilho. O atendimento a celíacos, na rede pública, acontece no HC e no Hospital Octávio Mangabeira (veja abaixo como ter atendimento). 

O diagnóstico resulta de uma combinação de métodos. Os pacientes passam por exame de sangue em que são verificadas taxas de anticorpos e endoscopia para a biópsia, procedimentos que retiram fragmentos da mucosa intestinal e são realizados no duodeno, a porção mais alta do intestino delgado. Às vezes, há lesões aparentes, mas nem sempre - por isso é preciso combinar as estratégias.

Na fase aguda, a doença celíaca pode provocar sintomas digestivos, como dores de barriga, diarreias e vômito, e prejudicar a absorção de nutrientes e vitaminas, exigindo reposição medicamentosa. Não há cura, apenas controle da doença, que pode ser assintomática. “Mas ainda há um desconhecimento profundo da comunidade médica e os sintomas podem confundir. Como não há medicamento contra ela, a doença também fica menos popular”, explica Fernando Valério, gastroenterologista membro da Sociedade Internacional para o Estudo da Doença Celíaca.Em meio ao desconhecimento, celíacos são diagnosticados como se tivessem gastrite ou ansiedade. Até porque a doença nem sempre é manifestada pela barriga - pode dar sinais por sintomas psicológicos, como irritabilidade, ou mesmo ósseos. 

A descoberta história da doença celíaca

No século I da era cristã, Areteu da Capadócia já se referia a "celíacos", traduzido do grego "koiliakós", referente a dores abdominais atribuídas à alimentação. Embora não estivesse claro o que provocava aqueles desconfortos, o nome ficou de herança para a medicina moderna.

Só entre 1939 e 1045, época da Segunda Guerra Mundial, o médico Willem Dicke notou que a falta de produtos à base de trigo, pela restrição alimentar imposta por aquele momento, reduzia os doentes da barriga.  Dr. William e paciente durante a 2ª Guerra Mundial (Foto: Reprodução/The Celiac Project) O holandês associou, então, o glúten à doença e criou a primeira dieta livre de glúten - cujo nome, inclusive, é derivado de "grude", "cola", propriedades dessa proteína. Era esse poder do alimento que atraía a gastroenterologista Kátia Baptista Falcão, durante a residência, em Porto Alegre, em 2001. 

A médica ficava fascinada com a possibilidade de tratar uma doença com comida, como é comum em comunidades tradicionais. “Bastava uma dieta específica e o paciente melhorava da água para o vinho em meses. Meu trabalho também é pela informação. As pessoas que conversam comigo muito comumente falam de certos sintomas, acham que é doença celíaca e perguntam o que eu acho. Há muita gente sem diagnóstico”, recorda.Três anos depois da temporada em terras gaúchas, ela voltou a Salvador decidida a trabalhar na área e aqui encontrou um grupo de celíacos no Orkut.

A médica trazia mais uma história na bagagem: a de uma mulher que emagreceu tanto e sem razão aparente que chegou ao hospital com 30 quilos. Era celíaca, mas só descobriu à beira da morte, conta Kátia, que atende em consultório privado, no Octávio Mangabeira e preside o Grupo de Celíacos da Bahia – formado por 240 pessoas, das classes A à E.    É esse público que, às segundas, bate ponto no ambulatório de Nutrição em Gastroenterologia do HC, coordenado pela nutricionista e professora Raquel Rocha. De lá, eles saem com dietas a seguirem, ricas em alimentos naturalmente sem glúten - como frutas e verduras - e receitas de produtos, como pães, livres dessa proteína. “Não é o alimento que inflama. É o corpo, do celíaco, que reconhece o glúten como agressor e reage”, explica Raquel. Há uma década, o glúten virou um dos vilões da alimentação saudável – cada década tem o seu algoz alimentar, geralmente eleito pelo apelo social ao emagrecimento, e até o ovo de galinha já pagou o pato. A publicação de livros como “A dieta da Mente” [Ed. Paralela 2014], de David Perlmutter, colocou no glúten a culpa por transtornos mentais e tumores – o que nunca foi provado.

A comunidade científica aponta um efeito cascata. Como o glúten faz mal para uma parte da população, a demonização dele podia ser comercialmente atrativa. Sem necessidade, a retirada do glúten, invés de saudável, pode significar o incremento de taxas de gordura e açúcar. Há fabricantes de industrializados que compensam a ausência do glúten dessa forma, com outros sabores e texturas. 

A dieta e a subnotificação da doença celíaca

Em setembro, recuperado de uma pneumonia, Bernardo Cerqueira, 4, teve alta com o diagnóstico de sensibilidade ao glúten. A biópsia não foi prescrita. O garoto e a mãe, Alexandra Alves, 24, moram em Cajazeiras com três familiares. Os utensílios da criança, desde então, ficam sós em uma gaveta e os alimentos, preparados na cozinha vazia.   Desempregada, Alexandra recebe Auxílio Brasil (R$ 600) e vende cosméticos de revistinhas. O pai da criança paga a pensão da criança.“Mas o dinheiro não dá. Aqui também não encontro coisas sem glúten. Soube de um pão, custa R$ 24. Vou aprender a fazer”, conta. A hora da merenda da manhã é a mais complicada para Bernardo: enquanto os colegas variam os lanches, ele quase sempre come frutas. É possível que ele integre, na verdade, a legião de pessoas sem diagnóstico.

Existem três tipos de repulsa ao glúten: a doença celíaca, a alergia, manifestada só na infância por reações na pele ou sintomas respiratórios, e a intolerância, que tem sido substituída pelo termo "sensibilidade". Foi isto que atribuíram a Bernardo. Mas o universo da sensibilidade é rodeado de controvérsia. “É diagnosticada clinicamente por sintomas gastrointestinais. Sem biópsia, podemos estar falando de celíacos. É um iceberg, que esconde na base gente sem diagnóstico”, diz  a nutricionista Raquel.Para parte dos pesquisadores, como ela, "sensibilidade" seria um termo utilizado para compensar a subnotificação doença celíaca, que depende de biópsia para ser confirmada. Já a sensibilidade ao glúten é diagnosticada clinicamente. Há ainda a hipótese de que o motivo do mal-estar sentido por pessoas supostamente sensíveis ao glúten não seria essa proteína, mas o trigo ou um carboidrato encontrado nele. 

Doença celíaca e os riscos de doenças associadas

A preocupação com a falta de diagnóstico precoce existe também pelo fato de a doença celíaca intensificar os riscos de patologias associadas, como as autoimunes (as chances crescem de 3% para 35%) e cânceres.

Os mais comuns, nos celíacos, são no intestino grosso, sanguíneos, intestinos delgado e grosso, mama, útero, fígado e pâncreas. "Na população, a incidência de câncer é de 5,7%. Nos celíacos, 6,4%", explica o gastoenterologista Valério, baseado em dados de entidades internacionais. A doença celíaca chega a ser cogitada até depois da morte. Em 26 dias, o pai de Lidiane Teixeira, 40, Gerson, foi da descoberta de um câncer no duodeno -  a porção intestinal mais afetada nos celíacos - à morte, em junho de 2020. Aos 61 anos, ele chegou ao hospital, com quadros de vômito, reflexo de uma metástase, fase avançada daquele tumor considerado raro. Aquilo chocou Lidiane - não só pelo óbvio, a perda de um pai, mas pela surpresa. "Era um cara jovem, que praticava exercício físico. Claro que qualquer pessoa pode ter câncer, mas me intrigou. De onde veio esse câncer?", perguntava-se.Ela decidiu investigar a própria saúde. Todas as taxas estavam ok, menos uma. "As relacionadas a glúten. Repeti o exame, mas estava tão atordoada que não dei atenção ao retorno". Dois meses depois da morte do pai, em agosto de 2020, ela voltou ao consultório. O diagnóstico: doença celíaca.

Todo celíaco tem predisposição genética para a doença. Essa propensão pode eclodir por duas razões: a alteração de um gene chamado HLA e o consumo de glúten. É possível mapear, por curiosidade, sua predisposição para a doença por meio de exame que custa R$ 250. Mas 40% da população mundial que tiver resultado positivo não será celíaca. “O que desconhecemos [da predisposição à doença] podem ser outros genes modificados, fator infeccioso ou ingestão exagerada de glúten”, elenca o médico Valério. A executiva de contas nunca teve sintomas clássicos da doença, apenas cãibras e gases. Quando a médica dela citou o componente genético da doença, Lidiane mencionou o pai. Como a mãe dela não tem doença celíaca, a herança genética parece ter sido dele, pensaram. "Provavelmente, meu pai era celíaco, e chegou a esse estágio grave, o câncer", conjectura ela. Desde o diagnóstico, antes de ir a um evento social, ela procura saber o que será servido, para levar versões dos alimentos sem glúten. Happy hour com os amigos, "é quase impossível". Na casa dela, não entra glúten, mas seu principal medo é fora dela, pelo risco de contaminação cruzada - um vilão invisível que paira sobre cada pessoa celíaca.