A arte transformadora e ancestral do baiano J. Cunha

Exposição ‘J. Cunha: Corpo Tropical’ ficará em cartaz na Pina Estação, em São Paulo, de maio a setembro

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  • Tharsila Prates

Publicado em 23 de abril de 2024 às 06:00

J. Cunha e sua Cronologia da Escravidão
J. Cunha e sua 'Cronologia da Escravidão', conjunto de 4 telas dos anos 1990 Crédito: Ana Albuquerque/ CORREIO

Já aposentado, o artista plástico J. Cunha não para. Está pintando com calma um painel que terá dez metros de comprimento por dois de largura, com 14 histórias sobre o que considera a meca brasileira: o Quilombo dos Palmares. Para ele, a região na Serra da Barriga, patrimônio histórico de Alagoas, deveria ser sacralizada. O autor de Códice, obra com 21 telas, diz que o novo painel trará “mapas espirituais” e uma “abstração da ideia de liberdade”.

São mais de 60 anos de prática artística, com dezenas de mostras no Brasil e no exterior. Nascido na Ponta do Humaitá, descendente de africanos bantos e indígenas kiriri, vivendo em uma casa-ateliê no bairro outrora hippie da Boca do Rio e prestes a completar 76 anos, o artista está agora na expectativa de uma grande exposição na Pina Estação, ao lado da Pinacoteca (São Paulo), com mais de 300 itens de seu acervo. A abertura será em 4 de maio - no dia seguinte, haverá uma vivência com o Ilê Aiyê.

Foram 25 anos de trabalho com o bloco afro, realizando ativismo político através de imagens (estampas, cartazes e alegorias). Uma imersão que ele define como um dos papéis mais relevantes de sua arte: “Utilizar a condição da tecnologia e conduzir para o continente brasileiro o que não veio nas galés, ou seja, sinais, símbolos e arquétipos africanos, muitos deles milenares. A tecnologia me facilitou reconhecer e colocar isso à disposição de pessoas que não tiveram chance de entender a cultura diaspórica, porque as escolas nunca ensinaram, o país nunca deu chance.”

Ele comenta que, para o Brasil ser um país de verdade, aliás, é preciso ainda mudar muita coisa. Por aqui não se faz valer pontos essenciais da democracia. Mas ele também não acredita em igualdade e, sim, no que chama de ‘igualitude’: “Quando tentam homogeneizar as coisas, vira uma arquitetura da grande burrice e da carnificina humana”.

Cotista

Mesmo com as feridas abertas, Cunha celebra o maior espaço que vem sendo dado, hoje, a nomes indígenas e negros, como ele. Muitos relegados a segundo plano – um “crime hediondo” cometido pelo país. “Os artistas negros que tiveram uma interlocução nacional e com respeito em todos os sentidos foram Rubem Valentim e Emanoel Araújo. Quem mais? Depois tem [Gilberto] Gil com esse tamanho. Mas me diga quem mais? Não tem. O resto é sobrevivência”, afirma.

Por isso, se diz cotista e lembra da perseguição no passado, durante a ditadura militar: “Minha obra sofreu preconceitos. Fui acareado por generais na ditadura. A polícia foi no meu ateliê para saber por que eu fazia arte social. Faziam frases repetidas, no meio de outras perguntas, para saber se tinha contradição”, recorda. O pintor nunca foi preso, mas ficou proibido de frequentar determinados lugares por causa da “aparência de jovem tropicalista black power”.

Hoje a história é outra. Paulo Darzé, que o representa há 2 anos em sua galeria no Corredor da Vitória, elogia: “Ele batalhou muito esses anos todos. Felizmente está se reconhecendo a qualidade da pintura dele, não só local, como nacionalmente. As raízes do Nordeste, do candomblé, do afro, é uma obra completa. Ele circula por todos esses temas com maestria”.

Renato Menezes, curador de Corpo Tropical, na Pina Estação, também se derrama: “Raros são os artistas que conseguem alinhar beleza, alegria e compromisso político na sua obra tal como J. faz até hoje”.

O artista J. Cunha mostra seus quadros na Galeria Paulo Darzé por Ana Albuquerque/ CORREIO

O baiano utiliza o pincel como aríete para produzir informações em todo sentido da palavra arte e se vale do conhecimento afetivo acumulado em seu universo ancestral. A obra Cronologia da Escravidão (anos 1990) é um conjunto de quatro telas que resumem a exploração geracional em toda a sua crueza, desde a época dos pelourinhos, passando pelo trabalho desgastante de ambulantes, professoras mal remuneradas e a jovem que, enganada, pensa que vai fazer a vida em outras terras.

Com apenas 18 anos, J. Cunha frequentou o Curso Livre da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Participou dos grupos Viva Bahia e Balé Brasileiro da Bahia, onde produziu figurinos, cenários e foi bailarino “para sobreviver”. Trabalhou por quase duas décadas com o Balé do Teatro Castro Alves. Decorou o Carnaval de Salvador. Recentemente, o Instituto Inhotim (MG) comprou o seu Códice, que será exibido na Pina Estação.

O artista teve ainda uma retrospectiva de sua obra no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM) em 2023. “Quero me divertir fazendo a minha obra, não é só tensão”, diz ele, enquanto se deita, após uma de nossas conversas, num dos bancos da Galeria Paulo Darzé à espera de uma carona.

Antes, quando perguntado sobre a dedicação permanente ao trabalho, ele diz que a arte é uma fonte de energia, uma paixão. "Eu não me dispus a nenhum tipo de coisa que não fosse o engajamento com a arte, independente dos resultados. Fora a espiritualidade, que é a base, a arte é tudo para mim. O resto é segundo plano."