Depois de 8 anos, Fernanda Vareille assiste pela 1ª vez documentário que dirigiu e faz revelações

Diretora de 'A loucura entre nós' foi instigada a reviver o filme – e todo o processo de produção; confira relato na íntegra

Publicado em 2 de março de 2024 às 05:00

A Loucura Entre nós foi lançado em 2016
A Loucura Entre nós foi lançado em 2016 Crédito: Divulgação

Meu filme A Loucura Entre nós foi lançado em 2016. Desde então, eu não o havia assistido. Eu não tinha curiosidade. Ele foi destinado ao lugar para o qual foi concebido: o mundo. Sei que ele se tornou uma referência bastante usada nos debates sobre a segregação da loucura em cursos de psicologia e psicanálise, e gosto muito disso. No entanto, recentemente, fui instigada a reviver o filme – e todo o processo de produção – com a leitura do livro A morte de Si, quem matamos quando matamos a nós mesmos?, de Marcelo Veras. No livro, Veras descreve o caso de Leonor, uma das protagonistas do meu filme.

Leonor se tornou também minha amiga. Eu a conheci porque éramos, ambas, frequentadoras da sala espera de Marcelo no início do ano 2000: nos encontrávamos com alguma frequência nesse espaço. Não me lembro exatamente como isso aconteceu, mas firmamos uma amizade. A sala de espera do consultório de Marcelo, na época, era, para mim, a possibilidade de encontrar pessoas improváveis, pessoas que nunca encontraria na minha vida cotidiana. Eu não me incomodava em chegar mais cedo e esperar, pois lá encontraria um mundo diferente do meu mundo habitual.

Fernanda Vareille Crédito: Divulgação

E foi nesse contexto que conheci Leonor. Sempre gostei de conversar com pessoas que surgiam em minha vida de modo inesperado. Eu estava em um momento bem particular da minha vida, havia feito alguns documentários sobre o conflito Israel X Palestina, e buscava um projeto profissional. Aliás, mais do que isso, eu buscava pela psicanálise (re)conhecer o meu desejo. A loucura entre nós trata da linha tênue que separa a loucura e a normalidade e tem como protagonistas principais, além de Leonor, Elizangela, que buscava um lugar no mundo que não fosse segregado por conta da loucura. Elas possuíam traços com o qual eu mesma me identificava, com meus 27 anos. Quando esse projeto começou, eu buscava uma forma de existir, já que o medo de que eu me tornasse uma mulher cuja própria existência seria pesada – e continuasse assim – era uma questão forte para mim.

Leonor era uma artista, tinha o desejo de pintar, de ser uma pintora reconhecida, de produzir. Queria brilhar, queria ter suas obras expostas e ser respeitada por isso. Mas, devido a essa busca incessante pela sua individualidade, imaginava eu – ou projetava eu – ela não conseguia fazer com que as pessoas a levassem a sério. Eu tinha a sensação de que ela desistia muito facilmente dos seus projetos. E eu, portanto, precisava terminar o meu projeto. Essa também era a minha busca, eu vivia a incessante busca pela tentativa de tornar a minha existência mais leve. E, na época, eu encontrei em Elizângela um pouco de mim. Espontânea e vital, logo no início do filme surge em uma cena gritando pelos corredores de que tudo que ele queria na vida era poder trabalhar.

As duas, juntamente com Israel – outro retratado no documentário – e tantos outros, falavam as palavras que eu queria falar para o mundo. Particularmente, Israel dizia uma frase que eu adoro, gosto tanto que me apropriei e repito sempre: “Dizem que sou lento, mas eu não sou lento, eu tenho o meu tempo’’.

O que aprendi com esse filme? Que é através da afirmação genuína do desejo que temos acesso ao outro. O desejo apenas existe quando reconhecemos o outro. Eu não sei se esse é um método muito usual de fazer análise, mas talvez seja essa a minha interpretação sobre os motivos que me levaram a encarar com tanta facilidade as filmagens no âmbito de um hospital psiquiátrico. Entramos naquele hospital com uma equipe tão pequena, mas tão fundamental... Éramos tão jovens, e a cada término dos dias de filmagem, debatíamos, na volta para a casa, as emoções difíceis e agregadoras que estávamos vivenciando. Todos precisavam falar entre si, e a visão dessa equipe faz parte da essência do filme.

Nos últimos meses de filmagem, eu já estava em um estágio bem avançado de gravidez e confesso que não seria fácil para mim, agora, entrar com a mesma tranquilidade no hospital. O meu primeiro filho estava para nascer, e um hiato de oito anos atravessaram

a minha carreira como realizadora. Eu trabalhei durante esse tempo com edição de filmes, ajudando a tornar os filmes/projetos dos outros possíveis.

Quanto à oportunidade de inovar, me parece que ser diferente se tornou moda, ou simplesmente eu me libertei do olhar do Outro aprisionador. Portanto, agora me sinto muito mais à vontade para falar sobre essa minha versão de como o filme tomou forma, o que não aconteceu na época do seu lançamento, e fiquei bem feliz que o amigo Marcelo Veras tenha cuidado de lhe dar vida, debatendo-o nos ambientes da psicanálise.

Eu adorei o livro de Marcelo, pois me ajudou a decifrar um pouco alguns conceitos das teorias supostamente hiper complexas de Lacan e outros autores, como por exemplo: a diferença entre o outro e o Outro, o que é o objeto a, o gozo, a pulsão de morte, o amor de transferência, a diferença entre neurose obsessiva e outras neuroses.

E, além disso, o livro é um compilado das ideias humanistas que Marcelo tem sobre a vida. Ideias que, com o tempo de relacionamento, reconheço e já tenho uma certa familiaridade.

Eu não sei bem por que ter escolhido Marcelo como analista. Ouvi alguém dizer que cada um tem o analista que merece. Eu fico feliz por ter feito análise em anos essenciais de início da vida adulta. Eu não tenho certeza de que, sem esse encontro, eu teria sido tão fiel ao meu desejo.

Eu li A morte de Si obsessivamente, como se lê algo que precisa ser desvendado. Como se eu estivesse à procura de um segredo. Eu o li sem parar em um domingo que se estendeu até a madrugada de segunda. Na página 192, encontrei a minha busca: eu li a palavra Leonor. E levei um susto.

Nas páginas seguintes, Marcelo Veras transcreve trechos de conversas que eu tive com Leonor e que estão presentes no documentário. E, assim, revivi o momento daquela escuta. Eu não sabia que meu filme tinha sido analisado no livro, e que esse nosso encontro teria sido transcrito ali. Lendo tudo aquilo, pensei no suicídio de Leonor. Eu ouvi as entrevistas, mas descobri-las, de repente, em um livro, não foi uma experiência fácil para mim. Paradoxalmente, era o momento em que eu ouvia Leonor falar com mais lucidez durante o longo processo de filmagem. Mas me parece que o excesso de lucidez não nos faz muito bem. O mundo está mudando, e hoje eu me sinto muito mais confortável em me permitir seguir minhas ideias, com as minhas singularidades e me expor, contando essa breve história. O que pude aprender com a releitura do documentário feita no livro é que posso, eu também, falar e fazer filmes com minha loucura. Afinal, fazer filmes não é lá muito normal.

*Fernanda Vareille é diretora do documentário 'A loucura entre nós' (@fernandavareille)