Em biografia com tom de romance, Martinho relembra seus 86 anos

Compositor acerta ao optar por uma narrativa leve e alto astral, exatamente como seus sambas

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  • Roberto Midlej

Publicado em 25 de março de 2024 às 06:00

Martinho da Vila lança biografia aos 86 anos
Martinho da Vila lança biografia aos 86 anos Crédito: 1) Márcia Madela; 2) reprodução

A autobiografia de Martinho da Vila, Martinho da Vida (Planeta/320 págs./R$ 70), tem a cara do biografado: alegre, leve, divertida e, sobretudo, tão “simpática” quanto o autor - se é que esse último adjetivo cabe para classificar um livro. A prosa vai além do informal e a sensação que o leitor tem é de estar ouvindo o próprio compositor - com sua voz e sotaque carioca marcantes - contar suas histórias, tão saborosas quanto seus sambas.

O formato por que Martinho optou para contar a história de sua vida é um grande acerto e contribui muito para a leveza do livro: na biografia, que é praticamente um romance, o personagem Zé Ferreira é um escritor que encontra, em sonho, com um músico conhecido como Da Vila. A partir de então, eles começam a conversa e revisitam a trajetória de vida do personagem-autor, desde a saída da pequena cidade de Duas Barras, passando pelos relacionamentos que viveu, o período da ditadura militar até a relação familiar, com a música e com a religião.

Em diversas passagens, Martinho intercala a narrativa com letras de músicas e revela a relação de suas composições com acontecimentos vividos por ele. E há diversas letras espalhadas no livro, o que é uma ótima oportunidade de prestar mais atenção aos versos que Martinho canta. Aliás, é muito justo fazer isso, já que o compositor nascido em Duas Barras (RJ) nunca teve as suas qualidades de letrista devidamente reconhecidas. E explica-se: as melodias são tão gostosas de ouvir que, às vezes, esquecemos de prestar atenção às letras.

Ainda que Martinho não tenha a força poética de colegas como Paulinho da Viola ou o lirismo de Cartola, é um letrista que merecia muito mais atenção, especialmente por ser um homem de muita cultura, como fica claro em suas letras e, agora, em seu livro. É também um grande conhecedor de história, sobretudo da história brasileira.

Logo no prólogo, o autor faz um apelo ao leitor: “é recomendável lê-las [referindo-se às letras que estão no livro] como se estivesse declamando uma poesia”. O pedido é perfeitamente compreensível, mas, seguramente, não é uma missão fácil para quem conhece os versos: que o diga o próprio jornalista que assina este texto, que não se continha e cantarolava sempre que os lia.

Logo na primeira página, num dos diálogos, Martinho resgata os versos de uma das músicas que, certamente, melhor refletem sua personalidade: Filosofia de Vida, que tem os versos “Que o supérfluo nunca nos falte/ E o básico para quem tem carestia/ Não quero mais do que eu necessito/ Pra transmitir minha alegria”.

Homem de muitas preocupações sociais, o compositor deixa isso claro em diversas passagens do livro. Basta ouvir também O Pequeno Burguês - outra ótima canção de Martinho - para lembrar dessas preocupações que ele tem com os que passam dificuldade econômica. A música fala de um jovem que realiza o sonho de passar no vestibular, mas que não tem como pagar as mensalidades. Ainda assim, com muita luta, consegue, como diz Martinho, o sonhado “canudo de papel”. Crítico do capitalismo, ele deixa isso claro em algumas passagens do livro.

Antirracismo

A militância antirracista do compositor também é marcante na vida dele e isso está no livro, como fica claro ao lembrar que, inclusive quando batizou um dos filhos com o nome Preto, levantou a bandeira de seu orgulho de ser negro: “Me lembro que, quando foi registrado com o belo nome, alguns parentes negros retesaram a face e os brancos da família sorriram”.

E o relato mais impressionante do livro - e engraçado, se é que se pode dizer que isso seja engraçado - talvez seja a “justificativa” do compositor para ter começado a fumar aos quatro anos de idade. Não, leitor, você não leu errado nem é erro de digitação: Martinho começou ao fumar aos quatro anos de idade.

E, tão impressionante quanto essa informação, é saber o que provocou o vício tão precocemente: é que o pequeno Martinho tinha o hábito de comer terra e, por sugestão da avó Procópia, deveriam meter na boca do menino um cigarro aceso, para que toda vez que ele fosse comer terra, lembrasse do gosto ruim do cigarro e aos poucos, deixaria aquele hábito esquisito. Resultado: trocou a terra pelo cigarro e até hoje continua fumando. “Mas não trago”, avisa Martinho. E, mesmo assim, “devagar, devagarinho”, ele chegou aos 86 anos.