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Luiza Gonçalves
Publicado em 12 de maio de 2025 às 10:11
O neologismo perifobria surge no vocabulário da escritora Lilia Guerra ao perceber e refletir sobre o efeito do desconforto, e até repulsa, causado pela periferia em quem está distante dela. Um sentimento maturado desde sua infância, quando se mudou para um conjunto habitacional a mais de duas horas do centro de São Paulo, que toma corpo crítico, literário e sensível em Perifobia (2018), seu segundo livro. Entre crônicas e contos que relatam o cotidiano de moradores de zonas negligenciadas, Guerra narra as distâncias simbólicas e materiais nos cotidianos dos personagens e como estes impõem formas de driblar essa realidade, partilhando histórias marcadas por amor, alegria, conflitos, questionamentos e coletividade. Agora, a obra ganha um relançamento pela Todavia (R$ 60 e R$ 45 o ebook). >
“Acho que a segunda edição traz uma oportunidade de distribuição maior e isso me faz pensar em salas de leitura, equipamentos culturais diversos, faixas etárias variadas”, aponta a autora. Dividindo o cotidiano entre a enfermagem e a literatura desde 2014, Lilia Guerra segue sua paixão pela escrita preservando memórias, questionando a realidade com planos e entusiasmada em como seus livros têm tocado quem está dentro e fora da quebrada.>
Como a literatura chegou à sua vida? >
Posso dizer que sempre fui incentivada a ler por minha mãe, que cedo me apresentou uma biblioteca e me fez entender que era um espaço que eu poderia ocupar. Escrever é algo que aconteceu como consequência do desejo e necessidade de buscar informações sobre as minhas mais velhas. Preservar, resgatar. Mostrar que as nossas vivências também são importantes. Na minha família, por exemplo, temos poucas fotos, poucos documentos preservados. Mas temos muitas anotações, muitos guardados, como se diz. Comecei a pesquisar o que a gente tinha. Inclusive e, principalmente, as memórias. Iniciei um processo de escuta com minha mãe. Minha vó, eu havia passado a vida inteira escutando. O resultado desse processo se transformou num livro. E essa ação me fez descobrir que escrever era a coisa que eu mais gostava de fazer na vida.>
O que mudou para você ao se tornar uma autora publicada?>
O livro que circula provoca comentários, reflexões. Quando é possível ter contato com o leitor, conversar sobre várias experiências de leitura e compará-las é sempre surpreendente. Acho que minha responsabilidade enquanto escrevo muda sim, quando tenho certeza de que alguém espera por esse texto. Penso muito mais agora nas sensações que uma cena causará ao leitor, acho que isso reflete no meu processo criativo. Quando comecei a escrever, sem a certeza de que um dia conseguiria publicar e distribuir o que escrevia, minhas preocupações eram diferentes das que tenho agora.>
Você criou o termo “perifobia” a partir de uma percepção pessoal da repulsa que a periferia pode causar em quem não a vive. Como surgiu essa reflexão?>
Nem sei quantas vezes ouvi pessoas perguntarem se Cidade Tiradentes estava no mapa. Diziam que era no fim do mundo, em outro planeta. Observei que isso acontecia com outros lugares, distantes também. As piadas eram diversas, assim como o incentivo para que eu me mudasse sem que tivesse solicitado conselho ou opinião. Receber uma visita de alguém que não morasse na região era uma raridade. E, quando acontecia, em geral, a pessoa já chegava jurando que nunca mais voltaria. Eu concordava. Ficava aflita imaginando todo o desconforto que a visita tinha enfrentado. Ouvia as reclamações e concordava. Me desculpava por tê-la submetido a uma situação tão desagradável. Com o tempo, comecei a notar que esse tipo de comportamento relacionado às distâncias não acontecia apenas por causa da dificuldade de acesso, mas também por preconceito.>
Como foi mesclar relatos cotidianos e ficção para criar este livro?>
O material obtido através da escuta e da observação é precioso. Transportá-los para a ficção é divertido. Refletir sobre qual situação se adequa à existência de determinado personagem, eleger os temas que considero imprescindíveis. E, às vezes, desfrutar apenas de liberdade mesmo, do desejo de escrever sobre determinado assunto ou construir uma cena só pela vontade de criar também é importante.>
Sua escrita transita entre a crônica e o conto, com uma carga realista e sensível.>
Às vezes, começo a delinear uma ideia sem pretensão, só quero fazer um registro, discorrer sobre determinado acontecimento ou experiência. Daí, nasce um texto. Um texto que precisa se enquadrar num gênero estabelecido. Tenho um livro catalogado como reunião de crônicas. “Crônicas para colorir a cidade”. Empresto minha própria voz a algumas delas. Outras, são narradas por personagens. Mas nada disso foi planejado. Acho que quando chega o momento de agrupar os textos no formato livro é que me dou conta da necessidade de classificar os escritos. E uni-los. Ou separá-los para organizar a publicação. Mas me agrada muito a ideia da mistura. Crônicas, contos … eu gosto de tudo. Sobre o realismo, acho que é o resultado de escrever a partir da observação. É parecido com pintar uma tela baseando-se em uma imagem, eu acho. O pintor, às vezes, pita o que observa, e outras vezes o que imagina. Com a literatura também acontecesse assim, pelo menos, comigo. E sobre a sensibilidade, obrigada…>
O livro possui várias letras de samba como epígrafes. Como a música influencia a sua literatura?>
Eu ouço samba desde que cheguei da maternidade. Os discos eram os meus brinquedos, os meus livros. E eram quase todos de samba. Cresci nesse ritmo. Educada pelo samba, alfabetizada pelo samba. Eu admiro o povo do samba de um jeito... Como disse o sábio Aragão, é coisa de pele. Destacar uma frase pra cada história é uma forma de homenagear meus mestres. Fiz isso em Rua do Larguinho, só com compositoras e mulheres nas interpretações. A influência é direta, acontece espontaneamente. Por reverência, por admiração…>
Qual a importância de a literatura periférica estar no circuito comercial?>
Se eu for falar do ponto de vista de autora, a importância é que sou uma profissional da escrita que vive numa região periférica e consegue vislumbrar a literatura como trabalho. Mas, pensando na classificação do texto como literatura periférica, devo confessar que é algo que me faz refletir ainda, sem uma resposta exata. É algo que ainda estou elaborando, experimentando.>
De que forma a recepção de Perifobia tem dialogado com o público da própria periferia e com leitores que não vivenciam essa realidade?>
Eu penso em muitos formatos de distribuição para o diálogo de Perifobia com a minha vizinhança. Acho que, por ser bem musical, isso pode ajudar. Pode despertar interesse pelas histórias de personagens que têm uma trilha sonora que toca muito nos meus lugares. Imagino que um livro audível seria de grande utilidade, desde que houvesse recursos acessíveis garantidos para a reprodução. Acho que a segunda edição traz uma oportunidade de distribuição maior e isso me faz pensar em salas de leitura, equipamentos culturais diversos, faixas etárias variadas. Eu também penso em teatro, por exemplo. Teatro popular. Teatro de rua, de praça, em pátio de escola. São muitos os sonhos. Quanto aos leitores que não conhecem a realidade das distâncias, eu nem acho que conseguirão conhecer através do livro, mas o registro é válido. As sensações que a leitura pode causar e provocar.>