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Saulo Miguez
Publicado em 18 de julho de 2024 às 06:00
“Indisciplinado”. Assim definiu o próprio autor, Francisco Bosco, o seu mais novo livro, “Meia palavra basta”. Chico estará em Salvador ao lado do também escritor Waldomiro J. Silva Filho, nesta quinta-feira (18), para lançar a obra. O evento acontece Livraria LDM do Vitória Boulevard, às 18h. >
Chico foi colunista da revista Cult e do jornal O Globo, dirigiu a rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles. É também letrista de canção popular e, atualmente, apresenta o programa de TV Papo de Segunda, no canal GNT.>
Editado pela Record, o livro é uma coletânea de aforismo, esses textos curtos e, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Evanildo Bechara, “de conteúdo moral” sobre relacionamentos, sexo, futebol, grupos de WhatsApp, autocrítica, gafes, inveja, entre outros temas do cotidiano.>
Chico explica que o livro se define mais pela forma do que pela inscrição dentro em uma seção literária, pois se trata de uma obra transdisciplinar. “Ele tem um pouco de política, um pouco de psicanálise, um pouco de literatura. Então não dá para colocá-lo dentro de uma disciplina. Ele é indisciplinado”, disse em entrevista ao CORREIO. >
Ao ser perguntado sobre em qual prateleira o leitor poderá encontrar o “Meia palavra basta”, Chico confessa que não sabe ao certo, mas deseja que o livro esteja em meio às publicações de bolso, na chamada Boca do Caixa, que são livros normalmente curtos, breves e não muito específicos dentro de uma disciplina atendendo uma gama maior de interesses. >
Com mais de 10 obras publicadas, Chico vem de dois livros sobre grandes temas da cultura e da política: “O Diálogo Possível” e “A Vítima Tem Sempre Razão?”. Ele conta que nessa última década, sobretudo desde 2013, o debate público brasileiro tornou-se muito inflamado e mobilizado por questões que a nossa sociedade vem tentando resolver.>
Porém, diferente de outros países, o Brasil, segundo ele, avançou muito pouco em pontos elementares, como a universalização de direitos. “Estamos vivendo em um contexto de muita polarização e muita lógica de grupo fomentada por redes sociais”, disse.>
Nesse contexto, “Meia palavra basta”, surge como uma tentativa do autor de trazer prazer à inteligência, uma vez que o intelecto está mobilizado pelo campo da política, que, infelizmente, é também o campo do conflito e da resistência. >
Aforismo não é tweet>
Se engana quem pensa que as poucas palavras impressas em cada uma das 128 páginas da obra refletem a superficialidade das redes sociais, onde a linguagem está a serviço da distração. Diferente dos tweets, o aforismo é uma tradição literária, mais formal do que disciplinar, que desperta sentido e profundidade no leitor. Para citar apenas alguns exemplos, essa tradição está presente na Filosofia, através de nomes como Nietzsche e Schlegel, na Teoria Social, com Adorno e Foucault, e no Humor com o incomparável Millôr Fernandes. “O meu livro está em algum lugar entre esses pares”, frisou Chico. >
Sobre a comparação com as redes sociais, ele deixa muito claro que é justamente o contrário. Pois, nesse ambiente virtual o texto curto está a serviço da alienação, fragmentação da atenção e corrosão da concentração. “Quando a gente é capturado por uma rede social, a gente fica ali arrastando o dedo por duas horas e se alguém te fizer uma pergunta sobre o que você viu, você não saberá responder”, disse.>
E continua traçando o paralelo. “O meu livro pretende o contrário. A forma curta quer disparar na cabeça do leitor uma produção muito intensa de sentido. Nesse ponto, o ‘Meia palavra basta’ se encontra mais próximo da poesia que é, para citar um importante crítico literário e poeta do século XX, Ezra Pound, uma linguagem carregada de sentido ao máximo”. >
Desde já é importante ressaltar que o livro requer um leitor que não é o usuário padrão do Tik-Tok, mas sim alguém forte o suficiente e disposto a passar pela experiência de alta produção sentido a partir de escritos que suprimem o contexto e obrigam o leitor a restituir a história. >
“Só quando o leitor é capaz de restituir o contexto que essas máximas, esses aforismos, ganham validade. Esses textos exigem do leitor uma atitude ativa, enquanto que as redes sociais oferecem ao usuário uma possibilidade de postura passiva, que é tudo que eu não estou fazendo”.>
“Era um idiota”>
Ao longo da divulgação do livro, alguns dos textos presentes da obra foram lidos e postados nas redes sociais por formadores de opinião. Nomes como o professor e escritor Wilson Gomes, os jornalistas Pedro Bial e Andréia Sadi e a escritora Tati Bernardi viralizaram os aforismos de Chico e ajudaram a aumentar a expectativa para a chegada da publicação nas prateleiras. >
Em um desses textos, a apresentadora Gabriela Prioli lê a respeito da decepção estar sobre os ombros de quem se decepcionou, e não de quem supostamente foi a causa do desagrado. “Me decepcionei com você. A esse comentário, a única resposta decente é: ‘problema é seu’”.>
Perguntado se havia feito algo com o objetivo de agradar e não decepcionar alguém, Chico é direto em dizer que já “aderiu”, que já foi um “intelectual capturado” pelas demandas das lógicas de grupo que tanto questiona. “Hoje eu posso dizer que eu era um idiota, um bobo, uma besta rodriguiana”, disse. >
Ele lembra que o intelectual do século XX precisava resistir às tentações do Estado, porque a partir do momento que passava a fazer parte do governo, como foi o caso dele quando presidiu a Fundação Nacional de Artes (Funarte), durante o mandato da ex-presidente da República Dilma Rousseff, ele perdia a sua autonomia intelectual. >
“Tenho orgulho de ter sido servidor público, é uma função das mais nobres que uma pessoa pode ter, mas sempre considerei que enquanto eu continuava ligado ao governo eu não era um intelectual. Eu não tinha autonomia”.>
No século XXI, por sua vez, as tentações migraram do Estado para os grupos e redes sociais. Chico explica que, muitas vezes, o intelectual está capturado pelas benesses do pertencimento de grupo. Isso significa que, numa sociedade polarizada, essa figura pensante obedece a um conjunto de comportamentos estéticos e ideológicos que são recompensados. “Essa é uma outra forma do intelectual perder a sua autonomia”.>
O autor, que se considera um intelectual público, conta que, na última década, todo o seu esforço tem sido pensar a realidade brasileira sem essa identificação de ponto de vista com um grupo, para que isso não seja uma baliza para o seu pensamento. >
“Eu considero que o compromisso fundamental do intelectual público é não aderir. Essa, inclusive, é uma definição do filósofo da USP [Universidade de São Paulo] Paulo Arantes. Para mim, o intelectual resiste a essa identificação e, naturalmente, acaba pagando o preço de desagradar o grupo”.>
As drogas e a monogamia>
Em outro texto, este lido por Bela Gil, Chico traça um paralelo entre a monogamia e o consumo de drogas. “A monogamia ocupa um lugar simbólico análogo às drogas na nossa sociedade. Uma mistura de tabu e hipocrisia. As drogas muita gente nega, mas quase todo mundo usa. A monogamia, quase todo mundo exige, mas quase todo mundo descumpre”.>
Sobre superarmos esse tabu e vivermos relações que sejam plenamente verdadeiras, poli ou monogâmicas, ele conta que há uma longa fortuna crítica sobre a história do amor. Alguns grandes historiadores, como mexicano Octavio Paz, traçaram o que é o afeto e o sentimento amoroso. >
“A gente percebe que o modo como as pessoas sentem esse afeto está relacionado às crenças em determinados momentos históricos”. Ele cita como exemplo a Provença Francesa dos séculos XI e XII, época do amor cortês, quando havia uma crença no caráter passional, quase mortal e super idealizado do amor. >
Chico considera que existe uma tarefa política a ser feita, que está em marcha, de dissociar o que se chama de traição, ou ter outros relacionamentos pontuais dentro de uma relação amorosa estável, das ideias de desonra, vergonha, culpa e hiper moralização, que historicamente estiveram associadas a isso. >
“Por conta dessa associação, não apenas se comete muita violência. Quantos feminicídios já foram praticados por conta de um suposto atentado à honra masculina resultado de traições femininas, por exemplo? ”, questionou.>
Além disso, relata que se desmancham relações amorosas fortes e com uma história bonita por conta da associação falsa entre desejar uma outra pessoa e isso comprometer a verdade da relação. “Certos mitos e associações trágicas, por um dever político, precisam ser desfeitas e isso está em curso”.>
Apesar desse movimento já ter iniciado, ele acredita que na sociedade em que vivemos, onde o amor é sempre percebido dentro de uma lógica dual, sempre vai haver uma dificuldade para o que seria uma hegemonia de relações não monogâmicas.>
“Por um lado, caminhamos para a desconstrução de mitos relacionados ao amor romântico. Mas, por outro, me parece que essa superação não é algo fácil de se fazer. Não acho que isso acontecerá em larga escala, nem a curto e nem a longo prazo”.>
Meia palavra, um cancelamento>
Tema estudado a fundo por Francisco Bosco e que, de alguma forma, também está presente no seu mais novo livro, o cancelamento, essa tentativa de retirar de alguém sua influência, reconhecimento ou status por conta de atitudes questionáveis, bateu na sua porta desde que uma entrevista onde ele, supostamente, dava razão ao ensaísta símbolo da extrema direita Olavo de Carvalho foi publicada pelo jornal Estadão, em maio deste ano.>
“’Olavo de Carvalho tinha razão’”, diz Francisco Bosco sobre a esquerda nas universidades”, diz o título da matéria. “Aquele título mostrou como meia palavra basta para causar um grande problema”, destacou Chico. >
Mais uma vez, a lógica de grupo operou nessa questão. Esse mecanismo, que expressa o modo de pensar típico de determinado conjunto, surgiu com toda sua pujança no momento em que Chico, um intelectual que milita no campo progressista, em tese, elogiou um bastião da direita. >
A afirmação, rapidamente, virou assunto de pauta em ambos os lados ideológicos. Destros e canhotos, de repente, passaram a falar de Chico Bosco e o linchamento virtual se iniciou. No entanto, foram significativas também as manifestações de apoio. O próprio jornal Estadão, em editorial publicado em 27 de maio, repudiou os ataques.>
“O mundo implacável, tóxico e superficial das redes, no entanto, costuma oferecer escasso espaço para reflexões complexas, invariavelmente substituídas por desqualificações grosseiras a partir do primeiro sinal de dissenso”, diz um trecho do artigo.>
O professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, Pablo Ortellado, no artigo Chico Bosco tem razão!, publicado no Jornal O Globo, diz que “a menção ao infame ideólogo [Olavo de Carvalho] do bolsonarismo acendeu a fábrica de cancelamentos, e o necessário debate sobre a pluralidade política na universidade foi trocado pela condenação moral do ensaísta [Chico Bosco]”.>
“Posso estar enganado, mas eu não me lembro de um movimento de defesa feito por veículos de comunicação e intelectuais como o que aconteceu no momento em que fui atacado”, disse Chico.>
Apesar dos estragos causados, Chico faz questão de ressaltar que o cancelamento não é uma prática nova, mas foi apenas ressignificado e hoje causa menos prejuízos do que já provocou ao longo da história da humanidade. Ele cita como exemplo as ditaduras, a inquisição católica da Idade Média e o suicídio de Sócrates, que preferiu beber a cicuta a corromper o seu pensamento e suas ideias.>
Um gol do Bahia, um chope e um acarajé>
Para além de filósofo, ensaísta e doutor em teoria da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Chico Bosco é flamenguista roxo e apaixonado por futebol. Ele, inclusive, é um dos entrevistados no documentário “40 minutos antes do nada”, de Renato Terra, lançado em 2013 e que se propõe a debater a rivalidade entre Flamengo e Fluminense, uma das maiores do nosso esporte bretão.>
Apesar do vínculo com o rubro-negro carioca, Chico faz questão de deixar claro que a sua paixão mesmo é pelo futebol – o jogo – e não pelo ato de torcer. Ele, diga-se de passagem, não vê com bons olhos as torcidas organizadas, onde também opera a lógica de grupo e, não raramente, se envolvem em episódios onde sobra violência e falta desportividade.>
Em nome do fair play, Chico até supera os efeitos colaterais da lei do ex. “Sou capaz de assistir na Fonte Nova um jogo entre Bahia e Flamengo e, caso o meu amigo Everton Ribeiro faça um belo gol, após uma tabela com o excelente meia Caully, eu posso até ficar triste naquela hora. Mas logo depois darei a ele os parabéns e poderei sair tranquilamente para tomar um chope e comer um acarajé com um torcedor do Bahia”.>
A propósito, Bahia e Flamengo se enfrentam pelo Campeonato Brasileiro no dia 05 de outubro, pela partida de volta da competição. Como não custa nada sonhar, quem sabe teremos um triunfo tricolor com gol de placa do camisa 10 e, de quebra, mais meia palavra, dessa vez na mesa de um bar, com Francisco Bosco. >
Serviço>
O que: Lançamento do livro Meia palavra basta. Chico Bosco conversa com Waldomiro J. Silva Filho, seguido de sessão de autógrafos.>
Quando: quinta-feira (18/07), às 18h>
Onde: Livraria LDM do Vitória Boulevard - endereço: Av. Sete de Setembro, 1839, Vitória - Salvador/BA>
Entrada franca>
Preço do livro: R$ 54,90>