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Roberto Midlej
Publicado em 16 de agosto de 2023 às 06:00
A arte brasileira perdeu um de seus maiores representantes nas lutas pela representatividade negra e contra o racismo: a carioca Léa Garcia morreu nesta terça-feira (15), aos 90 anos. Conhecida por papéis como a Rosa de Escrava Isaura, a atriz era homenageada neste ano no Festival de Gramado e estava na cidade gaúcha, onde o evento começou no dia 11 e segue até este sábado. >
De acordo com o Hospital Arcanjo São Miguel, citado em nota pela organização do evento, a causa da morte foi um enfarte agudo do miocárdio. A homenagem a ela e à colega Laura Cardoso, de 95 anos, aconteceria na noite de terça-feira (15). As duas foram vistas juntas no sábado, 12, em uma das sessões do festival.>
Após a confirmação da morte, a organização informou que, a pedido da família, a homenagem será mantida. O filho da atriz, Marcelo Garcia, receberá o troféu em nome da mãe no palco do Palácio dos Festivais no início da primeira sessão.>
Já a entrega do troféu Oscarito para Laura Cardoso foi reagendada. A cerimônia será realizada na sexta-feira, 18 de agosto, também no Palácio dos Festivais.>
Léa, homenageada agora pelo conjunto da obra, já ganhou Kikitos - nome dado ao troféu do Festival de Gramado - , por Filhas do Vento (longa-metragem de 2004), Hoje tem Ragu (curta-metragem de 2008) e Acalanto (curta-metragem de 2013). A atriz também já foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no Festival de Cannes por sua atuação no filme Orfeu Negro (1959).>
Dona Léa soma mais de 100 produções, incluindo cinema, teatro e televisão, e continuava no pleno exercício da profissão. Recentemente, ela estava em negociação para reviver Inácia, a personagem Chica Xavier no remake da novela Renascer, segundo informações do jornal O Globo.>
Léa fez uma participação especial na série Vizinhos, que estreia no Canal Brasil no próximo dia 25. Dirigida por José Eduardo Belmonte, a produção traz 12 atores que se revezam em diferentes papéis para gerar reflexões sobre o próprio comportamento.>
A artista esteve em cartaz nos palcos de São Paulo no final do ano passado ao lado de Emiliano Queiroz. Os dois apresentaram o espetáculo A Vida Não É Justa, dirigido por Tonico Pereira, no Sesc Santana.>
Neste ano, Léa ganhou uma biografia, e compareceu ao lançamento de Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: a Trajetória e o Protagonismo de Léa Garcia, escrita por Julio Claudio da Silva.>
Antirracismo>
Nascida em 11 de março de 1933 no Rio de Janeiro, Léa Garcia teve grande importância ao coroar o espaço de artistas negros na dramaturgia brasileira.>
Foi aos 16 anos que ela conheceu o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo liderado por Abdias Nascimento, conforme a biografia traçada pelo Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros). A estreia da atriz nos palcos se deu em 1952, com Rapsódia Negra, em que ela interpretava uma poesia de Castro Alves. Demorou para que Abdias a convencesse a atuar, mas Léa estaria presente em sete montagens do TEN.>
Foram inúmeros os espetáculos em que Léa esteve presente com sua voz firme. Dentre elas, estão Anjo Negro e Perdoa-me por traíres, de Nelson Rodrigues, além de outros clássicos, como Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e Piaf, ao lado de Bibi Ferreira.>
Orfeu da Conceição daria origem a uma das obras mais marcantes de sua carreira: Orfeu do Carnaval, lançado fora do Brasil como Orfeu Negro, de 1959. Dirigido pelo cineasta francês Marcel Camus, o longa foi laureado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes e também foi vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1960.>
Em Cannes, a artista foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina, mas acabou ficando em segundo lugar. Léa também colecionou participações em diversos outros filmes, como Ganga Zumba (1964) e O Maior Amor do Mundo (2006), de Cacá Diegues.>
O cineasta Joel Zito Araújo, que trabalhou com a atriz em Filhos do Vento, longa premiado no Festival de Gramado, e O Pai da Rita (2021), enalteceu a trajetória da atriz após o anúncio da morte. "Perdemos ela no apogeu do seu reconhecimento artístico, que veio tarde, mas veio. [...] Enquanto o Brasil perde uma estrela de primeira grandeza, o Orum fica mais bonito", escreveu.>
Na televisão>
O início do apogeu da carreira da atriz na teledramaturgia ocorreu no início da década de 1970, em que Léa interpretaria uma de suas personagens mais marcantes na novela A Escrava Isaura, da TV Globo. A artista viveu Rosa, uma escrava atingida pelas injustiças sociais que se tornaria uma das vilãs do folhetim.>
Outras novelas também marcariam a trajetória da artista na televisão brasileira, como Selva de Pedra, Xica da Silva e O Clone. Léa teve imenso destaque na quebra de personagens que eram direcionados a atrizes negras.>
Ativismo>
A atriz também levaria seu ativismo antirracista para fora dos palcos e das telas. Ela foi servidora pública no Ministério da Saúde, ingressando no Departamento Nacional de Endemias Rurais na década de 1960, e também trabalhando no Hospital Psiquiátrico Philippe Pinel até a década de 1990.>
No hospital, a artista desenvolveria atividades que uniam teatro e terapia em prol dos pacientes do local, que, segundo a plataforma Google Arts & Culture, possivelmente teria sido inspirada em atividades realizadas no TEN para aliviar os efeitos do racismo.>