'O Vila sempre esteve do lado de uma revolução' afirma Marcio Meirelles sobre os 60 anos do teatro

Dramaturgo estreia nesta quinta-feira (6) o espetáculo 'Josefina, a dos ratos', celebrando 70 anos de idade e seis décadas de Teatro Vila Velha

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  • Luiza Gonçalves

Publicado em 4 de junho de 2024 às 10:38

Dramaturgo e diretor Marcio Meirelles
Dramaturgo e diretor Marcio Meirelles Crédito: Divulgação/Tiago Lima

“Cada coisa que eu faço para mim é um desafio, porque não me interessa fazer o que eu já fiz”, afirma Marcio Meirelles. A passagem do tempo não faz parar o diretor baiano, que segue cheio de projetos e completou 70 anos recentemente, dos quais 52 são dedicados ao teatro e à gestão cultural. 

Nesta quinta-feira (6), às 19h, Meirelles estreia, às 19h, seu novo espetáculo Josefina, a dos Ratos, no Museu de Arte da Bahia (MAB). A peça é uma adaptação do conto de Franz Kafka, encenada pelo elenco da Universidade Livre do Teatro Vila Velha, programa de formação em teatro desenvolvido pelo Vila.

A montagem faz parte de mais um marco: os 60 anos de atividades do Vila Velha, inaugurado em 1964. A comemoração desloca-se para os espaços culturais da cidade, dentre eles o MAB, devido a um novo ciclo de reformas do Vila previsto para serem concluídos até o primeiro semestre do ano que vem.

Em entrevista ao CORREIO, Marcio Meirelles contou sobre a escolha de Kafka para este espetáculo, sobre o sexagenário Vila Velha e sua atuação na cena cultural baiana neste ano. 

Este é um ano para celebrar seus 70 anos de idade. Como você chega a esse momento?

O tempo é contínuo. O tempo é, o tempo está e a gente vai passando e vai fazendo coisas. Não existem essas marcas 70, 50, 20. O tempo vai e a gente segue. São muitas coisas que têm acontecido nos últimos tempos, a reforma do teatro, a exposição comemorativa 60 anos, tudo são efemérides que a gente na verdade usa para lembrar coisas, para marcar as coisas, né. Mas eu, pessoalmente, me sinto seguindo, atravessando o tempo e todas essas coisas.

O que te motivou a escolher o conto de Franz Kafka - Josefina, a cantora, ou O povo dos ratos - para essa montagem?

Esse ano a gente precisava fazer um espetáculo com a Universidade Livre, que fazemos todo o ano, e não sei por que eu estava mexendo nos papéis e dei de cara com a pasta de Josefina. Comecei a ler o texto e achei que tinha tudo a ver com agora, com esse momento e propus a eles. Fizemos uma leitura e eles curtiram a ideia da gente fazer esse conto, transformar ou traduzir esse texto para a cena. E as coisas estão nas dobras do tempo exatamente: são 100 anos de morte de Kafka, não sabia antes de escolher, e Josefina foi o último conto que ele escreveu por completo. E tem tudo a ver. A gente vai lendo, pesquisando e entendendo. No final de sua vida, Kafka quase já não falava mais porque ele teve tuberculose, a laringe estava fechada e ele escreve um conto sobre uma cantora, sobre alguém que usa a voz e sobre um povo que não escuta essa voz, ou que escuta da sua maneira, não como essa voz se pretende ser emitida. E é uma reflexão sobre o isolamento do artista, que não é mais do que um ser humano como os outros, só que consegue ser um entre os outros. O grande feito do artista é fazer com que as pessoas, seus iguais, se reúnam em torno do que ele tá mostrando e suspendam o tempo para que, no coletivo, possam ouvir.

Você fez uma versão de Josefina em 1990. O que mudou na sua abordagem nesses 34 anos? Como foi a adaptação?

Cada coisa que eu faço para mim é um desafio, porque não me interessa fazer o que eu já fiz. Essa Josefina é completamente diferente da Josefina de 90, apesar de ser o mesmo conto, e é um grande desafio botar jovens atores e atrizes, ainda em formação, praticamente o tempo inteiro da peça sentado e falando o texto inteiro do conto. Não cortei nada. Não editei nada. Somente vamos traduzir o que é literatura para ser cena. Como diriam os grandes escultores: a estátua tá dentro do bloco de mármore, é só fazer ela aparecer. A cena está lá no texto, é só fazer ela aparecer. A peça é uma assembleia e o que era uma narrativa de um único crítico, vira uma polifonia, dois coros, que debatem uma situação complexa para a comunidade de ratos: se aquela rata de fato canta, se é de fato cantora e, se não, como ela consegue juntar tanta gente ao redor para ouvi-la chiar, como eles próprios chiam.

E isso se relaciona com assuntos contemporâneos…

Sim. É uma peça que é uma assembleia discutindo uma situação que se assemelha a situação da arte numa sociedade que vai se encaminhando para um lugar tão perigoso, tão desastroso, que está devastando o próprio meio ambiente, o próprio lugar onde vive, a própria casa. E isso está tendo muitas consequências visíveis e sensíveis. Estamos vivendo todas essas consequências que já vinham sendo sinalizadas há muito tempo pela natureza, e a gente continua na ganância, no dia a dia, no trabalho, sem parar para pensar, refletir, sentir, para se sensibilizar.

Os atores da peça são da Universidade Livre. O que é esse grupo dentro do conjunto de ações do Vila Velha?

É uma sistematização do que sempre foi um processo de formação. É um programa de formação, no sentido de que são apresentadas ferramentas e maneiras de usá-las. Não existe uma grade curricular ou um método, o método é escutar, ouvir quem vem, que tempo é esse e o que a gente faz agora nesse momento, que grupo tá junto agora e como que a gente pode levar esse grupo a se formar artista. Eu acho que ninguém forma o artista, ele que se forma. Você pode informar, pode mentalizar, mas o artista se forma, se quiser se formar. Pega todas essas informações e constrói seu próprio método criativo, seus procedimentos.

Neste ano também se comemoram os 60 anos do Vila Velha. Qual é a importância desse espaço cultural?

Acho que a importância do Teatro Vila Velha é por ele ser um teatro independente, sempre foi durante os 60 anos, e sempre gerido por artistas. O princípio do Vila Velha é o dos encontros, da arte, da reflexão, da inclusão, do vamos tentar, experimentar e arriscar. Essa é a força do Teatro Vila Velha. Tanta gente começou lá exatamente por ser um espaço que está sempre aberto para quem chega. Além disso, é um espaço que sempre se posicionou politicamente em relação à democracia e em relação a questões políticas e sociais. Isso também marca o teatro. O Vila sempre esteve do lado de uma revolução, da inovação, do avançar, nunca de retroceder.

O Teatro Vila Velha está passando por um momento importante com as reformas. Como tem sido esse processo?

Em novembro do ano passado, a gente encerrou as atividades com um show de Bem Gil e Moreno Veloso, que remonta ao primeiro show de inauguração do Vila em 1964, que tinha dentre seus integrantes os pais, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Depois disso, começamos a fazer coisas fora do teatro, Vila Velha com esse selo, Vila Ocupa a Cidade e o espetáculo Josefina dentro desse projeto, com selo Vila Ocupa o MAB. Já fizemos oficinas, vivência, residência, espetáculo e leituras não só no MAB, mas em outros lugares da cidade, porque antes de ter o prédio do Vila Velha, o Vila ocupou a cidade. A reforma iniciou agora e a previsão de entrega é no primeiro semestre do ano que vem. É uma reforma que vai adequar o prédio aos novos padrões de acessibilidade e de segurança, que demora um tempo, mas que a ideia não é desfigurar o teatro e sim torná-lo adequado.

SERVIÇO: Espetáculo “Josefina, a dos ratos” - Cia. Teatro dos Novos e Universidade LIVRE de Teatro Vila Velha I Dias 06, 07, 08, 09, 13, 14, 15 e 16 de junho, de quinta a sábado, às 19h, e no domingo, às 17h, no Museu de Arte da Bahia I Ingressos: R$ 20/40 (meia e inteira) disponíveis na plataforma Sympla