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Maria Raquel Brito
Publicado em 9 de dezembro de 2025 às 06:30
Às vezes, uma inesperada dor no joelho e uma mãe centenária são o necessário para o surgimento de um novo interesse. Foi essa junção que fez com que a historiadora e escritora Mary Del Priore começasse a se debruçar sobre a história da velhice no Brasil, do período colonial aos dias atuais. Passeou por documentos históricos, jornais, memórias, correspondências e depoimentos literários para traçar um painel da velhice de homens e mulheres ao longo de quatro séculos de história. Disso, nasceu o livro “Uma história da velhice no Brasil” (Editora Vestígio, R$ 74,90), publicado no início deste ano. >
Na próxima quarta-feira (10), a autora estará em Salvador para um bate-papo e sessão de autógrafos com os leitores baianos. No encontro, que acontece na Livraria LDM do Shopping Bela Vista a partir das 18h30, ela conversará com a também historiadora e professora Lizir Arcanjo sobre esta e outras obras de sua autoria. >
Mary Del Priore lança 'Uma história da velhice no Brasil' em Salvador nesta semana
Sócia honorária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e membro da Academia Paulista de Letras, Mary Del Priore tem mais de 50 livros e muitos prêmios no currículo – incluindo um Jabuti pela obra “Sobreviventes e Guerreiras” (Planeta do Brasil) em 2021. No título mais recente, fala com humor sobre o cotidiano, afetos, hábitos e das formas de driblar os problemas da velhice de nossos antepassados. >
Em conversa com o CORREIO, ela fala sobre o processo de escrita do livro, os maiores obstáculos enfrentados pelos idosos no Brasil e como envelhecer com qualidade em meio à desigualdade do país. >
Confira a entrevista:>
1. Qual foi o pontapé inicial para que a senhora começasse a estudar a velhice? >
É tão interessante, tudo começou porque eu tô com já tô com idade, já tô velha e tive uma dor alucinante no joelho, ao mesmo tempo tive que cuidar da minha mãe de 100 anos. E essas duas coisas pararam por um problema que hoje é no Brasil talvez o problema mais importante para pessoas da minha geração. Eu sou baby boomer, aquele pessoal que nasceu aqui entre 1946 e 1964. Então, o que está acontecendo é que essas pessoas todas estão envelhecendo, mas estão sendo obrigadas a cuidar dos seus pais. E isso provoca muitos dramas íntimos, quer dizer, tem pessoas que têm que largar o emprego, tem pessoas que têm que parar de morar com a família para morar com os pais, outras que têm dramas de consciência que sofrem, que não podem dar aos pais velhos aquilo que gostariam. Tem pessoas que se revoltam porque tem que dar para os pais velhos aquilo que elas não têm.>
O que está acontecendo hoje na sociedade brasileira é um quadro que só vai se agravar, porque nós, em 30 anos, vamos ter mais velhos do que jovens no Brasil. E se os velhos hoje têm condições de ter uma aposentadoria decente, têm o SUS para ampará-los, têm o SESC que é um lugar onde eles podem ir brincar e conversar, daqui a 30 anos nós não sabemos se o Brasil terá condições de suportar os seus velhos. Porque o Brasil ficou velho antes de ficar rico. E nós não vamos ter jovens suficientes trabalhando para dar esse conforto esperado para os velhos. O meu ponto de partida foi observar tudo isso e me perguntar que lições nós poderíamos tirar dos velhos na história. Quer dizer, como é que os velhos antes de nós sobreviveram a todas as dificuldades que passaram, porque não havia médicos, não havia hospitais, não havia SUS, não tinha aposentadoria. Como é que isso tudo foi evoluindo historicamente?>
2. Como foi o processo de pesquisa do livro? O que encontrou que mais te marcou?>
Esse livro é um pouco pioneiro, mas, até para estimular mais estudos, eu diria que tem muita coisa sobre a velhice. E o que mais me impressionou foi encontrar velhos octogenários, nonagenários. A documentação do período colonial, por exemplo, que todo mundo achava que no Brasil as pessoas não passavam dos 20 anos, passavam e muito. Podiam ser muito longevas.>
Isso foi uma coisa que me impressionou, a gente já vê isso nas cartas dos padres jesuítas, que são os documentos mais descritivos que nós temos desse período. E depois, muito interessante também, como sempre a velhice é associada à impotência sexual. E daí essa obsessão que a gente tem desde o período colonial até os dias de hoje por corrigir a impotência, porque a impotência que anunciava, no passado, o fim da idade madura. Hoje, as mulheres falam em menopausa, mas eu lembro que esse é um tema extremamente atual. Durante muito tempo, os médicos geriatras falavam que esse é o momento em que a mulher pede maior carinho do marido, maior atenção, porque ela fica muito fragilizada.>
Agora você veja, no passado, a mulher que entrava na menopausa ganhava a força de um homem, ela virava quase um homem na sua comunidade. Ela era convidada a participar da reunião dos velhos chefes, a opinião dela era escutada, é como se a menopausa, ao invés de diminuir a mulher, desse a ela um acréscimo de poder. Ela ficava tão poderosa quanto o homem.>
3. O que mais mudou nos pensamentos sobre a velhice do período colonial para cá, nas diferentes culturas que formaram o Brasil? Quem era o “velho” antes?>
Pessoas de todos os tamanhos, cores e credos, quando velhas, eram extremamente reverenciadas. No livro, eu mostro como os velhos eram reverenciados na senzala, como eles eram reverenciados entre as populações indígenas, entre os mestiços pardos e brancos, quer dizer, o “velho” era sinônimo de sabedoria, de poder, era ele que de alguma maneira dirimia as tensões familiares e que cuidava também da própria família, que acolhia em casa uma irmã viúva, uma cunhada solteirona. E a figura do velho patriarca era uma figura central na nossa história.>
Tanto mais que até o início do século XX, o velho tinha que ser útil à coletividade, a medicina conhecia muito pouco dos problemas de velhice e de higiene, e o velho, portanto, tinha um compromisso com a atividade, ele estava sempre de alguma maneira em ação, trabalhando, sendo útil dentro da casa. Mas, com a chegada da aposentadoria em 1924, o velho vai perder esse papel, digamos assim, de força, de preeminência, porque vai passar de ativo a inativo. E essa ideia de inatividade, de aposentado, aquela pessoa que fica no aposento, que fica lá fechado, é uma coisa que vai impactar negativamente a figura do velho, que passa ser a de alguém que precisa de cuidados, alguém que está isolado e que não é útil à sociedade, que não está não está trabalhando. >
Junte-se a isso o fato de que é nessa época que a juventude começa a aparecer no Brasil. Então, por exemplo, a semana de 22 em São Paulo, a famosa Semana de Arte Moderna, vai introduzir essa clivagem entre velhos e jovens. Os jovens são sinônimo de mocidade, são sinônimo de velocidade, são sinônimo de futurismo, de modernidade. E os velhos são aquelas pessoas que estão ali para cuidar dos seus netinhos, para zelar pelo que restou das famílias grandes que já não existem mais.>
Depois disso, em 1960, vai ficar mais forte ainda, uma mudança ainda mais revolucionária, porque é a época em que a juventude brasileira vai explodir. Ela vai fazer a revolução sexual, vai lutar contra a ditadura, ouvir rock and roll, deixar os cabelos compridos, começa a estar nas praias. Surge o biquíni, por exemplo, os esportes radicais. Então, tudo isso vai aumentando a distância entre velhos e moços. É quando o velho começa a ser chamado de velho babão, velho gagá, a velha é chamada de velha coroca. Há um preconceito realmente que começa a nascer nessa época, momento em que a geriatria vai se afirmar mesmo como ciência, como disciplina dentro da medicina.>
E o mais interessante é que a geriatria nessas décadas de 70 e 80, vai determinar que a velhice chegava aos 40 anos. Hoje, nós já estamos em 70 anos. Um homem velho ou uma mulher velha era alguém de 40 anos. Então são muitas mudanças. Nós vimos no final do século os velhos participando ativamente da Constituinte de 88 e sempre lutando por melhores condições de vida, e eles vão realmente aos poucos ganhando essas melhorias. Os direitos dos velhos vão aumentando e há uma melhoria consistente também na vida deles, que agora podem transitar em toda parte, têm recurso para isso, sobretudo as mulheres velhas que conseguem guardar mais dinheiro do que os homens. Tudo isso vai modificando a vida do velho. E hoje os idosos conseguem prolongar muito a vida. Tem muita gente centenária no Brasil, mas prolongar a vida não significa viver bem. As pessoas muitas vezes estão prolongando a vida na situação que eu estava descrevendo no início da nossa conversa.>
4. A senhora mencionou a questão de envelhecer bem. Como se preparar para a velhice num país tão desigual como o Brasil, com diferenças gritantes no acesso à saúde, à qualidade de vida e ao envelhecimento com autonomia?>
É o que os nossos antepassados buscavam. Nós encontramos centenários nas senzalas, encontramos centenários entre operários aposentados. Ser centenário é uma coisa perfeitamente possível. A questão que se coloca hoje é quando as famílias não são mais mais um suporte para o velho, porque os velhos eram absorvidos pelas famílias, eles gozavam de um prestígio muito grande dentro das famílias. Mas, hoje, ao contrário, todo mundo quer levar o velho para algum lugar que ele não incomode, não atrapalhe. Então, nós velhos temos que nos preparar para envelhecer de forma autônoma. Nós mesmos temos que ter essa consciência, cuidando da nossa saúde, prestando atenção para não deixar para ir ao médico no último momento, organizando a nossa aposentadoria de forma que a gente não precise depender dos nossos filhos e netos.>
É muito mais uma questão de criar uma consciência do envelhecimento do que ficar, como ficam muitos influencers e comentaristas, dizendo que a velhice é uma coisa maravilhosa, que o velho tem que fazer surf, que a velha tem que fazer academia, que tudo é ótimo e maravilhoso. Não é. A velhice é um momento de travessia, de muitas perdas. As pessoas perdem seus entes queridos, os velhos têm muitas dores, são dores que muitas vezes os remédios não curam. Os velhos estão muito isolados e sozinhos, a solidão também é uma solidão imposta, não é uma solidão escolhida. Então essa consciência do envelhecimento é uma coisa que a sociedade brasileira tem que começar a tratar.>
5. Nesse processo, a linguagem é uma ferramenta importantíssima para criar e acabar com preconceitos. A senhora já falou algumas vezes a sua opinião sobre termos que maquiam ou tentam “suavizar” a velhice, como “envelhescência”. A que associa essas tentativas e essa imagem do envelhecimento? Considera que é uma espécie de negação dessa fase da vida? >
Concordo plenamente. Eu acho que é uma forma de negação, mas eu acho também que é uma forma de costume. Acho que nesse mundo capitalista no qual nós vivemos, você falar “envelhescência” e promover o rejuvenescimento, promover esse velho atlético, moderno, que tem sempre recursos físicos ou financeiros, isso faz parte também do mundo em que vivemos, onde a imagem é muito importante.>
Essa imagem vai falsear a verdade da velhice, que é uma verdade feita de dores físicas, de perdas de entes queridos, como eu já falei. Então eu acho muito mais importante a nossa consciência do tempo que passa, enfrentar isso com dignidade, sem vitimismo, porque também a nossa sociedade está cheia de vitimismo, e isso é uma coisa bacana que a gente vê no passado, no depoimento de homens como Joaquim Nabuco e outros pensadores como Machado de Assis, que vão escrever sobre a velhice. Não há coitadismo na velhice, há coragem. As pessoas enfrentavam a velhice com dignidade, com coragem.>
E hoje eu acho que esse mundo do consumo e da imagem obrigam o velho a deixar de lado essa dignidade e vestir uma imagem do velho que se quer jovem, do velho que, para continuar vivendo nessa sociedade do consumo, tem que ter dinheiro, tem que estar ali pronto, graças ao Viagra, para ganhar suas namoradas, para implantar cabelo. Então mistura a imagem com o consumo, com essa sociedade na qual nós estamos, que quando não gosta de determinados assuntos, procura mascará-los.>
6. Hoje, sente que o culto à juventude está mais intenso? >
Olha que interessante. A gente vê que a preocupação das matriarcas até os anos 1920 e 1930 era justamente cuidar dos seus e estar ali em casa sendo útil de alguma maneira. É quando as revistas com imagens começam a bombardear a vida das mulheres que elas vão cada vez mais correr atrás dessa imagem de beleza. Nos anos 70, que chega aqui a cirurgia plástica e começa a ser vendida em prestações, as mulheres estão numa situação tão nova na vida delas. É o momento em que as mulheres estão no mercado de trabalho, mas é um momento também em que o divórcio chega ao Brasil. E é óbvio que elas vão ficar muito inseguras com a possibilidade de perderem o emprego porque não têm mais boa aparência ou de perderem o marido porque envelheceram. E aí vão cair de boca na cirurgia plástica. Isso é uma coisa dita por estudiosos da coisa da beleza.>
Então, quanto mais imagens de jovens, mais as mulheres terão essa preocupação de rejuvenescimento. Mas é uma preocupação enganosa, porque você não consegue disfarçar a velhice nos seus joelhos, no seu cotovelo. Então, ela pode se esticar à vontade, mas o resto do corpo vai acusar a verdadeira idade da carteira de identidade. >
São todas questões que estão sendo colocadas hoje e a sociedade brasileira não está muito consciente. Os velhos ficam preocupados em parecer jovens, fazendo implantes de dentadura, de cabelo, fazendo cirurgia plástica, tomando Viagra, mas não estão com a essência da coisa que é como envelhecer com dignidade, sem ser um peso para os filhos. E isso certamente vai evoluir mais para frente, para nós começarmos a pensar no Brasil a questão da morte assistida, da eutanásia, porque não vai ter leito de hospital para todos os velhos daqui a 30 anos, porque eles serão um número enorme. Essa questão vai ter um encaminhamento natural na nossa sociedade, como está tendo em todas as outras sociedades.>
7. Como sente que é envelhecer no brasil atualmente?>
Eu acho que hoje há, primeiro, uma verdadeira febre desse assunto, porque você vê velho em toda parte. Eu ando nos aeroportos pelo menos uma vez por semana, hoje a fila dos idosos é maior do que a do resto do avião, né? [risos] É uma realidade: os velhos chegaram e o idadismo vai desaparecer, porque haverá mais velhos do que jovens. Então, é provável que o preconceito se inverta. É muito provável que daqui a dez anos um velho diga: ‘ah, aquele coitadinho daquele jovem que é um babão, que não sabe nada’. Eu acho que o número de velhos também vai mudar o comportamento que se tem em relação a eles, e você falou uma coisa certíssima desde o início, quer dizer, o Brasil é um país muito desigual.>
Então, vai caber ao Estado se responsabilizar por aqueles velhos que não têm condições, mas eu lembro que o Brasil já tem políticas muito assertivas em relação aos seus idosos. Temos políticas no mundo todo, porque o mundo está envelhecendo, não é só o Brasil, isso é um fenômeno mundial. >
8. Até 2070, quase 40% da população brasileira será composta por pessoas acima de 60 anos, de acordo com projeções do IBGE. Por quais mudanças o país precisa passar para entender essa realidade, quando falamos, por exemplo, em mercado de trabalho? O que deve estar no planejamento?>
Eu estive recentemente num evento muito importante no Rio de Janeiro, que reuniu 250.000 pessoas, sobre negócios. Negócios que poderão ser comandados por pessoas que hoje fazem parte dessa chamada geração prateada. É óbvio que a formação a que esses baby boomers, as pessoas que hoje tem 60, 70 anos, tiveram é uma formação muito ampla, muito boa, e essas pessoas não querem se aposentar. Aposentadoria para elas não é o que era no passado, aquele negócio de ‘ai, agora estou aposentado, não vou fazer mais nada’. Não. Hoje a aposentadoria libera as pessoas dessas idades, 60, 70 e até 80, para seguir trabalhando exatamente como no século XIX, em que as pessoas queriam continuar trabalhando e sendo úteis. >
Então, eu acho que no mercado de trabalho, os seniores vão ter uma palavra a dizer. Eles vão poder criar negócios com o know-how que têm, vão poder levar a sua experiência de trabalho e de convívio para o mundo do trabalho e quem ganha com isso é todo mundo. Ganha o velho e ganha o moço: o moço vai ganhar com a experiência do velho e o velho vai ganhar com a energia da juventude. Isso é uma questão que tem que ser tratada cada vez mais pelas empresas e pelo mundo do trabalho.>