Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Da Redação
Publicado em 1 de maio de 2014 às 11:14
- Atualizado há 2 anos
A impressão é que para onde quer que se olhe uma exposição de peitos, bundas e outras “coisitas” mais saltam às vistas. Nas artes, na mídia, entre amigos e até desconhecidos, sexo é assunto recorrente. Na música não é diferente. Cantores como o carioca Mr. Catra e baiano Robyssão fazem do tema assunto principal de seus repertórios. Mas falar de sexo nas canções não é uma exclusividade nem tampouco pioneirismo de Catra, Robyssão, do funk ou do pagode. Artistas consagrados da MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gonzaguinha já fizeram isso há décadas e também não foram os primeiros.“O boom de produção da música de sacanagem no Brasil é consequência de séculos de moralismo e dos anos de censura no país”, explicou ao Trabalho com Sexo o autor do livro “História Sexual da MPB”, o jornalista carioca Rodrigo Faour, que em seu livro faz um levantamento detalhado sobre sexo na música nacional. A obra revela que diversos cantores eternizaram versos sensuais de canções que traziam em suas letras, principalmente, metáforas e duplos sentidos, estratégia comum para burlar a moral e a censura.Livro traz levantamento das músicas sensuais (e sexuais) produzidas no Brasil. (Foto: Divulgação)A história começa lá atrás, no final do século XVIII. O poeta e músico brasileiro Domingos Caldas Barbosa inovou cantando lundus e modinhas mais apimentadas, grande ousadia para a época de trovadores e violeiros do amor romântico, predominante no cenário musical do país. Nos últimos anos do século XIX, o Brasil já não era oficialmente um país escravocrata. Os negros escravizados que viviam nas imediações urbanas do Rio de Janeiro passaram a ocupar os morros cariocas e teve início o processo de favelização. Neste contexto surge um jeito novo de se dançar: o maxixe. A dança, considerada erótica para época, é um marco apimentado na música brasileira. “Naquele tempo qualquer música tocada mais rapidinha era chamada de maxixe, posteriormente se criam letras para aquela melodia e assim o maxixe vira ritmo musical. Alguns dançarinos colocavam a coxa embaixo da perna da mulher, isso no início do século passado era atentado violento ao pudor”, brinca Rodrigo.A partir dos anos 40 entra em cena o baião e o forró. Dançando agarradinho, a canção tradicionalmente nordestina inova principalmente na performance de se dançar a dois, mas também em algumas letras mais quentes como “Xamego”, escrita por Luiz Gonzaga e Miguel Lima, em que até as senhorinhas são lembradas: “Quem não sabe o que é o xamego pede pra vovó/ Que já tem 70 anos e ainda quer xodó”. Mesmo com pequenos focos de liberdade sexual aqui e ali, músicas de cunho sensual (ou sexual) eram muito raras. Cantar sofrimento é o que dava certo nas primeiras décadas do século XX. Mas o carnaval sempre veio compadecer todos os padrões. “Na festa momesca o moralismo dava uma trégua e músicas ‘safadinhas’ tomava as rádios”, explica Rodrigo.Rodrigo Faour, autor do livro "História Sexual da MPB". (Foto: Divulgação)Nos anos 60 surge a bossa nova, e a música “dor-de-cotovelo” deixava de ser preferência absoluta e vai aos poucos cedendo espaço para as novas tendências. Na segunda metade da década, Vinicius de Moraes emplaca canções como “Garota de Ipanema” e “Ela é carioca”, que traz romance e sensualidade e cai no gosto dos ouvintes. Ainda na década de 60 surge a Jovem Guarda e pela primeira vez no Brasil se produz música direcionada para a juventude. Aos 20 anos, o ‘tremendão’ Erasmo Carlos se consagra como o bad boy da época e arrebata as adolescentes do país. Ele cantava “Se você quer brigar e acha que com isso estou sofrendo/ Se enganou meu bem/ Pode vir quente que eu estou fervendo”.Até aquele momento, as produções musicais brasileiras eram sempre em perspectivas masculinas. A mulher ainda era vista como um bibelô, sua sexualidade era muito pouco cantada, principalmente por vozes femininas. PÉROLA NEGRAAté então, o que havia de picante na música brasileira quase não ardia. A sexualidade era tratada de maneira muito sutil. As letras não continham palavras que fizessem alusão direta ao sexo ou ao corpo. Mas nos anos 70 esse cenário mudou. A década “leite na cara dos caretas” é o marco da revolução comportamental brasileira. Nossa música acompanhou a tendência e logo no início da década, em 1971, Luiz Melodia produz “Pérola Negra”. Segundo o livro “A História Sexual da MPB”, foi a primeira vez que uma música contendo a palavra “sexo” fez sucesso: “Tente entender tudo mais sobre o sexo. Peça meu livro, querendo te empresto” – cantava Gal Costa.Gal Costa, a primeira intérprete brasileira a gravar uma música com a palavra "sexo". (Foto: Reprodução)Nos anos 70 a ditadura militar vai perdendo força e compositores como João Bosco, Gonzaguinha e Chico Buarque produzem em larga escala canções sensuais que fizeram sucesso na voz das divas da MPB. A poesia musical, em eu lírico feminino, evoca pela primeira vez o desejo sexual das mulheres até então jamais cantado. A moda pega e em 1980 Nana Caymmi canta: “Ah, vem cá, meu menino, pinta e borda comigo. Me revista, me excita, me deixa mais bonita”, trecho da música “Mudança dos ventos”, gravada por ela e composta por Ivan Lins e Vitor Martins. Os amigos fizeram para Nana a música quando ela namorava o então cantor e compositor da banda Boca Livre, Cláudio Nucci, 20 anos mais novo.A virgindade feminina, tabu intocável, cai por terra na voz Wando em 1975: “Moça, sei que já não é pura”. A música “Moça” vende mais de 1 milhão e 300 mil compactos.Em 1978, Gretchen explode cantando uma mistura de português, francês e espanhol, hits sensuais com tendência latina, algo entre a salsa e o merengue. A cantora vira queridinha da indústria cultural e fica conhecida como “A Rainha do bumbum”, que escandalizava no visual seminu. Uma pioneira.Outra que veio ao mundo para polemizar é a cantora Rita Lee. Ela deu o toque que faltava à letra de Nelson Motta “Perigosa” (“Sei que eu sou bonita e gostosa / E sei que você me olha e me quer”). Na versão original a música terminava com o verso: “Eu vou fazer você ficar louco”. Não era o bastante para a rainha do rock brasileiro, e assim ela acrescentou três palavras definitivas: “Dentro de mim”. Resultado: um sucesso retumbante na voz das Frenéticas. A cantora, mais tarde, em 2003, lança o disco “Balacobaco”, todo em homenagem ao sexo.Quem foi jovem em 70 sabe bem a importância desta década para a consolidação da liberdade civil no Brasil. A repressão dos anos de chumbo, a castidade feminina, a criminalização da homossexualidade, tudo começa a ruir em 70 de modo que os jovens dessa época experimentaram o grito e o gozo da liberdade. “Tudo parecia ir bem até que estourou a Aids. Na segunda metade dos anos 80 encaretou tudo de novo e voltou a ser difícil encontrar uma música mais safada. Isso só reacende já nos 90 com o grupo É o Tchan, setores da Axé Music e mais recentemente no samba romântico-sensual de grupos como Exaltassamba, Sorriso Maroto e Revelação, entre outros”, conta Faour.O PAGODE, O FUNK E AS NOVINHASDas marchinhas apimentadas de Domingos Caldas Barbosa, lá do século XVIII, ao funk carioca e a quebradeira na Bahia, a musicalidade nacional abordou temas polêmicos e tabus intocáveis. Se antes o incômodo ficava no silêncio e na negação do prazer sexual feminino, a polêmica agora é outra. Para uns, os pagodeiros e funkeiros ‘coisificam’ a mulher em suas composições. Para outros, as próprias mulheres se vulgarizam ao ocuparem espaços como cantoras, dançarinas ou até mesmo fãs de estilos musicais que frequentemente abordam sexualidade em suas letras e, por vezes, se referem a elas de forma pejorativa.Valeska Popozuda, ícone do funk carioca. (Foto: Reprodução)O pesquisador Wellington Pereira, mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), acredita que “as composições de pagode e funk, na sua maioria, sexualizam o corpo da mulher, subjugando em especial meninas pobres e negras, que são maioria entre os fãs destes estilos musicais”. Na opinião do jornalista Rodrigo Faour, algumas letras de funk exageram nas expressões e conteúdos machistas, mas ele diz não encontrar necessidade de tantas críticas: “É desse jeito que o jovem de periferia se expressa, a maioria dessas produções tão criticadas são coisas de adolescentes, não dá pra ficar levando tão a sério. A garotada está no auge da libido, da mesma forma como Erasmo (Carlos), aos 20 anos, cantou ‘pode vim quente que eu estou fervendo’”.Para Silvia Roberta (25 anos), moradora do bairro de Fazenda Coutos I, em Salvador, existe um fenômeno de culpabilização do pagode e dos pagodeiros pela violência contra a mulher. “É como se os jovens da periferia estivessem inventando o machismo. Caetano Veloso tem música que chama mulher de piranha (Não Enche). Chico Buarque fala da mulher como individuo que vive em prol e a serviço do marido (Cotidiano) e as mesmas críticas nunca são feitas a eles e tantos outros”, desafia a jovem, que orgulhosamente se declara pagodeira. Silvia é formada em Gestão Ambiental pela Unijorge e se planeja para ingressar no mestrado. Sua intenção é dissertar sobre o papel da mulher no pagode. A jovem explica sua relação com o tema: “como a maioria das meninas das periferias soteropolitanas, fui socializada com Pagode, gosto e ouço bastante”. Ela conta que durante a graduação participou do projeto Cine Art’a, uma iniciativa da Uneb, que promove a formação de profissionais na área de cinema e audiovisual. Como produto do curso, a jovem e mais alguns colegas produziram o documentário “Pediu pra parar?” (2012). O doc. traz a reflexão sobre o papel da mulher no pagode,fugindo da abordagem convencional que enxerga as pagodeiras na condição de vítima, desta experiência surge seu projeto de mestrado. “A mulher que tá no pagode não está lá sem saber do que se trata, ela compreende a lógica e participa dela. No exercício da nossa liberdade escolhemos ouvir o que ouvimos e dançar o que dançamos, e isso é feito de maneira consciente”, defende.O que falta na Bahia e sobra no Rio são Tatis, Valeskas e meninas-maravilha. O pagode baiano, em sua produção, ainda é um espaço hegemonicamente masculino e não há sinais de mudança aparente neste quadro. “A Bahia é um estado atrasado. Nos bairros, as bandas e eventos de pagode mobilizam toda juventude, as meninas colam em absoluto, mas não se organizam para escrever e cantar. Elas ficam tão a vontade neste espaço que talvez não percebam a importância de movimentar os papéis. Espero ver em breve uma Valeska pagodeira por aqui”, completa Silvia.>