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Hagamenon Brito
Publicado em 25 de agosto de 2014 às 04:49
- Atualizado há 2 anos
Filho do bamba João Nogueira (1941-2000), o cantor Diogo Nogueira, 33 anos, teve o privilégio de ver, na infância, o mestre Baden Powell (1937-2000) tocar alguns dos famosos afro-sambas que ele compôs em parceria na década de 1960 com o poeta Vinicius de Moraes (1913-1980). João e Baden eram grandes amigos.Diogo Nogueira e Hamilton de Holanda: repertório de 13 faixas reúne inéditas e também clássicos da MPB (Rafaê Silva/Divulgação)O bandolinista Hamilton de Holanda, 38, que entende tudo e mais um pouco de choro e da tradição musical brasileira, sempre esteve ligado nos afro-sambas e interpreta(va) Canto de Ossanha e Canto de Iemanjá em seus shows (gravou ao duas, aliás, no disco Esperança – Ao Vivo na Europa, de 2010). Unidos pela inspiração da obra de Baden e Vinicius, os dois músicos cariocas - e flamenguistas - atualizam os afro-sambas com Bossa Negra (Universal Music), que tem lugar assegurado no Top 10 dos melhores álbuns nacionais da temporada 2014.MagiaO trabalho não foi planejado, não teve nada calculado, contam Diogo Nogueira e Hamilton de Holanda numa confortável sala da gravadora Universal na Barra da Tijuca, na ensolarada tarde invernal carioca.Eles fizeram um duo em um show em Miami, nos Estados Unidos, em 2009, sem ensaio e com repertório montado na hora (e já com Canto de Ossanha), e a ideia de um trabalho conjunto foi ganhando corpo de "forma natural", enquanto os dois seguiam com suas movimentadas agendas individuais."Aquele show deu uma sensação de coisa boa, aquela magia do encontro, de algo bacana, mesmo. No camarim já surgiu, a gente conversando, a ideia de fazermos algo juntos na linha dos afro-sambas - e aí já veio o nome bossa negra", afirma Hamilton, que este ano já havia lançado Caprichos (projeto composto por um disco duplo e um site onde o internauta pode baixar gratuitamente o trabalho: hamiltondeholanda.com/caprichos).Desse primeiro encontro até a gravação do álbum, tudo evoluiu de modo espontâneo, incluindo a amizade entre os dois artistas. "Daquela época até hoje acho que existe uma sintonia. A gente não compete. Diogo é cantor, com o canto bonito dele, e eu sou instrumentista solista e temos uma maneira leve de ver as coisas. E tem a junção também de André Vasconcellos no baixo acústico e Thiago (da Serrinha) na percussão, que arredonda tudo. É um encontro harmônico no sentido de haver respeito, ouvir o que o outro está fazendo, no sentido de se complementar e fazer uma música bonita", diz o bandolinista."É exatamente o que Hamilton diz. A sintonia entre a gente é muito forte. É algo leve que está sempre balançando e movimentando em harmonia", concorda Diogo, que este ano participou do projeto Nivea Viva o Samba, com Martinho da Vila, Alcione e Roberta Sá, passando por seis capitais - Salvador, inclusive - com shows gratuitos em praças públicas.Ok, caboclo!O repertório de Bossa Negra, com 13 faixas, inclui inéditas e clássicos de Caetano Veloso (Desde Que o Samba é Samba, numa releitura com muita personalidade), Pixinguinha & Vinicius de Moraes (Mundo Melhor), João Nogueira e Paulo César Pinheiro (Mineira) e Ary Barroso (Risque).A faixa homônima ao título abre o disco numa parceria de Hamilton e Diogo com Marcos Portinari (um dos idealizadores do projeto) e traduz bem o espírito de um trabalho admirável que miscigena ritmos e gêneros: o bandolim de dez cordas e os tambores vibrantes embalam o grito e a risada finais: "Ok, caboclo!".A inédita Salamandra, belezura de João Nogueira e Paulo César Pinheiro que explícita seu DNA afro-samba, foi entregue por Paulo a Diogo, numa fita-cassete, para que o sambista a gravasse em seu primeiro álbum, em 2007, mas ele acabou não gravando a música."Na época, eu estava procurando músicas de meu pai para gravar no meu disco de estreia, mas Salamandra não entrou e acabei perdendo a fita. Agora, lembrei dela, comentei com Hamilton e fui atrás do Paulo. Minha sorte foi que ele tinha outra cópia da fita, gravei no meu celular e mandei para Hamilton fazer o arranjo", lembra Diogo.WhatsAppPor falar em celular, outra modernidade tecnológica teve uma pequena participação no processo de feitura de Bossa Negra, cuja bossa do título tem a ver com a gíria carioca dos anos 1950 que significava jeito, maneira, modo - e que também batizou o movimento musical de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto.Como estava viajando e o disco já estava em processo de finalização, Arlindo Cruz compôs Brasil de Hoje trocando mensagens e arquivos de áudio com os parceiros Diogo Nogueira, Hamilton de Holanda e Marcos Portinari. O arranjo da canção, um bonito samba de esperança, inclui um coro infantil formado pelos filhos dos artistas e produtores. Popular, vibrante e sofisticada, a Bossa Negra de Diogo e Hamilton ganha a estrada com shows hoje, amanhã e quarta no Theatro Net Rio - e dia 15 de setembro em São Paulo. Em 2015 já está programada uma grande turnê na Europa. Oxalá, antes disso, que a dupla venha à Bahia. * O jornalista viajou a convite da Universal Music.>
LP de 1966 nasceu por causa de um presente baiano para ViniciusUm dos trabalhos mais influentes da história da MPB, Os Afro-Sambas (1966), do violonista Baden Powell (1937-2000) e do poeta Vinicius de Moraes (1913-1980), foi o primeiro disco em que se misturaram instrumentos típicos do candomblé, como atabaques, bongô, agogô e afoxé, com outros da música tradicional como flauta, violão, saxofone, bateria e baixo acústico.>
Gravado durante quatro dias de janeiro de 1966, Os Afro-Sambas apresentava as pérolas Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocoché, Canto de Iemanjá, Tempo de Amor, Canto do Caboclo Pedra Preta, Tristeza e Solidão e Lamento de Exu. O comentário de Vinicius na contracapa do LP dizia tudo - "Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno o candomblé afro-moderno, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal (...). Nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica (...). É esta sem dúvida a nova música brasileira e a última resposta que dá o Brasil, esmagadora, à mediocridade musical em que se atola o mundo. E não digo na vaidade de ser letrista dos mesmos; digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo". >
Uma curiosidade: o álbum certamente não teria existido se, no começo dos anos 1960, Vinicius não tivesse recebido do amigo baiano Carlos Coqueijo Costa (1924-1988), um homem de talentos múltiplos (jornalista, poeta, compositor, jurista), um exemplar do LP Sambas de Roda e Candomblés da Bahia. Impressionado com uma musicalidade que ele não conhecia, Vinicius mostrou o disco a Baden, que era seu principal parceiro na época. Em 1962, Baden Powell veio a Salvador fazer um show na companhia de Sylvia Telles (1934-1966), e aumentou seu fascínio pelos cânticos e sons do candomblé. Com arranjos de Guerra Peixe (1914-1993), o disco Os Afro-Sambas foi lançado pelo selo Forma.>