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A música pode minimizar situações de risco? Sim, pode. É o que o leitor verá na série de três edições
Laura Fernades
Publicado em 12 de outubro de 2015 às 15:03
- Atualizado há um ano
Com uma maturidade que contrasta com a idade, a doce Natália Ayla Miranda, 11 anos, diz que prefere ocupar o tempo aprendendo música do que ficar pelas ruas do bairro onde mora. “É perigoso. Tem muito tiroteio, tráfico de drogas...”, justifica com naturalidade. Moradora do Curuzu, Natália estuda percussão na Band’Erê, banda mirim do Ilê Aiyê, por iniciativa da família.“Onde a gente mora, ela vê meninos novinhos se perdendo e já tem consciência do que é certo e o que é errado”, explica a tia de Natália, Rosângela da Silva, 49. Desempregada e responsável por criar a sobrinha, a tia não esconde o orgulho. “Com a música, ela se esforça mais na escola e fica longe da rua. É muito bom!”.
A pequena percussionista é apenas um exemplo das inúmeras crianças e jovens beneficiados por programas de arte-educação que usam a música como instrumento pedagógico capaz de transformar uma sociedade. Assim como o Ilê, outras instituições de Salvador são responsáveis por investir na arte para fazer diferença na vida desses garotos.Isabelle Vitória, Vitor e Natália Ayla fazem parte da Band’Erê, grupo mirim de percussão, do Ilê Aiyê(Foto: Arisson Marinho)Entre elas estão os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba), criação do maestro e pianista Ricardo Castro, e a Escola de Guitarra Baiana Irmãos Macêdo, que atua na formação musical de crianças e adolescentes da rede pública. Isso só para citar alguns, já que a Salvador do Projeto Axé, Pracatum, Olodum e tantos outros não caberia nestas páginas.
SocialNo mínimo impactante, o levantamento mais recente feito pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República diz que Salvador é a terceira capital com maior índice de homicídios na adolescência, atrás apenas de Fortaleza e Maceió. Referente a 2012, a pesquisa provoca reflexões. Como mudar isso? Será que a música pode ajudar a transformar a realidade da cidade?Diante destas questões, o CORREIO decidiu mergulhar no universo de alguns programas sociais para compreender como essa forma de arte realmente transforma. Hoje, Dia das Crianças, amanhã e sábado, o leitor vai encontrar histórias de crianças em vulnerabilidade social fisgadas pela música, vai entender como funcionam esses programas e conhecer jovens que escolheram fazer a diferença através da música. Além disso, vamos mostrar o que pensam os responsáveis por tornar esses programas uma realidade. “São histórias diversas, contextos onde há violência, tráfico, onde crianças são vítimas. Muitos são criados com avós, muitos não têm pai. Todas as pessoas da área de educação têm que passar por esses projetos sociais, para ter essa vivência e um olhar mais crítico e reflexivo”, garante a pedagoga e coordenadora da Band’Erê, Maria Aparecida Nunes, 52. CidadaniaNão é preciso muito tempo nas instituições para encontrar histórias de transformação. São crianças e jovens que não acreditavam no seu potencial e que, através da prática musical, aprendem a ter responsabilidade, disciplina e esperança. Pessoas que ganham confiança em si, são respeitadas e passam a respeitar o outro. Isso acontece na Band’Erê. Inicialmente apenas um curso de percussão para alunos de 8 a 16 anos, a banda mirim que funciona na sede do Ilê, no Curuzu, já tem mais de 20 anos de história e trabalha com cerca de dez oficinas, como cidadania, história e literatura, além da música.“É importante trabalhar a questão da cidadania, porque você tem que falar sobre racismo, identidade, pertencimento. Temos um trabalho de conscientização em relação às drogas, ao tráfico e à violência. A escola não pode estar desligada da comunidade”, afirma a coordenadora da Band'Erê, Maria Aparecida Nunes. Cida, como é carinhosamente chamada pelos alunos, destaca que também é importante utilizar-se do lado lúdico e prazeroso das aulas de música para cobrar dos alunos a frequência na escola fundamental e as boas notas. Seja em outras instituições ou na própria Escola Mãe Hilda, que há mais de 20 anos oferece educação infantil e ensino fundamental, na sede do Ilê. RealidadeÚnico aluno da Band’Erê com 17 anos, Vitor Silva está no grupo há oito e já esteve em vários carnavais. Ele começou tocando o Dobra de Uma, espécie de tambor, com 9 anos. “Um menino pequeno tocando um instrumento grandão”, diverte-se. E este ano estreou na banda adulta do Ilê, a Band’Aiyê. Alem disso, dá aula de informática para os pequenos. “Graças a minha segunda mãe, tia Cida, hoje sou monitor e dou aula aos meninos. De lá pra cá, só coisas boas. Minha vida mudou porque meu pensamento mudou. Quis focar em coisas boas e não desviar meu caminho. Pretendo isso para sempre”, orgulha-se o jovem percussionista. Assim como Vitor, Isabelle Vitória de Santana, 13, ama o que faz. “Já fiz show no TCA”, conta, orgulhosa. Belinha começou por indicação dos primos, com 8 anos, mas é sua avó, a lavadeira Osvaldina Maria Bonfim, 58, quem mais comemora a decisão.“Ela já foi um pouco agressiva e respondona, sabe? É do jeitão dela, mas também devido à situação de não ter mãe, nem pai... Estou achando ela bem mais calma. Estou muito satisfeita”, conta a avó, ao revelar que os pais de Isabelle foram assassinados quando ela era pequena, ambos por causa de envolvimento com drogas.Ciente da realidade dos alunos, a coordenadora Cida reforça que “não existe família perfeita”. “Sabemos que a realidade deles é diferente e trazemos isso para as aulas. Não podemos tratar a criança como se não fizesse parte do contexto dela”, defende a pedagoga, apontada como segunda mãe pelos alunos. “Sou muita grata a eles também. É interessante ver que fazemos diferença na vida de alguém”.
Música como arma contra o preconceitoOs acordes reinam nos corredores do Centro de Referência em Promoção Social e Capacitação da Santa Casa, no Bairro da Paz. Flauta, oboé, trompete e outros instrumentos ultrapassam as salas fechadas e dão a atmosfera do espaço onde funciona, desde 2013, o Núcleo de Prática Orquestral e Coral (NPO), que faz parte do Neojiba, programa inspirado no El Sistema, da Venezuela, que completa 8 anos, dia 20.Talita, Stephanie e Helen são alunas do Núcleo de Prática Orquestral e Coral, do Neojiba, no Bairro da Paz (Foto: Evandro Veiga)A harmonia do NPO Bairro da Paz é criada por mais de 120 crianças e jovens entre 8 e 19 anos, que moram no Bairro da Paz. Cientes da fama violenta do bairro, os alunos destacam que não se sentem inseguros e que a música funciona como arma contra o preconceito.
“Várias pessoas julgam, dizendo que aqui não tem nada, que é só violência. Ver projetos assim no nosso bairro pode mudar a forma que as pessoas olham para nós”, destaca Stephanie Almeida Silva, 15 anos, aluna de oboé do NPO Bairro da Paz há dois anos.Aluna de flauta, a amiga Talita da Luz Silva, 17, acrescenta que a música muda comportamentos. “Tem gente que ninguém aguentava nas escolas, era traquino demais. Alguns mudaram para melhor, ficaram mais comportados, focados... Mesmo não seguindo essa carreira, a pessoa aprende a fazer silêncio, a esperar a vez do outro. Na música, a gente tem isso”, destaca.
Não precisa saber música para estudar no núcleo. Uma vez inscrito (sempre em março ou julho), o aluno é iniciado até adotar um instrumento para estudar em casa. Assim estrutura-se o NPO Bairro da Paz, um dos sete NPOs do Neojiba que funcionam em parceria com outras instituições.“O Bairro da Paz, de alta vulnerabilidade social, é um caso emblemático. O objetivo era inserir ele numa agenda positiva da cidade, mudar sua imagem e provocar boa repercussão”, destaca a diretora institucional do Neojiba, Beth Ponte, 30. Outras frentes de desenvolvimento social pela música são realizados pelo Neojiba: a Rede de Projetos Orquestrais da Bahia e o Neojiba nos Bairros, que atua com políticas de prevenção à violência nas regiões com Bases Comunitárias de Segurança em Salvador e RMS.
Ao todo, 4,6 mil crianças e jovens são beneficiadas direta ou indiretamente pelo Neojiba, composto pelos NPOs e pelo Núcleo de Gestão e Formação Profissional (NGF). Neste estão as formações mais conhecidas, como a Orquestra Juvenil da Bahia (Yoba), a Orquestra Castro Alves (OCA) e a Orquestra Pedagógica Experimental (OPE).
Arte contra a evasão escolar
Ao entrar na Escola de Guitarra Baiana Irmãos Macêdo, no Canela, o músico Aroldo Macêdo, 57 anos, é interrompido por um dos alunos. “Estou saindo da escola, professor...”, as palavras de Lucas da Silva, 17, pegam o diretor da escola de surpresa. “Como assim? Você é um dos melhores alunos, quase um monitor. E o nosso Carnaval, em cima do trio?”, questiona Aroldo, irmão de Armandinho, Betinho e André, filhos de um dos inventores do trio elétrico: Osmar Macêdo (1920-1997).
Então, o jovem guitarrista revela que a ideia foi de sua mãe. “Estou faltando muito na escola. Aí ela disse que ia tirar a coisa que eu mais gosto...”, explica. Não satisfeito, o diretor resolve dar umas “férias” para o garoto recuperar o estudo perdido, até poder voltar a tocar. Trato feito, Aroldo explica ao CORREIO que a prática musical é importante para combater a evasão escolar. “As crianças vão à escola com mais interesse e isso contribui para aumentar o foco”, justifica.
Há dez anos, a Escola de Guitarra Baiana Irmãos Macêdo difunde o estudo do instrumento genuinamente baiano, criado por Dodô e Osmar. Dedicada às crianças e adolescentes da rede pública, mais de 90 atualmente, a instituição ensina outros instrumentos como bandolim, bateria e teclado, que ficam sob responsabilidade dos alunos. “Procuramos focar nas crianças que não têm possibilidade, que a família não pode pagar”, explica Aroldo. A escola tem apoio da Petrobras e Bahiagás.