'A relação com o dinheiro é emocional. Não é só planilha e número'

Ana Coelho, Head de relações com a sociedade do will Bank, explica o que é a dismorfia financeira, fenômeno que leva 90% dos brasileiros a não conseguirem comprar tudo o que precisam

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  • Priscila Natividade

Publicado em 18 de novembro de 2023 às 16:00

Ana Coelho é head de relações com a sociedade do will Bank
Ana Coelho é head de relações com a sociedade do will Bank Crédito: Fabiano Battaglin/ Divulgação

Na volta a gente compra. Talvez, no mês que vem. Esse ano não dá. Não tenho condições de pagar. Quem é que consegue guardar dinheiro? Em algum momento, com certeza, provavelmente a grana curta já te fez chorar, passar sufoco, perder o sono. Deu dor de cabeça, fez a pressão arterial subir. A falta dele, causou desconforto, constrangimento, vergonha, desespero. Não está fácil para ninguém e só o boleto vence. O fenômeno que expressa uma relação mais negativa do que positiva com o dinheiro já tem nome: dismorfia financeira.

“O papo é muito mais emocional. Todo mundo está procurando atingir um padrão. Seja o pobre, rico ou o milionário, sempre existe um padrão a ser seguido e com o desejo de ser alcançado. Por isso, a dismorfia financeira vem da dismorfia corporal, quando que a gente se olha e não se vê no reflexo. Porém, o padrão é algo móvel. Você chega, ele muda. E é por isso que ela atinge todo mundo”, explica a head de relações com a sociedade do will Bank, Ana Coelho.

A fintech que tem atualmente uma carteira de mais de 6 milhões de clientes no Brasil e onde a sua maior base está na Bahia, é responsável pelo estudo pioneiro que investigou os efeitos da relação conflituosa entre o dinheiro e as emoções que ele é capaz de despertar, seja dentro ou fora da conta. Além da sensação de não pertencimento a um padrão criado por quem já grana, a dismorfia financeira também vai mostrar que nem tudo é uma questão de planilha ou de saldo bancário.

“A gente tem esse life style da desigualdade e milhares de questões aqui. A Jojo Todynho, por exemplo, quando se tornou milionária e entrou para a faculdade foi escolher o material dela e comprou uma mochila de rodinha da Lilo e Stich. Isso é a dismorfia falando, a criança ferida dentro da gente. Ela queria ter isso quando ela tinha essa idade e simplesmente não tinha aquela oportunidade. Alguns estão ainda buscando formas de tentar chegar o mais próximo possível desse padrão e outros - os ‘harkers’ da dismorfia – criam seu próprio padrão, seu espelho, o que pode ser”, acrescenta Ana.

Entre os dados que mais chamam atenção na pesquisa está o fato de que quase 10% das pessoas pretas sentem tristeza ao lidar com dinheiro, enquanto nove em cada dez brasileiros (90%) não conseguem comprar tudo o que precisam e não contam com reservas que permitam fazer planos e pensar no futuro. Seis em cada 10 mulheres pretas (61%) da classe D e E utilizam palavras negativas para descrever sua situação financeira. Leia mais na entrevista completa.

Porque tentar entender como o brasileiro está lidando emocionalmente com o seu próprio dinheiro?

A gente acredita que todo mundo tem ter crédito. Então, conversamos muito com nossos clientes e só gostamos de lançar um novo produto e ampliar portfólio, se isso for resolver uma dor que possa existir ali. Temos um time de pesquisa interna bem grande e começamos a perceber que existia um fator que não era racional - muito menos um número - que estava afastando os clientes da vida financeira e da sua relação com o dinheiro. Era muito essa coisa do ‘isso não é para mim’, ‘não sei se eu posso’, ‘é muito complicado’. E aí, pensamos: poxa, tem algo aqui que precisamos dar um nome. Sabíamos que existia um fenômeno invisível, que atrapalhava essa inclusão, mas não qual era a sua dimensão. A gente foi entender o tamanho real disso.

O que é a dismorfia financeira e como a pesquisa chegou até esse conceito?

Conversamos com especialistas, pesquisadores, influenciadores, designers e mais um time enorme para entender e chegar a esse fenômeno. Essa curiosidade levou o banco a sair da sua base de clientes e entrevistar mais de 2 mil pessoas no país inteiro, com recortes de gênero, idade, região e de etnia para traçar esse retrato. Entendemos, claro, que existem pessoas que sofrem mais os impactos, porém, a dismorfia financeira é algo que acontece para todo mundo. Quem não está olhando a grama do vizinho achando que ela é mais verde? Todo mundo acha que uma outra pessoa conquista com mais facilidade aquilo que teve dificuldade conseguir. Não é sobre falta de dinheiro, mas sobre essa falta de pertencimento. São coisas que me são negadas, a gente tem um problema que é sistêmico. A pesquisa é um primeiro passo para a gente começar essa discussão, falar que todo mundo deveria ter acesso e que a inclusão é a chave para minimizar os efeitos dessa questão que é emocional.

"Quem não está olhando a grama do vizinho achando que ela é mais verde? Todo mundo acha que uma outra pessoa conquista com mais facilidade aquilo que teve dificuldade conseguir. Não é sobre falta de dinheiro, mas sobre essa falta de pertencimento "

Ana Coelho
head de relações com a sociedade do will Bank

Que dados mais chamam atenção no levantamento?

De fato, a gente vê que as respostas negativas e neutras sobre o dinheiro realmente saltavam aos olhos, como a constatação de que 90% dos brasileiros não conseguem comprar tudo que precisam e não contam com reserva para fazer planos e pensar no futuro, o que é muito importante para se ter tranquilidade e olhar para frente. Outro dado relevante é o que diz que 79% das pessoas tem desejo de consumir muitas coisas que não podiam na infância ou na adolescência, o que para o banco é um indicativo super forte de que a relação com o dinheiro é emocional. Ela não é só planilha e número. Existe uma história de vida. Tivemos privações, outros desejos e consumimos muito, pensando nesse histórico que temos. Os números ficam ainda mais preocupantes quando olhamos as questões de gênero e enxergamos que mais da metade das pessoas da classe D e E (50,5%) diz que não consegue fechar as contas no fim do mês ou tem muita dificuldade para fechar as contas em dia e essa também é uma realidade para quase que 34% das pessoas pretas. Falando especificamente das mulheres pretas, da classe D e E, elas são as que mais utilizam palavras negativas para descrever sua situação financeira. Oito em cada dez relatam dificuldades financeiras para fechar o mês.

E por que as mulheres negras das classes D e E são as mais impactadas pela dismorfia financeira, que fatores refletem isso?

Foram diversos olhares e recortes voltados para mulheres pretas e pardas da classe D. No geral, pessoas pretas e pardas não se sentem acolhidos pelas instituições financeiras tradicionais, se percebem julgadas e inadequadas. Elas foram as que mais usaram o termo desespero para descrever o gasto de compra de supermercado, luz, água e moradia. Olhando um pouco mais para a mulher, elas se sentem mais constrangidas ao buscar um serviço financeiro. O estudo revela ainda que cerca de 37% das mulheres sentem vergonha ao pedir um empréstimo ao gerente de forma presencial e apenas 26,3% das mulheres pretas e pardas da classe D e E têm acesso a cartão de crédito. Como a gente consegue olhar para esse recorte que fizemos mulheres pretas e pardas D e E, por exemplo, e ter um pouco mais de atenção aqui para futuramente fazer movimentos que ajudem mais esse lado?

"Foram diversos olhares e recortes voltados para mulheres pretas e pardas da classe D. No geral, pessoas pretas e pardas não se sentem acolhidos pelas instituições financeiras tradicionais, se percebem julgadas e inadequadas"

Ana Coelho
head de relações com a sociedade do will Bank

A gente vive em um país que é desigual, que ainda não se recuperou da crise e que o trabalhador perde diariamente o poder de compra. Como a Dismorfia Financeira se insere nesse contexto?

A pesquisa deu o tamanho do problema. Esse debate é necessário porque, se as pessoas que temos atendido com sucesso pagam em dia, movimentam dinheiro e seus negócios – 70% da nossa base são autônomos informais – elas podem conseguir fazer essa roda girar se empoderando nesse sentido. Se pensarmos em quem encara o empréstimo pessoal como uma vergonha porque se naturalizou que empréstimo é negativo, há uma dismorfia financeira que impede que essa mesma pessoa veja o quando o crédito pode ser um impulsionador, uma oportunidade. Tem o momento certo, a negociação certa, o tipo de empréstimo certo, mas, assim, você só vai saber se estiver vivendo a sua vida financeira. Quando você olhar para sua conta de luz e sentir um desespero, dificilmente vai querer enxergar o restante e encarar com algum otimismo. Enquanto tivermos ações que reforçam a dismorfia, isto é, posturas excludentes e pessoas representando bancos que não representam todas as pessoas, sem diversidade no olhar, no trato e em seu portfólio de produtos, realmente vamos afastar esse cliente do potencial dele e isso é péssimo tanto para a economia, os negócios e o mercado de trabalho. A discussão, no fim, é sobre incluir mesmo.

Como a relação negativa com as finanças afeta todas as classes sociais?

Se 9,6% das pessoas pretas sentem tristeza ao lidar com dinheiro, em comparação com o fato de que seis em cada 10 homens brancos da classe A e B conseguem comprar tudo que eles desejam e três desses 10 (30%) ainda conseguem poupar para o futuro, sim, nós temos extremos. Porém, todo mundo é impactado de alguma forma pela dismorfia financeira e as pessoas realmente se afastam do domínio de suas finanças de forma muito mais brutal do que outras. Esse comparativo entre a base e o topo da pirâmide ele traz realmente um retrato. A gente sabia que as mulheres pretas e pardas tinham menos acesso aos serviços financeiros do que homens brancos da classe A e B? Sabíamos. Tínhamos o conhecimento sobre quanto, qual era o tamanho dessa diferença? Até o estudo ser feito, não existia esse retrato e é aí que o número ajuda a tornar as discussões sobre inclusão financeira mais urgentes e necessárias.

Por que a dismorfia não é só sobre a falta de dinheiro?

Sabemos que temos um milhão de desempregados, que a inadimplência alcança um índice recorde da nossa história. Não é um momento fácil. Quando a gente fala de acesso ao credito, o que eu quero dizer é sobre uma pessoa que pega esses R$ 50 do cartão e compra capinha de celular na Aliexpress. Daqui a pouco, ela já tem uma loja de acessórios. É uma inclusão que ela é muito diferente daquele que libera crédito de forma irresponsável. Nós estamos fazendo um trabalho calculado, com tecnologia própria e inteligência artificial. Só consegue dar crédito dando, gastando dinheiro e esperando. E com essa fórmula, conseguimos mostrar existem bons pagadores, que as pessoas estão querendo fazer, aprender e que apesar desse momento de país, elas não podem olhar para amanhã sem perspectiva. Isso afasta muito elas desse protagonismo. Você se lembra do que queria ter e tem hoje? Junto, todo mundo consegue rodar e ir em frente.

"Quando a gente fala de acesso ao credito, o que eu quero dizer é sobre uma pessoa que pega esses R$ 50 do cartão e compra capinha de celular na Aliexpress. Daqui a pouco, ela já tem uma loja de acessórios. É uma inclusão que ela é muito diferente daquele que libera crédito de forma irresponsável"

Ana Coelho
head de relações com a sociedade do will Bank

Os Bancos digitais chegaram disruptivos interrompendo e acabando com um ecossistema bancário tradicional. Que ecossistema é esse o qual o will faz parte e como ele se rentabiliza?

Começamos lá em 2017 com esse cliente, desbancarizado, do interior do Nordeste. E aí aprendemos com essas pessoas. No início era o empréstimo com garantia do saque aniversário do FGTS e depois fomos para o empréstimo pessoal. Hoje a gente tem o pix e boleto no crédito. Em breve, vamos entrar com o pix parcelado e uma variedade de investimentos. Apesar de atendermos clientes de baixa renda, o will não se enxerga como banco só para esse público. O banco tem crescido bastante, sim, com esse olhar de inclusão, não só do desbancarizado mas também do cliente que insatisfeito com os bancos tradicionais: eu pagava muita taxa, não gostava do atendimento, achava muito burocrático. No nosso caso, a rentabilização vem do crédito dos outros produtos. Não queremos ser um banco que se rentabiliza por juro ou inadimplência. Hoje há inúmeras opções de bancos digitais e os bancos mais antigos começam a se diferenciar. Um tomou todos os bancarizados insatisfeitos, o outro vai falar um pouco mais com os autônomos da maquininha, o outro vai para a alta renda. Nós vamos para essa pessoa que quando olha para o sistema financeiro percebe que está se movimentando por esse nosso olhar inclusivo e pela boa experiência.

Educação financeira: qual o primeiro conceito que o brasileiro precisa aprender?

Enquanto tem um monte de gente dizendo que educação financeira é trabalhar enquanto eles dormem, que se você não é milionário ainda é porque está fazendo alguma coisa errada ou que tem que viver um degrau abaixo do padrão, a dismorfia financeira se agrava diante desses discursos. A educação financeira também deve ser inclusiva. Não existe uma regra que se aplique a tudo. Ou seja, não tem problema se você não consegue ganhar R$ 1 mil e guardar R$ 100. A relação com o dinheiro ela não tem que ser só racional. Precisa ser pensada individualmente. Qual sua história de vida, como o dinheiro era falado na sua casa quando você era criança? Isso é tabu, a gente não sabe quanto nossos familiares e amigos ganham. Naturalmente, as pessoas se fecham para o tema. É mostrar que está tudo bem falar abertamente sobre isso e que não tem uma regra para todo mundo. As pessoas devem achar uma régua que faça sentido para cada uma delas. Uma pessoa empoderada financeiramente não precisa ter muita grana sobrando. Precisa entender que ter um cartão de credito, pegar um empréstimo é para ela sim. Conhecer o seu padrão de sucesso, ser dono mesmo do seu dia a dia financeiro, ainda que as bolas de neve aconteçam.

PERRENGUE

As contas do dia a dia são as que preocupam mais os nordestinos. Enquanto 29, 8% da amostra geral fala em tranquilidade quando o assunto são compras de supermercado do mês, contas de água, luz e moradia, apenas 14% dos nordestinos escolheram o termo. Esse é o percentual mais baixo entre todas as regiões do país.

QUEM É

Ana Coelho é head de relações com a sociedade do will Bank. Ela acumula mais de 14 anos de experiência em atendimento, planejamento e estratégias integradas para marcas de consumo, com foco em comportamentos de consumo e meios digitais. Ana também já integrou equipes responsáveis pelo trabalho de Relações Públicas para Mercado Livre, Netflix, Twitter, SKOL, Guaraná Antarctica, Unilever e WGSN.