Dia de luta: a vida da população LGBTQIA+ no 4º estado mais letal para a comunidade

Data que marca a luta contra a LGBTfobia foi celebrada nesta sexta-feira (17)

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  • Raquel Brito

Publicado em 18 de maio de 2024 às 06:20

Parada LGBTQIA+ acontece no Campo Grande
Parada LGBTQIA+, no Campo Grande Crédito: Roberto Abreu/Arquivo CORREIO

“Ela era tímida, mas não perdia uma festa e se divertia com o pouco que tinha”. Assim era Samira, mulher trans de pouco mais de 30 anos de idade, de acordo com quem a conhecia. Dela, porém, foi tirada a chance de viver. Na madrugada do dia 17 de abril, Samira foi morta com golpes de arma branca em Ribeira do Pombal, no semiárido baiano, e entrou para a cruel estatística de violência contra pessoas LGBTQIA+ na Bahia.

Um mês exato após o assassinato, celebra-se o Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. Apesar dos avanços em leis e evolução dos direitos da comunidade, casos como o de Samira não são isolados. Em 2023, foram registradas 257 mortes violentas de gays, lésbicas, transexuais e bissexuais em todo o Brasil, aponta um dossiê feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga ONG LGBTQIA+ da América Latina. O número faz com que o país mantenha a liderança entre os países que mais matam essa população.

A Bahia, por sua vez, assumiu a quarta posição entre os estados com mais mortes, e a primeira no ranking dos estados nordestinos. Foram registrados no estado 22 óbitos, 8,56% do valor total, em um cenário populacional três vezes inferior ao de São Paulo.

Para o antropólogo, pesquisador e ativista Luiz Mott, um dos fundadores do GGB, ter um dia reservado para lembrar do preconceito é crucial para fazer com que a sociedade passe a ter conhecimento sobre a intolerância anti-LGBTQIA+. Àqueles que já sabem o quão vitimizada essa população é, o dia 17 também tem o peso de promover manifestações políticas e ações que mudem a realidade de violências.

“A homotransfobia, ou LGBTfobia, é o principal problema que inferniza a vida da população de homossexuais e transexuais, porque em todos os espaços, nós somos vítimas de discriminação: dentro de casa, na escola, no trabalho, na rua. Ainda há muitos assassinatos por conta da intolerância”, diz Mott.

A data foi instaurada após a decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) de retirar a homossexualidade - chamada então, pejoritariamente, de “homossexualismo” - da Classificação Internacional de Doenças (CID). Foi o GGB, sob a presidência de Mott, que primeiro adotou a data no Brasil.

“Recebendo essa notícia, eu consultei os grupos do movimento no Brasil. Alguns acharam que já tinha muita data, que não valia a pena, mas eu insisti. O GGB foi o primeiro a comemorar, depois vieram outros grupos e, em 2011, eu mandei uma correspondência para o presidente Lula pedindo para instituir o Dia Nacional Contra a Homofobia, e ele decretou”.

Luta diária

Entre 2021 e abril deste ano, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) registrou 190 procedimentos referentes a denúncias de crimes por motivação LGBTfóbica em Salvador. Os dados se referem aos registros feitos na 1ª Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, com atuação especializada na defesa da população LGBTQIA+ na capital.

Foram procedimentos de investigação criminal (PIC) instaurados pelo próprio MP a partir de denúncias enviadas diretamente pelos canais da instituição e de inquéritos policiais encaminhados ao MP no período. Do total, foram oferecidas à Justiça 22 denúncias criminais contra os agressores. O restante está em andamento ou foi arquivado, por falta de provas ou por realização de acordos.

Quando Ives Bitencourt, 32, decidiu que seria advogado, já sabia que utilizaria o direito para defender pessoas da comunidade LGBTQIA+. Sendo ele mesmo um homem gay, o especialista atua em defesa dos direitos dessa população há oito anos, e hoje é presidente da Comissão Permanente de Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na Bahia. Com a violência e a alta mortalidade presentes mesmo em um contexto de avanços, ele sabia que atuar para os seus seria fundamental.

Ives se dedica a defender pessoas da comunidade
Ives se dedica a defender pessoas da comunidade Crédito: Arquivo pessoal

“A advocacia e o espaço jurídico são formados, prioritariamente, por pessoas heterossexuais, cisgêneras, brancas, ricas e de meia ou maior idade. Pessoas que viveram outra época e que, apesar da transformação social e dos direitos da população LGBTQIA+, ainda têm diversos pensamentos e posicionamentos preconceituosos, que muitas vezes refletem negativamente nas decisões judiciais”, conta o advogado.

Hoje, a partir do seu trabalho, ele consegue transformar esse cenário, mesmo que em pequenos passos. Segundo Ives, ainda são poucos advogados e escritórios capacitados para defender essa comunidade no estado e, por isso, há grande demanda da comunidade.

Beatriz Sacramento, fisioterapeuta de 24 anos, percebeu ainda na infância que era diferente das suas colegas de classe. Enquanto as meninas sussurravam sobre os garotos mais bonitos da turma, ela tentava se forçar a participar das conversas, mas o sentimento não mudava: nenhum deles a interessava.

Quando, aos 13 anos, entendeu seus sentimentos, começou a entender também que de casa para fora ainda enfrentaria muita coisa. O primeiro relacionamento sério, que segue forte e faz seis anos neste sábado (18), foi a virada de chave. “Até eu começar o namoro, minha mãe não sabia que eu gostava de mulheres. Meu pai já sabia, eu havia contado para ele pouco tempo antes e foi super tranquilo, mas com minha mãe o processo foi um pouco mais complicado, porque eu quebrei uma expectativa dela e isso me frustrou muito. Eu passei a me sentir muito culpada”, conta.

Atualmente, brinca que a mãe gosta mais de sua namorada do que dela, e afirma que o carinho da família quase compensa o receio de demonstrar afeto na rua. “Eu acho que a pior coisa que pode acontecer é você sair com uma pessoa que você gosta com medo de sofrer algum tipo de agressão ou alguma retaliação. Isso nos impede de acessar muitos lugares. A homofobia não está restrita somente a impedir que você se relacione com alguém do mesmo sexo, ela te impede de viver enquanto pessoa na sociedade, impede de trabalhar, de acessar locais e de se expressar”, diz.

Onde recorrer em casos de violência ou para atendimentos de saúde

A homofobia configura crime, cuja pena varia entre um e cinco anos de prisão. Para denunciar casos de discriminação, a indicação principal é que as vítimas busquem reparação através do Disque Direitos-Humanos, ligando para o número 100. O serviço de atendimento telefônico é gratuito e funciona 24 horas por dia, sete dias da semana.

A Comissão de Diversidade Sexual da OAB/BA é uma iniciativa que visa a promoção da igualdade de oportunidades para a comunidade, além de conscientização sobre os direitos dessa população e o estímulo da consciência social dos princípios constitucionais. Tel: (71) 3329-8900

Já em crimes de ódio cometidos pela internet, a Polícia Federal disponibiliza um site para denúncias. O site Direito Homoafetivo relaciona advogados em todo o Brasil especializados em questões da comunidade LGBTQIA+.

No Rio Vermelho, em Salvador, existe também o Centro Municipal de Referência LGBT Vida Bruno. Nomeado em homenagem ao ativista LGBT Vida Bruno, um dos criadores do Centro, o espaço conta com atendimentos gratuitos e totalmente voltados para a comunidade LGBTQIA+, com apoio psicossocial, orientação e encaminhamento. O centro funciona das 8h às 17h, de segunda a sexta-feira. Tel: (71) 3202-2750

No Pelourinho, há ainda o Centro de Promoção e Defesa dos Direitos LGBTs Bahia (CPDD), cujo objetivo é promover e defender os direitos da população LGBTQIA+. Tel: 71 3116-6844.

O Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) e a Maternidade Climério de Oliveira (MCO), ambos da Universidade Federal da Bahia (Ufba), são referência na garantia do acesso de pessoas trans a serviços de saúde de qualidade. No último mês, foi apresentada através da maternidade a primeira cartilha pré-natal voltada para homens trans grávidos e, além disso, os hospitais já ofereciam cirurgia de transição vocal e redesignação sexual.

“Quem cala consente, e o silêncio é igual a morte. Tem que denunciar, tem que ir na delegacia registrar queixa, procurar na internet o contato dos centros de referência LGBTQIA+ municipal e estadual, dos grupos locais”, incentiva Luiz Mott.