'Discutir a divisão sexual do trabalho é fundamental para igualdade', diz ministra das Mulheres

Em entrevista exclusiva, Cida Gonçalves falou sobre desafios para implementar a lei que garante salários iguais entre mulheres e homens, sancionada na última semana

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  • Thais Borges

Publicado em 8 de julho de 2023 às 05:00

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, falou sobre a lei da igualdade salarial
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, falou sobre a lei da igualdade salarial Crédito: Patrick Grosner Audiovisual/PR

Reivindicação antiga dos movimentos de mulheres no Brasil, a igualdade salarial entre mulheres e homens pode ser finalmente fiscalizada e implementada com mais firmeza. Na última segunda-feira (3), o presidente Lula sancionou uma lei que altera o artigo 461 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para garantir a igualdade salarial.

A legislação faz parte de um pacote de ações do 8 de Março, quando o projeto foi enviado ao Congresso. No entanto, assegurar a igualdade na remuneração entre mulheres e homens vai além da lei, como reforça a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. Segundo ela, para que haja igualdade plena, é preciso existir mudança de comportamento na sociedade.

Já nas empresas, é necessário pensar em uma reorganização para se adaptar e trabalhar. "A terceira questão é que precisamos enfrentar o debate sobre o cuidado. Discutir a divisão sexual do trabalho é fundamental para a questão da igualdade entre mulheres e homens", diz.

Mesmo que esteja explicitamente presente na Constituição Federal e na CLT, a igualdade salarial entre mulheres e homens está longe de ser uma realidade em todo o Brasil. No ano passado, por exemplo, segundo o IBGE, uma mulher recebia apenas 78% do salário de um homem na mesma função.

"Essa nova legislação é um diferencial muito importante na história do Brasil. Nunca tivemos uma lei que efetivamente garantisse, com essa envergadura, a igualdade salarial"

Cida Gonçalves, ministra das Mulheres do Brasil
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Ativista pelos direitos das mulheres há 40 anos, Cida Gonçalves é especialista em gênero e em enfrentamento à violência contra as mulheres. Entre 2003 e 2016, já tinha sido secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres, quando participou ativamente da construção de importantes leis, como a Maria da Penha e a do feminicídio.

Em entrevista exclusiva ao CORREIO, ela falou sobre desafios para a implementação da nova legislação, sobre a Casa da Mulher Brasileira que será inaugurada em Salvador e temas como o julgamento da descriminalização do aborto, que deve ser pautado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos próximos meses.

A lei que garante a igualdade salarial foi sancionada pelo presidente Lula, que enfatizou muito a questão da fiscalização. Antes disso, qual era o cenário que tínhamos e qual é o diferencial agora?

A questão é que o cenário era que tínhamos uma CLT que dizia sobre a questão da igualdade salarial entre homens e mulheres, e temos a Constituição que também diz, mas nenhum deles estabelece a questão da fiscalização, da multa e do relatório de transparência. São três elementos que a (nova) legislação traz, dá condições para acompanhar para que seja aplicado e, se não for aplicado, a multa.

Como será a fiscalização que vai garantir que a lei está sendo cumprida?

A fiscalização pode acontecer de várias formas. Uma é por denúncia de pessoas, da própria vítima. E a legislação estabelece que a empresa precisa apresentar um relatório de transparência em que ela deve dizer quais são os cargos, a função e o valor de pagamento para cada uma dessas funções. Isso vai permitir o acompanhamento da igualdade salarial na empresa.

Em seu discurso, a senhora reforçou que, para mudar a cultura de um país, é necessário ir além da legislação. O que ainda pode ser feito?

Eu trabalho sempre com um conceito de que nós precisamos mudar o nosso comportamento e a nossa forma de pensar. Sempre coloco como exemplo o cinto de segurança. Quando foi instalada a legislação para colocar o cinto, todo mundo reagiu, ficou bravo. No entanto, hoje, a maioria das pessoas - se não todo mundo - quando entra no carro, já coloca o cinto de segurança. São padrões de comportamentos que, de acordo com a efetividade da legislação, vão mudando efetivamente a relação da sociedade com aquele tema, aquele problema.

Acho que isso é uma primeira coisa que vai além da legislação, porque tem a mudança de comportamento da sociedade. A segunda é das empresas, que vai ser necessário pensar uma reorganização para poder se adaptar, pensar e trabalhar. A terceira é a questão que precisamos enfrentar o debate sobre o cuidado.

Hoje, elas não vão para os cargos de chefia porque ainda são responsáveis pelo cuidado dos filhos, do marido, dos idosos. Mesmo tendo a mesma capacidade ou uma maior capacidade técnica de desenvolver o cargo de chefia (muitas) não aceitam ou não vão por esses elementos. Discutir a divisão sexual do trabalho é fundamental para a questão da igualdade entre mulheres e homens.

Hoje, vivemos em um contexto em que muitas empresas não contratam funcionários via CLT, mas sob regime de pessoa jurídica. Muitas jovens adultas nunca tiveram um emprego com carteira assinada, assim como é comum que empresas mudem a forma de contratação de funcionárias em posição de chefia. Como combater a desigualdade salarial nesses ambientes?

Quando a gente conseguir implementar a lei, a gente vai começar a perceber que a população vai perceber se essa empresa é a favor da igualdade salarial das mulheres ou não. É um desafio do governo montar uma estrutura de fiscalização, acompanhamento e monitoramento, mas também da sociedade conscientizar a população sobre esse novo momento. Essa nova legislação é um diferencial muito importante na história do Brasil. Nunca tivemos uma lei que efetivamente garantisse, com essa envergadura, a igualdade salarial.

Depois de seis meses à frente do ministério, o que foi mais difícil até agora? Quais foram os maiores desafios que já passaram e que virão?

Eu acho que o maior desafio foi estruturar o ministério, pela forma como eu o encontrei. Sei que não tínhamos ministério, porque foi uma criação do presidente Lula por vontade política e compromisso com as mulheres. Mas mesmo na Secretaria de Políticas para Mulheres anterior, encontramos uma terra arrasada, sem recursos, sem estrutura e sem equipe.

Foi preciso montar a estrutura, botar o ministério em pé e pensar políticas, pensar o 8 de março e pensar uma mudança com relação ao papel do Ministério das Mulheres, porque o governo anterior pensava mulher como mera reprodutora, como mãe. São duas linhas completamente diferentes, então foram grandes desafios.

Agora, para os próximos seis meses e acho que para o mandato também, tem dois desafios grandes para serem enfrentados. Um é a questão da própria implementação da lei da igualdade salarial. E a segunda é a misoginia - enfrentar violência contra mulheres e meninas, a violência política de gênero, enfrentar o processo de construção que está sendo feito de ódio contra as mulheres, por isso a perspectiva da Marcha Nacional das Mulheres Contra a Misoginia.

Salvador está prestes a inaugurar a Casa da Mulher Brasileira, que tem investimento federal e terá gestão compartilhada entre estado e município. Qual é a proposta desse equipamento? Que avanços podem vir a partir dessa casa?

A casa foi pensada para fazer o atendimento integrado e humanizado para as mulheres, por isso ela constitui todos os serviços especializados, tem apoio psicossocial, presença do juizado ou vara, delegacia especializada, Promotoria das mulheres, Defensoria das mulheres, abrigamento provisório, a ronda Maria da Penha e um serviço de inserção das mulheres no mercado. Ela tem entre 8 a 11 serviços dentro. É uma revolução a nível de atendimento porque efetivamente coloca vários poderes para estabelecer uma política única para garantir o atendimento às mulheres.

Efetivamente, já temos 11 Casas da Mulher Brasileira no Brasil e as 11 têm apresentado grandes resultados, como a de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, que atende por mês, 1,3 mil mulheres. A de São Luís, no Maranhão, atende, em média, 700 mulheres. Temos um grau de efetividade muito grande. A data é para o segundo semestre, entrando agosto e setembro.

Além disso, tem a questão do 180, que a gente já está revitalizando e atendendo. Gostaria de pedir à população, às mulheres da Bahia que busquem o 180, seja para pedir informação sobre a lei da igualdade salarial, seja para denúncia, seja para buscar informações sobre outras questões.

As demandas por mais representatividade de gênero são muito fortes. Nesse contexto, há muita expectativa para a próxima indicação do presidente ao STF. Como a senhora tem acompanhado esses debates que pedem por mais uma mulher, já que a vaga em questão é ocupada atualmente por uma mulher (Rosa Weber)?

Eu acho que o presidente vai manter uma mulher no STF, mas é uma decisão que cabe única e exclusivamente a ele. Por mais que eu torça e uma série de coisas, é uma decisão que cabe ao homem que teve milhões de votos no Brasil, portanto está homologado pelo pelos milhões de votos para essa decisão.

Há expectativa de o STF pautar o julgamento sobre a descriminalização do aborto no Brasil. Nos últimos anos, o Brasil ficou para trás, em comparação aos países da América do Sul que passaram pela maré verde desde 2019. Qual é a sua expectativa para esse julgamento?

Eu tenho uma expectativa muito serena para dentro do governo que preciso colocar a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres para funcionar. O governo anterior criminalizava tanto as mulheres vítimas de violência sexual que nem sequer o serviço de contraceptivo de emergência nos tínhamos.

Temos uma pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão que 81% das mulheres entrevistadas diziam que, se sofressem violência sexual, iriam para polícia e não para a saúde. Mas não é só uma questão de aborto: é contraceptivo de emergência, serviço DST/AIDS.

E por que 81% das mulheres vão para a polícia e não para o sistema de saúde? Porque o Brasil criminaliza as mulheres mesmo dentro do serviço de aborto legal nos termos que a lei de 1940 autoriza, que é no caso de violência seuxal e em risco de vida das mulheres, e no entendimento do STF, que decidiu pela questão da anencefalia. Nem nesses casos as mulheres querem ir. Essa é a responsabilidade que me cabe nesse momento: ter um serviço que dê conta do que está colocado e do que está sendo feito.

O que o STF e o Congresso decidirem, nós, enquanto governo, vamos acatar e implementar. Mas, nesse momento, eu e a ministra Nísia (Trindade, titular da Saúde) temos a responsabilidade de garantir que as mulheres, na hora que precisarem do serviço, tenham onde recorrer.