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Moyses Suzart
Publicado em 8 de dezembro de 2025 às 15:52
Até onde é possível medir a fé quando a devoção ultrapassa os limites da igreja e se torna cultural? Para os baianos católicos, venerar Nossa Senhora da Conceição faz parte de sua vida religiosa, independentemente da liturgia. E é tão antiga quanto a cidade de Salvador. Nesta segunda-feira (8), a procissão em homenagem à mãe de Deus foi novamente realizada, completando 476 anos de tradição. Contudo, este ano os devotos tiveram uma orientação diferente vinda do Vaticano: O Papa Leão XIV impôs limites para a veneração à Maria, alegando que só Jesus salva. Será possível? >
"Pede à mãe que o filho atende, né? Essa é uma das frases mais antigas entre os católicos e faz todo o sentido. Ser devota de Nossa Senhora da Conceição não é colocar ela acima. É saber que ela intercede por nós. Sabemos que Jesus é o Salvador, mas que mal faz ter devoção pela mãe do Salvador?”, disse a católica Jandiara Almeida, de 71 anos, que todo ano vai levar flores para a padroeira mais antiga do país. “É a festa religiosa mais antiga também. É tão antiga quanto o Brasil, praticamente. É uma tradição que já está na nossa cultura. Não vamos mudar”, completa. >
Se já é difícil explicar para o Papa Leão XIV que aqui rola até ciumeira entre as padroeiras de Salvador e do Brasil, imagina ter limites na devoção. “Nossa Senhora da Conceição é muito importante, ela é a nossa padroeira da Bahia. Ela poderia ser padroeira do Brasil, porque tudo começou aqui. Mas deixaram Nossa Senhora Aparecida, o povo daqui ficou calado e Aparecida acabou se tornando a padroeira do Brasil. No fim, é tudo a mesma Nossa Senhora, né? A Conceição, a Aparecida… Nossa Senhora é uma só.”, disse Gilda Santos, que se diz devota há 77 anos, que por sinal é sua idade. >
“Desde que nasci, seguindo meus pais. Meu filho mais velho tem 58 anos e vem todo ano. Tenho também um filho padre, Antônio, que acabou de passar por aqui. Amanhã ele completa dois anos de ordenado. É uma bênção”, disse Gilda, que teve um gostinho especial este ano, ao ver seu filho também celebrando a missa. Sobre a orientação do Papa, apesar de ser devota da santa, ela compreende e explica:>
“Jesus Cristo é o centro de tudo. Nossa Senhora é a mãe dele. A gente pede primeiro a Ele, ela também pede a Ele, porque quem faz o milagre é Jesus. Nossa Senhora não faz milagre, quem faz é Ele. Muitas pessoas esquecem de Jesus e colocam tudo em Nossa Senhora. Primeiro é Jesus, o centro da nossa vida. Nossa Senhora vem depois, porque ela é a mãe. Foi isso que o Papa disse”, completa. >
Com ou sem orientação, a igreja estava linda. Com coroas de flores amarelas e brancas, a imagem de Nossa Senhora da Conceição recebeu os fiéis em sua casa, na igreja matriz, enquanto a missa campal era celebrada com muita música e palavras de fé. Sozinho aos pés da santa, Raimundo Borges chorava copiosamente. A tradição era ir com sua mãe todo ano, mas este foi o primeiro sem a presença dela, que morreu ano passado. “Sei que ela está aqui, ao lado de Nossa Senhora, nos abençoando. A saudade aperta mais, pois era tradição acompanhar a procissão com ela. Mas não vou deixar isso acabar. Continuarei vindo e fortalecendo a fé”, celebra. >
Dia de Nossa Senhora da Conceição da Praia
O prefeito de Salvador, Bruno Reis, também compareceu e acompanhou a missa. Para ele, um local como a Conceição é ideal para reflexões e sabedoria. “Chegamos para render homenagens à Nossa Senhora, que aqui é da Conceição da Praia, a primeira capela no país. É um local de fé e tradição, lugar de pedir proteção, sabedoria e renovar a esperança num momento em que estamos concluindo mais um ano. É um momento de reflexão necessária para um 2026 ainda melhor”, disse. >
Durante a missa, o cardeal Dom Sérgio da Rocha, Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, lembrou da importância da fé. “O dia de nossa padroeira é o dia de alcançar a bênção apostólica. Vamos redobrar nossa disposição e perdão à Deus, com reconciliação, fé e agradecimento”, disse Dom Sérgio, no início da missa, observando algo diferente no público que acompanhava o dia litúrgico. Ao invés do tradicional branco e amarelo, a procissão parecia ter vindo do Barradão direto para a Conceição da Praia, pois o que tinha de camisa do Vitória não foi brincadeira. >
“Foi mais um milagre, né? Vim agradecer pelo meu Vitória ter escapado do rebaixamento, mas também já estou adiantando minha promessa para o ano que vem. Estou pedindo para Nossa Senhora da Conceição que, em 2026, a gente sofra menos, né?”, disse Isaquias, com sua camisa rubro-negra no meio da multidão. “Minha vontade era sair do Barradão direto para cá, mas não pegava bem ver Nossa Senhora com o teor etílico que eu estava”, conta. >
O torcedor Fábio foi além. “Rapaz, vim agradecer a permanência, mas também agradecer por não ter morrido do coração ontem, naquele jogo ‘dos infernos’ [neste momento, ele olha pra imagem e pede desculpas, se benzendo]. Desculpa, Nossa Senhora, mas este time me obriga a xingar”, disse o devoto e torcedor do Vitória. >
Após mais de uma hora de missa, com todos atentos, iniciou-se a tradicional procissão pelo comércio de Salvador. O Menino Jesus liderava o cortejo, acompanhado das imagens de São José e Nossa Senhora da Conceição, celebrando a Sagrada Família. Enquanto isso, um trio elétrico comandava o cortejo com muita música e fé. Foi tanta fé, que o motorista não viu o cortejo dobrando para retornar à igreja matriz, seguindo direto, enquanto a cantora gritava no microfone “Para onde estamos indo, motorista? Volta, volta!”. O motorista precisou ser parado por policiais, que o fizeram retornar, enquanto o cortejo o aguardava, em silêncio. É a Bahia…>
Sincretismo >
No sincretismo religioso, Nossa Senhora da Conceição é associada principalmente a Oxum, a orixá das águas doces. Logo no início da manhã, religiosos do Candomblé fizeram oferendas nas águas do Dique do Tororó, se dirigindo em seguida para a procissão, num local lúdico com duas religiões em perfeita harmonia. “Sou filha de Oxum e da Conceição. Para mim, são uma só. Na Bahia tudo se une e se mistura”, disse Jaqueline, enquanto tentava segurar a prancha em que a imagem de Nossa senhora era conduzida.>
A devoção a Nossa Senhora da Conceição da Praia é uma das mais antigas de Salvador e remonta ao início da colonização. A primeira capela dedicada a ela foi erguida ainda no século XVI, em 1549, próxima ao porto, onde chegavam embarcações portuguesas que traziam consigo a forte herança mariana. Considerada protetora dos navegantes, a santa rapidamente se tornou referência para pescadores, trabalhadores do cais e moradores da então jovem cidade. A imagem original, esculpida em pedra de lioz, foi trazida de Portugal e permanece até hoje como um dos maiores tesouros da fé baiana.>
Com o passar dos séculos, a devoção cresceu e ganhou caráter popular, culminando na construção da atual Basílica da Conceição da Praia, inaugurada em 1849, com suas pedras trazidas de Portugal e montadas como um grande quebra-cabeça na Cidade Baixa. O dia inaugura o período de festas populares na Bahia. >