Grande Davi: como o racismo leva pessoas negras ao esgotamento?

Entenda o que é o burnout racial  e veja como o campeão do BBB 24 conseguiu subverter a lógica racista dentro e fora do programa

  • Foto do(a) author(a) Priscila Natividade
  • Priscila Natividade

Publicado em 20 de abril de 2024 às 11:00

Davi Brito, campeão do BBB 24
Davi Brito, campeão do BBB 24 Crédito: João Cotta/ Globo

Sujo, desorganizado, fedido, irresponsável, mal-educado. Imprestável, preguiçoso, violento, fofoqueiro, falso, perigoso, burro. Ao longo de 100 dias de confinamento na casa do BBB 24 (Rede Globo), o campeão desta edição do programa, Davi, enfrentou inúmeras situações de racismo como todo mundo assistiu na televisão.

Primeiro homem negro retinto e terceiro baiano a conquistar o merecido primeiro lugar do reality show, ficou evidente que o motorista de aplicativo entrou em sofrimento diversas vezes, e quem estava de fora e sabe bem o que é passar por isso, com certeza, sofreu junto. Não por um acaso, o brother acumulou uma torcida gigantesca, lotou de fãs o Campo da Pronaica, em Cajazeiras - mesmo debaixo de um pé d’água no dia da final - reinando agora em meio a 10,5 milhões de seguidores nas redes sociais.

Ataques, luta intensa, repercussões na internet. Antes de Davi Brito sair de lá com o prêmio de R$ 2,92 milhões, entrou em cena também o burnout racial, uma condição desenvolvida por pessoas negras que lidam com o racismo em suas vidas profissionais, como destaca a psicóloga e especialista em Diversidade e Mediação de Conflitos Raciais, Shenia Karlsson.

“Todos esses estigmas foram aferidos ao Davi por alguns participantes, embora Davi demonstrasse totalmente o contrário não somente por palavras, mas principalmente por sua conduta e seu comportamento consistente do começo ao fim. Isso gerou um enorme desconforto porque quando a representação não condiz com a realidade, a branquitude fica confusa, angustiada, nervosa, sem nenhum depositário de suas faltas e desvios e consequentemente atacam a vítima”, explica.

Shenia é também especialista em Terapia de Família e Casal pela PUC-Rio e consultora em Diversidade, Inclusão e Equidade, além de ter sido mediadora do reality da Netflix, Ilhados com a Sogra (2023). Para ela, Davi tinha ciência de suas potencialidades e mostrou tudo sem o menor constrangimento.

Davi conquistou a liderança no BBB 24
Davi conquistou a liderança no BBB 24 Crédito: Reprodução/TV Globo

“Ele foi subestimado pelos demais, que não tinham ideia de sua força. Normal num país racista, onde não se espera qualidades tão sofisticadas de um jovem negro. Sua autoestima, autoconfiança, comprometimento, seriedade, assertividade e principalmente sua inteligência conseguiram gerar identificação em massa, num país que apesar dos pesares está cansado das injustiças, sendo estas direcionadas a um certo tipo de corpo: negro, pobre e inundado pelas precariedades sociais de todas as ordens”.

"Sua autoestima, autoconfiança, comprometimento, seriedade, assertividade e principalmente sua inteligência, conseguiram gerar identificação em massa, num país que apesar dos pesares está cansado das injustiças, injustiças essas direcionadas a um certo tipo de corpo: negro, pobre e inundado pelas precariedades "

Shenia Karlsson
psicóloga e especialista em Diversidade e Mediação de Conflitos Raciais

No mês passado, o Ministério Público da Bahia, por meio da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo, instaurou procedimento para apurar os ataques racistas cometidos nas redes sociais contra Davi Brito. Até o fechamento desta reportagem, o MP não havia dado um retorno sobre o andamento da investigação de crime de injúria racial.

As histórias de superação de pessoas pretas, pobres e de periferia sempre foram o produto mais valioso para os realities, afinal, muitos outros participantes negros já passaram pelo BBB. Paredão por paredão, Davi, ainda de acordo com Shenia, deu lições de enfrentamento ao racismo, crescendo no programa.

“Vivemos num momento histórico em que é impossível não abordar a questão racial, visto que é escandalosa. Davi não permitiu ninguém dizer quem ele era, manteve o foco, responsável com seu projeto de vida, sabia bem o que tinha ido lá buscar. Era generoso moderadamente a partir do momento em que percebeu com quem devia aliançar, foi criterioso e muito lúcido. Mesmo diante das práticas de silenciamento não se deixou abater, mudou estratégias de comunicação, mas não se calou”.

Enfrentamento

O burnout racial pode levar ao absenteísmo, a hipermedicalização, o trauma, a desistência da vida profissional. Entre os sintomas estão o cansaço excessivo, falta de motivação, estados e crises de ansiedade antes de ir para o trabalho, alterações de apetite, insônia, irritabilidade, problemas com a memória, como ressalta Shenia.

“O conceito de burnout tradicional é uma condição de adoecimento devido a situações oriundas do trabalho. O burnout racial é uma condição muito semelhante ao burnout, mas que, muitas vezes, a pessoa negra ao menos percebe que seu adoecimento advém dessas questões. Em minha prática clínica percebi através dos relatos de clientes negros um conjunto de sintomatologia muito semelhante ao burnout, mas com causas diferentes”.

"O burnout racial é uma condição muito semelhante ao burnout, mas que, muitas vezes, a pessoa negra ao menos percebe que seu adoecimento advém dessas questões"

Shenia Karlsson
psicóloga e especialista em Diversidade e Mediação de Conflitos Raciais

O sentimento de que não está sendo amparado, que vive em estado de abandono, sobretudo em ambientes majoritariamente brancos, pode adoecer profundamente e em casos mais graves, levar até a depressão. Em entrevista ao G1 Bahia, a esposa de Davi e assistente social, Mani Reggo, disse que após a saída dele da casa, o participante comentou a exaustão mental que sentiu depois de tudo que viveu no BBB.

Sob os olhares do telespectador, Leidy jogou as roupas de Davi na piscina. A carioca Fernanda disse que Davi saiu do “c* da Bahia”. Foi Fernanda também que ao comentar o favoritismo fora da casa, disse que para ele arrumar um emprego de segurança num prédio. A cantora Wanessa Camargo chamou Davi de “perigoso” e o comparou a pessoas abusivas em um relacionamento. Afirmou que o brother despertava “gatilhos”. Davi enfrentou embates com a modelo Yasmin Brunet, que o chamou de “psicopata” quando ele se fantasiou de palhaço. Yasmin chegou a dizer que Davi era "nojento" e que não gostava do jeito dele, da energia dele. "Tudo dele me incomoda".

Em outro reality, no Ilhados com a Sogra (Netflix), Severina Tenório também dominou o debate racial. No Esporte, o jogador Vinícius Jr. enfrenta constantes ataques racistas. Ainda que Davi tenha subvertido a lógica racista dentro do reality, a especialista chama atenção para o cansaço que existe de tentar provar a todo tempo que é bom, que merece estar ali. O racismo é insistente.

Shenia Karlsson é psicóloga e mediadora na série da Netflix
Shenia Karlsson é psicóloga e especialista em Diversidade e Mediação de Conflitos Raciais Crédito: Flavio Teperman/ Divulgação

“O estresse racial é uma forma de denúncia. Será que esses ambientes estão preparados para receber a diversidade que prometem? As pessoas negras adoecem e sofrem nestes ambientes, mas parece que esses mesmos ambientes demoram a se articular para resolver a questão racial, de forma que o problema não é enfrentado e, sim, amenizado. Há questões basilares que dão trabalho de resolver, as iniciativas muitas vezes são falhas, não é visto como uma prioridade, sendo assim a estrutura não muda”.

Shenia argumenta ainda que existe uma tendência de não reconhecer a diversidade do que é ser negro no mundo. “Cola-se a experiência do negro à lógica grupal e nunca se pensa num sujeito negro único, com qualidades e inconsistências, esse é um privilégio do sujeito branco que tem a autorização de ser ele, somente. Cada um irá viver todas essas experiências e respondê-las de forma diferente, inclusive o sofrimento gerado pelo racismo”, completa.