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Nilson Marinho
Publicado em 3 de junho de 2024 às 04:55
Nos paredões de um sítio arqueológico localizado a cerca de 30 quilômetros (km) da sede de um município baiano, no Oeste da Bahia, membros de uma expedição visualizaram, no último dia 15 de maio, pinturas rupestres de toda a sorte. Mas os olhos dos expedicionários se voltaram em especial para uma delas. O nome da cidade foi mantido em sigilo, a pedido da equipe de pesquisa. >
Um animal robusto, com três dedos em cada uma das suas quatro patas, rabo curto e uma espécie de tromba de elefante. Estava ali estampada a representação de um animal inimaginado por qualquer homo sapiens da era em que vivemos, exceto em suas mais surreais quimeras.>
O espeleólogo Admir Brunelli, líder da expedição, sabia do que se tratava aquela criatura: um Xenorhinotherium bahiensis, ou melhor, animal de narinas estranhas da Bahia. É uma criatura que pertencia a um grupo de mamíferos extintos há pouco mais de 10 mil anos, os Ungulados sulamericanos, que só foram encontrados na América do Sul no período Pleistoceno.>
O local onde a pintura rupestre foi localizada em si não era a grande novidade para os expedicionários, até porque o sítio arqueológico já havia sido descoberto em meados de 80. A equipe de profissionais estava ali inclusive para avaliar as condições dos achados arqueológicos já que os paredões estão situados entre serras onde uma empresa de energia renovável sobe torres eólicas.>
O que mais chamou a atenção, no entanto, foi o fato daquela ter sido a primeira vez, ao menos é o que acredita Brunelli, que o desenho do animal de narinas estranhas da Bahia feito por um ser primitivo foi avistado.>
Há relatos de uma pintura na Colômbia parecida com a que foi encontrada na região, mas os estudiosos não conseguiram precisar se era a representação de uma Xenorhinotherium ou Macrauchenia patachonica, espécie similar, parecida como uma lhama, embora não tenha evidências de parentesco com elas. O fóssil desse derradeiro animal foi encontrado pela primeira vez por Darwin, em 1834, na Patagônia Argentina.>
Uma das últimas notícias que se tinha sobre algum achado do animal foi a coleta de suas porções cranianas e dentárias descobertas na caverna calcária Toca dos Ossos, em Ourolândia, no centro norte do estado, também em meados de 80. >
O material, encontrado pelo doutor em morfologia Castor Cartelle Guerra, da equipe de Paleontologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), foi analisado juntamente com outros fragmentos localizados no norte de Minas Gerais.>
“Dificilmente se encontra o esqueleto completo. Durante diversas campanhas fomos encontrando peças completas e incompletas. Com o tempo, a gente tinha em mãos o material suficiente para conhecer a espécie”, diz Carlette.>
O doutor em morfologia utilizou fragmentos da Macrauchenia patachonica para comparar com aqueles encontrados em terras baianas e mineiras. Embora tivesse algum grau de familiaridade, ficou claro para o estudioso que as criaturas também possuíam características que as distanciavam, sendo oportuno chamar os dois animais apenas de “primos chegados”.>
“A nossa espécie, era semelhante, porém, diferente. Passamos várias semanas na Argentina e chegamos à conclusão de que havia algo parecido na Bahia. Chamamos de Xenorhinotherium bahiense”, contou Carlette.>
A espécie vivia em locais mais abertos, secos, sobretudo na região Nordeste do Brasil, mas também podia ser encontrada no Norte da Venezuela. Levou o nome de animal de narinas estranhas da Bahia porque a maioria dos fósseis que se tem notícia foram encontrados em território baiano. >
Era menor que a Macrauchenia patachonica, medindo, em média, dois metros de comprimento e também era mais esguia, pesando cerca de 800 quilos. Além disso, era mais veloz e sua narina mais proeminente, similar à uma tromba de um elefante. Sua morfologia dentária sugere uma adaptação a uma dieta mista, de hábitos de pastoreio. >
“O animal teve uma cauda curta, três dedos com cascos em cada pata, o lombo recurvado, o pescoço comprido e a tromba. É o que retratou o desenhista primitivo. Possivelmente, o pescoço seria um pouco mais avantajado e a tromba bem clara. O desenho encontrado manifesta claramente que representa o Xenorhinotherium bahiense”, descreveu o doutor em morfologia ao analisar o achado num município na região de Ibotirama.>
A Macrauchenia patachonica, por sua vez, alcançava os três metros de altura e pesava até uma tonelada. Vivia principalmente na Argentina e Uruguai, mas também podia ser encontrada em algumas partes do Brasil. A narina, menor que a da sua prima baiana, se aproximava muito mais a de uma anta. O animal também tinha condições de se adaptar a diferentes climas e vegetações.>
“O que nos chamou a atenção foi a pintura desse megamamífero que habitava aqui e que também era da família das Macrauchenia, especificamente concentrado na América do Sul, migrando para o interior do continente. Representantes baianos dessa espécie teriam sido individualizados o suficiente para serem considerados separados, denominados de uma nova classe, o Xenorhinotherium. Alguns estudiosos consideram que eram representantes de uma subespécie, mais leves, parecidos com a Macrauchenia patachonica”, explica Brunelli.>
O espeleólogo preferiu manter em anonimato o nome da cidade onde as pinturas pré-históricas foram encontradas. O receio é de que com a divulgação pessoas tenham acesso aos paredões e vandalizem o espaço, como já o fizeram.>
Durante a expedição do último dia 15, foi possível notar, por exemplo, que entre as pinturas antropomorfas, zoomorfas e desenhos geométricos, havia uma pichação na formação rochosa.>
“Identificamos uma pichação, um símbolo de um time paulista, descaracterizando o local. O sítio arqueológico precisa ser melhor estudado e caracterizado arqueologicamente, o que pode trazer novas descobertas sobre como essas populações viviam e novas datações através de métodos como o radiocarbono. Observei também sobreposições de pinturas, indicando que não foi apenas uma população que passou por ali, mas várias”, conta Brunelli.>
A preocupação também é com a chegada de empresas de energia renovável na região e a visitação irresponsável da população que deixam no local restos de fogueiras e recipientes de bebidas alcóolicas. Caçadores também podem estar degradando as pinturas, alerta o estudioso.>
“Essas pinturas nos comunicam sobre o passado, visando o futuro, mas precisamos estar preocupados com o presente. Essas populações pintaram o que viram, incluindo esse animal, e Raul Seixas, um baiano que nasceu há dez mil anos, também pode ter visto essas pinturas. Ele dizia: o hoje é apenas um furo no futuro por onde o passado começa a jorrar”, finaliza o espeleólogo ao citar a canção Banquete de Lixo.>