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Nilson Marinho
Publicado em 28 de abril de 2025 às 05:00
Na infância, Patrícia Oliveira levava uma vida simples, mas confortável, na cidade de Paripiranga, no nordeste baiano. Filha de agricultores, viu seu pai tomar uma decisão que mudaria os rumos da família: na década de 1990, ele decidiu participar de um acampamento na Fazenda Caimã, localizada em Adustina, município vizinho. Naquele tempo, o patriarca trabalhava como pedreiro, mas sonhava em conquistar um pedaço de chão, acreditando que ali poderia viver com mais dignidade. >
A fazenda virou o assentamento Caimã. E, uma vez com o sonho conquistado, o pai de Patrícia anunciou à família: agora todos deixariam a sede de Paripiranga para viver na zona rural de Adustina. A mudança foi um baque para a pequena Patrícia.>
“E pra mim foi um choque de realidade muito grande. Quando meu pai trazia a gente, o que não era frequente, porque ele evitava justamente por conta da pobreza do assentamento, eu ficava assustada com aquela realidade. Eu morava no centro da cidade, tinha acesso a uma boa educação, então nunca imaginei que a gente fosse morar ali. Minha mãe também não queria, porque na cidade a gente vivia bem. Mas meu pai insistia nesse sonho”, recorda.>
A decisão já estava tomada. A casa da família em Paripiranga foi vendida, e eles tiveram que recomeçar do zero no assentamento. Patrícia não compreendia aquela mudança tão brusca. Em um dia, tinha tudo o que precisava para crescer forte e saudável. No outro, sequer havia água potável para matar a sede.>
“No primeiro dia no assentamento, eu já queria voltar, já queria ir embora. Estava tudo começando do zero: a comunidade, as casas… Não tinha água, não tinha energia, não tinha nada. A gente bebia água do chão, dividida com o gado. Era tudo muito insalubre, uma vulnerabilidade absurda”, lembra.>
Choque>
Patrícia era a única criança no assentamento que tinha uma boneca e uma bicicleta, o que acabou provocando certa exclusão por parte das outras crianças. Mas, mesmo diante do isolamento, ela passou a admirar o modo simples como os colegas se divertiam com tão pouco.>
“Abandonei meus brinquedos e comecei a me enturmar com as outras crianças. Foi quando conheci uma outra realidade, um outro sertão. Mesmo vivendo de forma tão simples, aquelas crianças eram muito felizes. Criavam suas próprias brincadeiras, seus próprios brinquedos, com uma criatividade imensa. E eu comecei a me encantar por aquilo, a gostar do sertão.”>
O acesso à educação era outro desafio enorme. Para chegar à escola, eram 24 quilômetros de estrada. Quando o ônibus quebrava, Patrícia precisava voltar para casa a pé. E, no ambiente escolar, o preconceito era evidente.>
“E eu sempre tive muita revolta, porque conhecia um mundo onde tudo parecia possível, e ali a gente era invisível. Na escola, a gente não era aceito. Sofria preconceito por ser do assentamento, por ser pobre. Isso me revoltava muito. Eu batia de frente, provocava os professores, queria mudar aquela realidade. Foi aí que tudo começou.”>
Ainda adolescente, Patrícia começou a assumir papéis de liderança. Aos 13 anos, tornou-se tesoureira da Romaria da Santa Cruz da Ponta da Serra, festa religiosa realizada no assentamento que reúne milhares de fiéis, em caminhada rumo ao topo da serra. Segundo os relatos, foi ali que, há mais de 200 anos, teria ocorrido um milagre durante uma epidemia de febre amarela.>
“Eu já tinha esse espírito de liderança, esse desejo de mudança. Mas algo me incomodava: as pessoas vinham à nossa comunidade uma vez por ano e depois desapareciam. Durante o resto do ano, vivíamos isolados, sem infraestrutura, sem renda. As pessoas viviam do Bolsa Família ou da aposentadoria. E eu me perguntava: por que não criar um calendário de eventos? Por que essas pessoas não frequentam a comunidade aos finais de semana?”>
Patrícia começou a provocar seus colegas do assentamento, mas foi taxada de louca. Ninguém conseguia enxergar o que estava claro para ela. O tempo passou e a jovem líder foi morar em Aracaju (SE), onde se formou técnica de enfermagem. Mas os planos de mudança nunca foram esquecidos.>
“Sempre que eu estava fora, via o quanto os empreendimentos turísticos dariam certo na nossa comunidade. E decidi voltar. Não conseguia construir minha vida pessoal, porque sentia que precisava construir uma vida coletiva. Quando voltei, a comunidade estava abandonada. A igreja estava fechada há cinco meses, a Romaria ia acabar. Então assumi as responsabilidades. Criei um grupo de jovens, que deu origem à associação e, depois, ao Instituto Santa Cruz.”>
Mudanças>
O Instituto promove atividades no assentamento como artes integradas, música, literatura, alfabetização, cursos profissionalizantes e novas tecnologias. Com campanhas nas redes sociais e apoio de parceiros, Patrícia e uma equipe formada por mulheres da própria comunidade construíram do zero a sede do Instituto em apenas três meses.>
“O objetivo do Instituto era dar assistência às famílias sertanejas. Começamos com a nossa comunidade, mas o projeto cresceu tanto que hoje atendemos três municípios: Paripiranga, Adustina e Sítio do Quinto. Na pandemia, atendemos 12 cidades baianas, impactando mais de 15 mil pessoas com cestas básicas digitais, em parceria com a Gerando Falcões. Fui a primeira líder da Bahia a ingressar na rede.”>
Patrícia formou uma equipe com meninas que cresceram com ela. Todas se tornaram lideranças, se profissionalizando e entendendo a missão do Instituto. Hoje, o assentamento conta com 89 casas e mais de 500 moradores. O local se transformou em um atrativo turístico de Adustina. Os visitantes podem subir a serra, tomar banho de rio, participar de oficinas com as crianças da comunidade, se aventurar em trilhas de motocross ou sair em busca de vestígios do cangaço, já que o local foi palco da morte do cangaceiro Sabonete 2.>
“A gente tem só quatro anos de existência, mas eu já venho batalhando para desenvolver o turismo da comunidade há nove anos. A gente foi acessando várias redes, vários projetos, vários editais… e a nossa comunidade realmente se transformou através do turismo. O turismo comunitário chegou com uma força, uma proporção tão grande, que tudo começou a fluir. A nossa vontade era tanta, a nossa força de trabalho tão grande, que conseguimos conquistar a população local. E logo começamos a alcançar também as cidades vizinhas.”>
Premiação>
A virada de chave veio com a inscrição para o Prêmio WTM de Turismo Responsável, uma das maiores feiras do setor na América Latina, que reconhece iniciativas inspiradoras e sustentáveis. Patrícia já conhecia o prêmio, por fazer parte da Rede BATUC, que integra projetos de turismo comunitário na Bahia.>
“Presenciei a entrega do prêmio lá em São Paulo, vi aquela feira gigantesca e fiquei pensando: será que um dia o sertão pode estar aqui? Será que nosso trabalho pode ser visto, valorizado? Fiquei sonhando com aquilo. Porque eu nunca vi o nosso povo sertanejo participar de algo assim. E aí, no último dia da inscrição para o prêmio deste ano, eu sentei à mesa e escrevi o projeto com a alma. E nosso projeto foi finalista.”>
A edição contou com representantes de 40 países. Patrícia estava lá. “Eu fiquei tão feliz com o resultado de finalista, que nem pensava no ouro. Achava tão distante da gente. Eu já estava muito realizada só de ser finalista. Dizia para as meninas: vamos para São Paulo, fazer network, contar nossa história para mais gente.”>
Mas veio a surpresa: a iniciativa desenvolvida no sertão de Adustina levou o ouro ao concorrer com projetos de 14 países da América Latina. Só no ano passado, o assentamento recebeu 5 mil turistas, e a expectativa é superar esse número este ano, segundo Patrícia.>
“Eu não consigo descrever em palavras a sensação de voltar com esse prêmio nas mãos. É muito importante pra gente. É a certeza de que todo o trabalho suado valeu a pena. Tudo que a gente construiu até agora foi com as próprias mãos. E isso chamou a atenção dos jurados. Nossa história tocou muito eles. A gente conseguiu comprovar o impacto do nosso trabalho: como melhorou a economia da comunidade, como aumentou o fluxo de turistas, todos os produtos turísticos que criamos com nosso próprio entendimento”, conclui.>