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Priscila Natividade
Publicado em 2 de julho de 2023 às 07:00
Rua dos Perdões, no bairro do Santo Antônio Além do Carmo. É ali no meio do circuito por onde passa o Cortejo do 2 de Julho que fica a casa onde a família da professora Juliane Neves mora há 40 anos. Ver da janela a passagem do Caboclo e da Cabocla tem um sentido não só cívico mais muito especial para Juliane: “Gosto mais do 2 de julho do que do meu aniversário. É um dia de tradição, alegria e história. Cresci ouvindo sobre as lutas até a independência. A gente arruma a casa, enfeita tudo e leva três dias fazendo a maniçoba para receber nossos amigos e familiares”. >
Aquela casa comprada em 1983 por uma devota de Santo Antônio que fez até reza para encontrar um lugar próximo à igreja do santo, viu e ainda vê muita gente passar por ali. “A passagem da Cabocla é de arrepiar. As fanfarras são lindas demais. Nesse tempo que moro aqui, vi muitas mudanças. Não passam mais animais, já teve também um ano com minitrio, que não vi mais. As charangas diminuíram. E em ano eleitoral é sempre diferente, a concentração de gente é maior”, ressalta. >
E ver tudo isso desfilando bem ali de camarote rendeu ainda a fama de “casa da maniçoba”, como afirma Juliane. “Minha mãe, Dona Nicinha, sempre gostou da alegria da festa. Esse vai e vem de pessoas que passam pela minha casa por conta do cortejo fez com que ela e minha irmã Josiane decidissem fazer a maniçoba, uma receita que minha avó tinha o maior ciúme e fez prometer que só fizesse depois que ela morresse. A maniçoba se tornou tradição”. >
Que o sol nasceu a 2 de julho e brilhou mais que o primeiro, muita gente já sabe. Saiu da Lapinha, Barbalho, Centro Histórico. Passou pela Avenida Sete de Setembro até chegar ao Campo Grande. Trouxe junto o Carro do Caboclo e da Cabocla, as fanfarras, os batalhões patrióticos e estandartes. Inspirou as fachadas decoradas nas cores das bandeiras do Brasil e do estado da Bahia. Agora dá para entender porque a professora Juliane nem imagina hoje que um dia, a porta da sua casa não fez parte desse caminho. Dá para acreditar que nem sempre o cortejo foi assim? >
Para começo de história, o Terreiro de Jesus, no Pelourinho, era considerado o centro da cidade. Foi dali que saiu o primeiro desfile de 2 de julho em Salvador até a Casa da Moeda, esquina da Rua da Misericórdia com a Praça Municipal, onde estava montado um palanque com retrato de Dom Pedro I. Formato totalmente diferente do que se vê atualmente, como destaca o jornalista, pesquisador e escritor, Nelson Cadena. >
“Foi tudo muito no estilo salva de tiros, desfile militar e honras ao imperador. O roteiro dos primeiros desfiles não tinha nenhuma referência ao que se implementou décadas depois e que incluiu a Lapinha. O povo não participou a não ser como espectador, entoando o ‘Viva o 2 de julho’”. >
Nelson Cadena
jornalista, pesquisador e escritorÉ o Carro do Caboclo que chega e começa a mudar muita coisa. O povo se incorpora no desfile, a partir de 1828 quando ele sai pela primeira vez, ainda que os elementos formais prevalecessem na festa. A figura não tinha sido exatamente um herói de guerra, mas sim, uma referência ao povo mestiço anônimo que lutou pela independência. Cadena retoma mais um fato interessante: >
“Anos depois o Carro da Cabocla passou a fazer parte do desfile, uma imposição dos portugueses, na intenção de eliminar o caboclo que consideravam uma provocação. Queriam substituir o caboclo por uma índia representando Catharina Paraguassu. O povo não aceitou e ficou com os dois símbolos”. >
A participação se fortalece quando o desfile passa incorporar roteiro que teria sido percorrido pelo Exército Pacificador e que incluía a Lapinha, Santo Antônio, Soledade e se torna de fato popular com a criação dos batalhões patrióticos formados por civis. >
“Os pioneiros foram da imprensa, dos jornais O Bahiano e O Brasileiro. Teve batalhões patrióticos dos acadêmicos, caixeiros, artistas navais, artesãos, artistas nacionais, chapeleiros, comerciantes, saveiristas, veteranos da Independência, Liga Operária. No desfile do 2 de julho, os batalhões patrióticos se organizavam a partir de entidades com alguma representação social”. >
Se a participação popular vai saindo da posição de expectadora da festa e conquistando espaço dentro do desfile cívico, a expansão urbana também é mais um fator que muda o curso da história e o trajeto do cortejo, como complementa o professor e historiador, Jaime Nascimento. E olha o Caboclo aqui de novo e provocando a “invenção” de um novo lugar de memória: >
“Como o Caboclo e a Cabocla ficavam expostos no Terreiro de Jesus e depois eram guardados num barracão que tinha perto da igreja do Rosário, se resolveu que deveria ter um monumento público para as pessoas verem o Caboclo durante o ano inteiro. Já existia o chafariz em frente ao Quartel, no Largo dos Aflitos, mas a urbanização da cidade pedia uma estátua maior e condizente com a importância do 2 de julho”. >
Jaime Nascimento
professor e historiadorUrbanizaram a área e instalaram a estátua no Campo Grande, o que acabou aumentando o trajeto do cortejo que agora terminava aos pés do Caboclo. O ano era 1895. “O cortejo muda muito em função das transformações urbanas e por essa necessidade de ter uma simbologia, um marco mais adequado a importância da data. Por isso se construiu o monumento que transformou na Praça do Campo Grande nesse espaço de comemoração”, ressalta Nascimento. >
Só 20 anos depois, a Avenida Sete passa a fazer parte do trajeto após ter sido inaugurada, aproximando mais o cortejo do que a gente vê hoje. “A participação popular mudou em alguma medida por conta das transformações da sociedade. Essas conquistas foram crescendo ano a ano ampliando o percurso e a presença dos grupos que fizeram o 2 de Julho”, complementa. >
Mesmo após 200 anos, o trajeto do cortejo tem muita história para contar. Inclusive, coisas que pouca gente sabe. O professor, pesquisador e escritor, com mestrado e doutorado em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Daniel Rebouças destaca que uma novidade que a documentação tem mostrado é de que o primeiro símbolo que representou o povo já era a Cabocla e não o Caboclo. >
“Essa é uma das grandes novidades da pesquisa do Hendrik Kraay, professor da Universidade de Toronto e especialista no 2 de Julho. O símbolo indígena do desfile foi uma ‘cabocla’, ou seja, uma representação feminina em posição agressiva. Isso desconfirma a versão mais disseminada que o primeiro símbolo foi um índio ferindo a serpente, numa alusão a Portugal. Vale lembrar que a América era simbolicamente representada desde o século XVII por uma indígena, o que deve ter influenciado o movimento na Bahia”, argumenta. >
Ainda sobre os símbolos, além da figura do Caboclo e da Cabocla, Rebouças pontua quem não podem faltar no cortejo a representação dos heróis de rua. “Lá no início, D. Pedro I, Labatut, João das Botas eram os mais populares, enquanto personagens como Maria Quitéria e Joana Angélica conseguiram se manter, embora com pequenas diferenças de ênfase. Joana Angélica, por exemplo, já foi mais exaltada por seu lado católico. Atualmente é representação de bravura. Vimos emergir figuras como Maria Felipa”. >
Daniel Rebouças
professor, pesquisador e escritor, com mestrado e doutorado em História pela UfbaPara o pesquisador, o maior legado do desfile está justamente na apropriação constante de quase todo tipo de manifestação, seja política, religiosa, de gênero e sexualidade. “O 2 de Julho é o nosso exemplo mais poderoso da força que um processo histórico de luta pode ter na formação de um estado, de um povo. É uma festa cívica única no país, porque mistura muitos elementos, entre eles, o elevadíssimo nível de participação civil em uma festa tipicamente cívica”, completa. >
E se alguém te disser que tentaram ofuscar a presença do Caboclo e a Cabocla do Cortejo com outro símbolo popular? Pois é. No centenário do 2 de Julho, a participação inédita - e, porque não dizer, ilustre - da imagem do Senhor do Bonfim nas comemorações em 1923 deu o que falar. A imagem saiu da Colina em romaria marítima e foi deixada na Igreja da Vitória, retornando após uma missa campal e procissão até a Cidade Baixa. >
O fato, no entanto, nunca mais se repetiu. E nem mesmo nesse bicentenário a imagem do Senhor do Bonfim deve sair no cortejo novamente, segundo a confirmação do atual pároco da Basílica do Senhor do Bonfim, padre Edson de Menezes. “Cem anos depois, nesse dia de comemoração resolveram levar a imagem no cortejo, a fim de agradecer a ajuda que o Cristo deu para que os baianos vencessem, ainda que o Senhor do Bonfim tenha sido trazido por um português, o capitão Teodozio de Farias”, explica o professor e historiador, Jaime Nascimento. >
Não é mera coincidência, inclusive, que a Independência esteja nos versos no Hino ao Senhor do Bonfim. Ali, os baianos reconheciam que houve a intervenção do Senhor do Bonfim na liberdade alcançada, como acrescenta Nascimento. É nessa época também que se resolve fazer um concurso para colocar letra no hino, que antes não tinha letra, era só orquestral.>
“A participação da imagem do Senhor do Bonfim foi um fato histórico dentro de outro que já era o desfile de 100 anos da Independência. E aí é que o hino é todo trabalhado na perspectiva do episódio histórico do 2 de julho, por isso é que ele se inicia dizendo ‘glória a ti, nesse dia de glória, glória a ti redentor que há 100 anos, nossos pais conduziste a vitória pelos mares e campos baianos’”. >
2 de julho de 1824 - Logo um ano depois da Independência, se inicia a tradição de fazer o cortejo em Salvador. O primeiro desfile de em Salvador saiu do Terreiro de Jesus até a Casa da Moeda. >
1828 - O povo se incorpora no desfile, a partir de 1828 quando sai pela primeira vez o carro do Caboclo, em representação a participação popular na conquista da independência. >
Depois de 1829 - Foi só no final dessa primeira década, que criaram um dos rituais mais conhecidos: a simulação da entrada do exército pela Lapinha.>
1836 - Os cucumbis - negros fantasiados de índios – passam a participar dos desfiles, fortalecendo a presença popular, mesmo que ainda sem autonomia. A criação dos batalhões patrióticos formados por civis também reforçam essa participação. >
1846 - O Carro da Cabocla é incorporado ao desfile, numa tentativa de substituir o caboclo por uma índia representando Catharina Paraguassu. Só que o cortejo acabou ficando com os dois símbolos. >
1895 - É criado o monumento no Campo Grande, ampliando o trajeto do cortejo que antes ia só até o Pelourinho. >
1914 e 1915 - Os caboclos deixam de sair no desfile oficial. Saíram em outro dia, no bairro de Santo Antônio. Porém, milhares de pessoas acompanharam os caboclos, o que desestimulou as autoridades da intenção de eliminar os carros da festa. >
1915 - Quando a Avenida Sete de Setembro é inaugurada, o lugar passa a receber o cortejo na ida e na volta. >
1918 - O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) passa a ser o principal organizador do cortejo, com a construção do Pavilhão da Lapinha onde ficam guardados os carros emblemáticos e as esculturas do caboclo e da cabocla. Antes, o cortejo era responsabilidade Sociedade Patriótica Dois de Julho. >
1923 - No centenário da Independência da Bahia, o Senhor do Bonfim foi incorporado aos festejos do 2 de Julho. Essa foi a única participação no cortejo até hoje.>
De 1959 em diante - Os órgãos estatais passam a assumir a organização da festa. Mudaram também alguns heróis de rua: inicialmente, D. Pedro I, Labatut, João das Botas eram os mais populares. Personagens como Maria Quitéria e Joana Angélica, permaneceram. Figuras mais novas, entre elas, Maria Felipa, ganharam destaque. >
1970 - Foi só na década de 70 que o hino ao 2 de Julho se popularizou, ainda que tivesse sido criado em 1926 pelo militar baiano Ladislau dos Santos Titara com música de José dos Santos Barreto. Entretanto, o hino só foi declarado oficial em 20 de abril de 2010, por meio da lei estadual nº 11.901, sancionada pelo governador Jaques Wagner. >
2006 - O Cortejo 2 de Julho é tombado como Patrimônio Cultural da Bahia pelo IPAC e inscrito no Livro do Registro Especial de Eventos e Celebrações Estado. >