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Raquel Brito
Publicado em 22 de maio de 2024 às 05:10
Ceramista, sambadeira, rezadeira. Ricardina Pereira da Silva, conhecida carinhosamente como Dona Cadu, viveu cada segundo dos seus 104 anos. Mestra ceramista mais antiga de Coqueiros, distrito de Maragogipe, no recôncavo baiano, ela morreu na madrugada desta terça-feira (21). >
No velório, na tarde desta terça-feira (21), o carinho da região pela centenária se materializou nas centenas de pessoas que acompanharam a procissão para homenageá-la. Ela foi velada na Câmara de Vereadores de Maragogipe, depois na Igreja Nossa Senhora da Conceição, em Coqueiros, e, finalmente, em sua própria casa. O corpo da centenária foi sepultado logo depois, no Cemitério do Alto do Monte Santos. >
Nascida em São Félix, no recôncavo baiano, Dona Cadu conheceu a cerâmica ainda jovem: foi ao ver uma vizinha do seu pai fazendo arte a partir do barro que se encantou pela prática. Desde que essa vizinha se ofereceu para ensinar à Ricardina, que na época tinha menos de dez anos, a trabalhar com cerâmica, a função nunca mais foi esquecida. >
Nesses 104 anos, repassou seu conhecimento para todos que queriam aprender. Fazia isso da mesma forma que aprendeu, através da oralidade. >
Entendia como ninguém a entrada dos ventos pela maré e onde melhor auxiliavam no processo da queima de suas panelas de barro. Quem conta essa história é Rosângela Cordaro. Formada em enfermagem, conheceu a ceramista há vinte anos, enquanto pesquisava cerâmica na região. >
As interações com Dona Cadu resultaram em um mestrado em História da África da Diáspora e Povos Indígenas por parte da enfermeira paulista. Seu objetivo era registrar a sabedoria que gerações da família da anciã disseminaram oralmente. O produto final foi um livro infantil com alguns de seus ensinamentos, finalizado em 2019. “É uma biografia dela em linguagem infantil. A gente teve a oportunidade de percorrer as escolas da região para divulgar. Ela ia, cantava, contava histórias. Foi uma experiência incrível”, lembra. >
No início da carreira, a clientela da artesã era, majoritariamente, das cidades onde peregrinava para tentar vender: sobretudo, Feira de Santana e Maragogipe. Depois, o público se ampliou e passou a enviar para Salvador. Recebia encomendas de grandes restaurantes de Salvador, como o Ki Mukeka e o Yemanjá. >
O barro e a fé>
A fama que veio com seu nome também impulsionou as vendas. Se, antes, ela saía para divulgar seus produtos, os clientes agora iam até a fonte para encontrá-los. A centenária foi uma artista de diversas áreas, mas tudo o que fazia girava em torno da cerâmica. Era enquanto queimava a louça, por exemplo, que cantava seu samba. Daí, nasceu o grupo que se tornaria depois o Filhos de Dona Cadu, que tem seu filho como vocalista e sua filha como sambadeira.>
Francisca Marques, coordenadora da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba), lembra de Dona Cadu como uma mestra muito respeitada por todos da área. Mesmo com a idade avançada, ela não perdia os eventos relacionados ao samba na região. “Ela era a sambadeira mais velha em atividade. Tinha o samba como um canto de trabalho, fazendo cerâmica. Era maravilhosa”.>
Dona Cadu deixa dez filhos, sendo dois biológicos e oito adotivos, quatro netas e dois bisnetos. Uma das netas é a historiadora Edvalda Lima. Segundo ela, a avó não deixou de trabalhar nem nos seus últimos dias: ministraria junto com ela uma oficina no próximo sábado (24). “Eu falei com minha avó ontem sobre a oficina. Ela estava lúcida, passou mal ontem e foi para o hospital. Nós ainda conversamos sobre a oficina. Uma hora depois, ela veio a óbito”, diz.>
Para ela, a avó deixa uma lição de amor. Afroindígena, Dona Cadu cresceu em meio ao preconceito sofrido pelas populações negra e indígena, mas acalentava os seus com o acolhimento da canção. “Ela enfrentou tudo com a cabeça erguida e com amor. Ela não teve instrução, não estudou, mas teve dois títulos de doutora. Seu legado é gigante, as falas eram muito potentes e ela queria que essa força fosse passada adiante”, afirma a neta. >
Como forma de honrar a sua obra, foi inaugurado em setembro de 2021 o Memorial Dona Cadu, em Coqueiros, idealizado por Rosangela e com colaboração da própria mestra. No local, estão as peças de cerâmica produzidas por ela, além de fotografias doadas pelo fotógrafo Rodrigo West, obras do acervo pessoal e peças que retratam a sua vida como mulher afro-indígena, ceramista, sambadeira e rezadeira.>
Unindo a religiosidade afrodiaspórica e o catolicismo, a constante de Ricardina foi sempre a fé. Era rezadeira das boas: até os médicos encaminhavam pacientes para sua casa. “Isso, só reza de Dona Cadu para resolver”, diziam. Ela recebia cada um. A própria Rosângela conta que, certa vez, teve um problema em uma das pernas que só a reza curou. >
O compromisso com a romaria de Bom Jesus da Lapa era sagrado. Em um dos anos, o ônibus quebrou no meio da viagem, que durou mais de 12 horas. Ao chegar, nada de descanso. Na mesma hora, foi rezar em agradecimento pelo trajeto finalizado em segurança.>
Incansável>
Dona Cadu foi múltipla desde cedo. Passava noites no samba, sem cansar e, na manhã seguinte, estava se preparando para trabalhar com o barro por horas a fio.>
Conforme a marca do tempo se fazia mais presente nos traços e movimentos da ceramista, a preocupação com Ricardina se fazia inevitável para os parentes e amigos. Uma fratura no fêmur há alguns anos foi o mais próximo que chegou de precisar parar. Nem isso, porém, a segurou. >
“Ela trabalhou até esta semana, nunca parou de fazer cerâmica. Mesmo quando teve o acidente, nós teimamos para ela parar, se aquietar, mas nunca funcionava. Sua vida era cerâmica e samba”, diz Edvalda. >
No que depender de seus descendentes, nem o samba e nem a cerâmica vão morrer ou acabar na família de Dona Cadu. >
Para o memorial, os planos são de expansão: além do acervo existente, será possível assistir a vídeos da centenária. Uma associação com seu nome também está sendo elaborada pelos familiares.>
Quem conheceu Ricardina afirma, sem pensar duas vezes, que sua longevidade foi resultado da leveza com que levava os dias, além de sua vontade de viver. Para ela, cada dia era uma oportunidade de moldar suas criações e mostrar que o samba no pé não se perde nem depois de tantos anos. >
“Uma vez, eu quis questioná-la sobre o que ela queria que fizéssemos no ritual de passagem, mas não sabia como fazer essa pergunta. Então, eu falei: ‘Dona Cadu, quando eu morrer, eu quero que tenha festa no meu velório. Eu não quero uma coisa triste e sim que toquem e cantem um samba, que tenha comida’. Ela falou para mim: ‘minha filha, não me peça, porque eu não vou cantar no seu velório’. Ela não pensava na própria morte”, lembra Rosângela.>
Tudo que a anciã fazia girava em torno da cerâmica. Ainda assim, foi uma artista de diversas áreas: era enquanto queimava a louça, por exemplo, que cantava seu samba. "Lá vem Dona Cadu do queimador de louça; quando o vento bate, balança sua roupa”, dizia a canção criada pelo filho Balbino em homenagem a ela.>
Era no samba de roda que Dona Cadu virava menina novamente. Com seu jeito único de dançar o samba de caboclo e o “samba de pulinhos” batizado por ela, encantava a todos que a assistiam sambar. “Nas rodas ela mostrava sua delicadeza e grandiosidade, quem a via sambando se surpreendia com tanta leveza, era sobrenatural”, diz Luciana Barreto, do grupo Mulheres do Samba de Roda.>
Com o grupo, ela formou uma segunda família. Viajavam para outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e o destino mais recente, Sergipe, onde foram em fevereiro deste ano. Foi através do amor pelo ritmo que nasceu o grupo Filhos de Dona Cadu, que tem seu filho como vocalista e sua filha como sambadeira.>
Francisca Marques, coordenadora da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba), lembra de Dona Cadu como uma mestra muito respeitada por todos da área. Mesmo com a idade avançada, ela não perdia os eventos relacionados ao samba na região. >
“Ela era a sambadeira mais velha em atividade. E tinha o samba como um canto de trabalho, fazendo cerâmica. Ela sempre participava das reuniões, das assembleias de sambadores na Casa do Samba, em Santo Amaro, e o grupo dela sempre se apresentava no Carnaval de Maragogipe. Era maravilhosa”.>
*Com orientação da subeditora Fernanda Varela.>