À espera de um lar: número de adoções cai quase 70% na Bahia em 2020

Das 854 crianças e adolescentes acolhidas, somente 28 estão disponíveis para adoção

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  • Marcela Vilar

Publicado em 25 de dezembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

A pandemia do novo coronavírus afetou em cheio o número de adoções na Bahia. Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), a queda foi de quase 70% em relação ao ano passado. Em 2020, apenas 18 crianças baianas foram adotadas, contra 58, em 2019. O SNA ainda revela outro dado inquietante: dos 854 pequenos e jovens acolhidos no território baiano, apenas 28 estão disponíveis para serem recebidos em um lar. 

O motivo é que muitos deles ainda têm vínculo com a família biológica, o que impede, legalmente, que entrem no cadastro nacional para conseguirem uma nova família. Com isso, o atraso na adoção - também por conta do perfil restrito desejado pelos pais adotivos - deixa crianças em casas de acolhimento por muito mais tempo do que o permitido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é de até um ano e meio. 

De acordo com o desembargador Emílio Salomão Resedá, chefe da Coordenadoria da Infância e Juventude (CIJ) do Poder Judiciário da Bahia (PJBA), existem jovens que estão em abrigos há 10 anos. Essa realidade foi descoberta durante a pandemia, segundo Resedá, através do projeto interinstitucional 'Proteção em Rede: Um Pacto pela Infância', em parceria com o Ministério Público e a Defensoria Pública. “Estamos levantando a situação de cada criança e essa postura tem descortinado situações um tanto quanto preocupantes. A realidade é que crianças e adolescentes estão passando seis, dez anos na instituição e isso não pode ocorrer. A lei estabelece que o prazo máximo é de um ano e meio”, constata o desembargador.O intuito do projeto, que já fez o levantamento com 16 das 276 comarcas na Bahia, é justamente acelerar essas negociações através da desvinculação da criança com a família biológica para que ela fique disponível para adoção. 

“O projeto tem injetado um ânimo maior no colega para que essa situação se resolva, abrindo possibilidades, porque são vidas que estão nos abrigos esquecidas, muitas vezes porque os juízes estão sobrecarregados e eles têm que obedecer orientações legais", afirma Resedá.

Segundo ele, há diversas situações nesse contexto. "Às vezes, os casais estão presos, ou houve uma situação de divórcio, ações de despejo e há uma demora na desvinculação com a família biológica. Então, a criança vai ficando no abrigo e gera uma situação de quase uma geração perdida. A gente espera que essas 854 crianças tenham os destinos definidos”, completa. 

Perfil restritivo A demora no processo de adoção se dá, muitas vezes, pelo perfil restrito desejado pela família adotante. Segundo dados do SNA, a preferência dos 1.298 pretendentes que existem na Bahia é por crianças de até dois anos de idade, do sexo feminino, sem irmãos, sem deficiência física ou intelectual e sem doença infectocontagiosa. No que tange à cor da pele, a maioria (44, 5%) não tem preferência. Porém, 24,8% afirmam quererem crianças pardas e 17,2% crianças brancas. No caso das pretas, elas são desejadas por 6,8% dos pretendentes. Em quinto lugar, estão as amarelas (3,6%), e, por último, as indígenas (2,6%). 

Para o desembargador, apesar da preferência da família ter de ser respeitada, é preciso que haja uma conscientização pela mudança do perfil. “É natural respeitar a vontade dos adotantes, mas temos que lembrar que o amor é incondicional, ele não tem balizas etárias, de número de irmãos ou de doença. Quando há o despertar do sentimento, ele se concretiza em qualquer condição. E essa preferência tem causado a retenção de vidas nas instituições de acolhimento. As pessoas só querem adotar crianças mais novas. Quando passa de quatro anos, as possibilidades de inserção em uma família vão se fechando. Não é a adoção que demora, o problema é que as crianças em condições para adoção têm uma idade maior”, explica o coordenador da CIJ. 

Ele enfatiza que quem quiser adotar crianças com alguma deficiência ou com irmãos ou as mais velhas, tem preferência no cadastro e o processo é mais rápido. No Brasil, são 5 mil crianças disponíveis para serem adotadas e 35 mil pretendentes. Esse hiato se explica pelo grande número de pessoas que preferem crianças mais novas e que não estão disponíveis no SNA. Se o perfil fosse mais abrangente, todos os jovens teriam uma família, ao invés de estarem em casas de abrigo. 

Mudança A mudança de perfil da criança foi o que aconteceu com a urbanista Karine Guermandi, 43 anos, que sempre sonhou em adotar. O processo de habilitação foi rápido: ela entrou com o processo em setembro de 2017 e em dezembro daquele ano já tinha sido aprovada para receber uma criança. Porém, naquela época, era solteira e só queria um recém-nascido, de até seis meses - o que aumenta a fila de espera. Três anos depois, a perspectiva mudou. Karine se casou em janeiro de 2020 e ampliou o perfil da criança para até dois anos, para que ela pudesse brincar com o sobrinho, de mesma idade. Ela não tem exigência de cor de pele, sexo e as doenças podem ser tratáveis.  Karine já está habilitada para adoção, mas o estado civil mudou e o marido também precisa se habilitar; ela mudou o perfil de criança desejado (Foto: Divulgação) Como seu estado civil mudou, o marido também precisa estar habilitado, uma vez que passou a integrar a família. Como ele foi incluído no processo durante a pandemia, tem enfrentado atrasos para conseguir a habilitação. “A equipe de Salvador tem sido sempre muito prestativa, mas acho que, com a pandemia, existe um aumento da morosidade. A gente fica na expectativa de terminar logo, estamos ansiosos, mas com toda a paciência, aguardando o dia que chegue nosso bebê”, narra a urbanista. 

Pandemia interrompe curso preparatório e visitas da assistência social Durante a pandemia, houve a interrupção de parte destes serviços ofertados pela Justiça, o que afetou o número de adoções e mais crianças ficaram nas casas de acolhimento. Mesmo que o expediente do TJ-BA tenha continuado por teletrabalho, algumas etapas para que se consiga a habilitação para adotar só voltaram a ser disponibilizadas recentemente. O curso preparatório para adoção, que é obrigatório para estar habilitado, ainda está em processo de transferência para a modalidade virtual. Sem ele, a enfermeira Denise Silva, 30, não conseguiu avançar no processo, assim como o marido de Karine. “Com a pandemia, [o processo] ficou mais lento, porque a assistência social e as entrevistas deram uma parada. O curso preparatório também, que era presencial, eles acabaram colocando online, mas ainda estão montando o curso. Então está meio suspenso, algumas informações é difícil conseguir por telefone, mas por e-mail está mais fácil, conseguem responder”, conta Denise.Casada com um pastor, ela entrou com o pedido em abril deste ano e ainda não conseguiu fazer o curso com o marido. Mãe de um filho biológico de dois anos, a enfermeira conta que sempre teve vontade de adotar: “Já tinha isso no coração há muito tempo”.

Como já tem um menino, ela deseja adotar uma menina, entre três e cinco anos, para que tenha a mesma idade que ele. “Baseado na minha experiência, como trabalhei muitos anos em instituição de acolhimento, observei como é importante que o filho biológico, a primeira criança, tenha esse lugar de filho mais velho da família. E pela idade mesmo, seria melhor e daríamos mais conta se tivéssemos um filho com idades parecidas”, completa Denise. 

A fim de promover, simplificar e incentivar o processo a adoção, a enfermeira fundou, em 2016, o projeto Fale Por Mim (@falepormim_), grupo de apoio à adoção que acompanha hoje cerca de 70 famílias que estão na fila por diferentes períodos de tempo.  Projeto Fale por Mim foi criado pela enfermeira Denise Silva e atende a 70 famílias interessadas em adoção (Foto: Divulgação) “Uma família que cuide da gente, que faça carinho” A espera para ser adotado por uma família já dura 10 anos no caso de Rafael Santos**, 11 anos. Ele chegou à casa de acolhimento Lar Irmã Benedita Camurugi, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), em agosto de 2010, com apenas 1 ano de idade, acompanhado de seu irmão mais velho, que tem hoje 15 anos. Até então, segundo a assistente social da unidade, Marcele Santana, 38, nenhum pretendente foi encontrado para adoção. A preferência por crianças de pele negra - como é o caso de Rafael e o irmão - é de 6,8%, segundo o SNA. Além disso, só um terço dos que pretendem adotar querem duas crianças.

De Natal, Rafael pede para ter uma família - e um tablet, para jogar Street Fighter (jogo de luta).“Uma família que cuide da gente, que faça carinho. Uma família para que eu e meu irmão sejamos felizes”, deseja o garoto.Dentre as atividades que ele mais gosta de fazer, estão “brincar de bola”, usar a internet e ajudar as funcionárias a limpar a área, refeitório e seu próprio quarto, que divide com o irmão. 

A instituição, filial da que há em Salvador, existe há 22 anos e tem capacidade para 60 crianças. Porém, devido ao corpo técnico reduzido, o máximo que ela pode acolher são 18 jovens. Hoje, são sete crianças que esperam por uma família e quatro estão disponíveis para adoção. Os outros aguardam que a família biológica se reaproxime.

“A casa existe hoje para a gente assegurar um ambiente doméstico seguro, até que alguém da família extensa tenha interesse. Primeiro, tem que encontrar alguém que tenha vínculo, que possa cuidar”, explica a assistente social Marcele. Segundo ela, todos são meninos, negros, e maiores de 10 anos. Ou seja, a possibilidade de adoção diminui. “Eles já estão há muito tempo aguardando uma família. Para alguns casos, existe a morosidade da Justiça. Mas a gente sabe que existe um perfil e um recorte para adotar meninas, abaixo de cinco anos. Quando passa de 8 anos, a chance de ser adotado é bem difícil”, ressalta.Por isso que a assistente social diz que tenta convencer os pretendentes a adotar uma criança sem restrições de sexo ou idade. “Quando alguém decide adotar, ela decide cuidar de alguém por entender que ela não teve oportunidade de ter uma família, então, no meu ponto de vista, ela está aberta a receber sem restrições. Então, nossa estratégia é convencê-las de que existe essa possibilidade”, afirma Marcele. No ano passado, ela diz que conseguiu a adoção de uma menina de 16 anos, coisa rara de se ver: “Foi algo além do padrão”. O cenário, para ela, é promissor, pois, quando chegou no abrigo, há três anos, eram 30 crianças. “A gente conseguiu bastante inserção, seguimos fortes trabalhando e com uma expectativa positiva”, conclui.

"Ele foi nosso presente de Natal", conta mãe de criança adotada há três anos

Quem pode adotar? Na adoção nacional, podem adotar brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil. Já na adoção internacional, brasileiros ou estrangeiros residentes no exterior. O pretendente precisa ter 18 anos, respeitada a diferença de 16 anos entre a pessoa que deseja adotar e a criança ou adolescente a ser adotado. Não há restrição quanto ao estado civil, ou seja, se é casado, viúvo, vive em união estável, solteiro ou divorciado. Casais homoafetivos não estão previstos na legislação pertinente, mas há jurisprudência (decisões de juízes) em favor de pedidos, nesta situação.

O que fazer? O interessado deve procurar a Vara de Infância e da Juventude do município/região de residência, onde deverá apresentar os documentos listados abaixo, em originais e cópias: Documento de Identidade; CPF (Cadastro de Pessoa Física); Certidão de casamento ou de nascimento, se solteiro, ambos de expedição recente; Comprovante de residência (conta de água, luz, telefone etc); Comprovante de rendimentos ou documento comprobatório equivalente; Atestado ou declaração médica de sanidade física e mental; Fotografia do(s) pretendente(s); Atestado de antecedentes criminais

Etapas 1 - Procurar a Vara da Infância e Juventude da sua cidade/região 2 - Dar entrada com uma petição para dar início ao processo. Sendo apto, a pessoa será cadastrada e deve aguardar chamamento da vara para conhecer a criança, e, se for o caso, dar início à ação de adoção 3 - Fazer um curso de preparação psicossocial e jurídica para a adoção 4 - A partir do laudo da equipe técnica e do parecer emitido pelo MP, o juiz dará a sentença. Com o pedido acolhido, o nome será inserido no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) 5 - Na fila, é preciso aguardar para encontrar uma criança com o perfil compatível. Se houver interesse, ambos serão avisados. A criança será entrevistada após o encontro para dizer se quer ou não continuar com o processo 6 - O estágio de convivência é iniciado, para que a criança e o adotante se aproximem. Se o relacionamento correr bem, a criança é liberada e o pretendente ajuizará a adoção. O juiz profere a sentença e determina a lavratura do novo registro de nascimento. 

- Perfil da criança desejada pelos 1.298 pretendentes da Bahia (fonte: SNA) Qualquer etnia - 44,5% Parda - 24,8% Branca - 17,2% Preta - 6,8% Amarela - 3,6% Indígena - 2,6%

Até 2 anos - 462 até 4 anos - 380 até 6 anos - 286 até 8 anos - 81 até 10 anos - 35 até 12 anos- 21 até 14 anos - 15 ate 16 anos - 2 acima de 16 anos - 16

Gênero qualquer um - 54,4% feminino - 33,9% masculino - 11,7%

Por quantidade 67,3% - 1 criança 29,9% - 2 crianças 2,8% - acima de duas crianças

Por doença infectocontagiosa 90,6% - não 9,4% - sim

Por deficiência 90,3% - sem deficiência 6,5% - aceita deficiência física e intelectual 2,5% - deficiência física

- Crianças disponíveis para adoção (fonte: SNA) 67,5% - parda 13,9% preta 9,3% - não informado 7,3% - branca 2,0% - amarela

57,6% masculino 42,4% feminino

98% sem doença infectocontagiosa 2% com doença infectocontagiosa

84,1% - sem deficiência 11,9% - deficiência intelectual  2,6% - deficiência física e intelectual 1,3% - deficiência física

até 3 anos - 18 de 3 a 6 anos - 22 de 6 a 9 anos - 20 de 9 a 12 - 34 de 12 a 15 anos - 24 maior de 15 anos - 32

sem irmão - 96 um irmão - 26 dois irmãos - 11 tres irmãos - 11 mais de 3 irmãos - 7

- Perfil da criança adotada em 2020 (fonte: SNA) 55,6% feminino  61,1% pardo sem doença infectocontagiosa sem deficiência sem problemas de saúde

5 crianças - tinham até 3 anos 3 crianças - tinham entre 3 e 6 anos 6 crianças - tinham entre 6 e 9 anos 1 crianças - tinha entre entre 9 e 12 anos 3 crianças - tinham entre 12 e 15 anos

11 crianças não tinham irmãos, 5 tinham 2 irmãos, 2 tinham 1 irmão

- Perfil da criança adotada em 2019 (fonte: SNA) 44,8% parda 41,4% etnia não informada 6,9% branca 3,4% amarela 3,4% preta

58,6% masculino 41,4% feminino

Nenhuma criança tinha deficiência, problemas de saúde ou doença infectocontagiosa

14 crianças -  tinham até 3 anos 11 crianças - tinham de 3 a 6 anos 13 crianças - tinham de 6 a 9 anos 9 crianças - tinham de 9 a 12 anos 9 crianças - tinham de 12 a 15 anos 2 crianças - tinham maior de 15 anos

42 crianças não tinham irmãos, 6 tinham mais de 3 irmãos, 5 tinham 2 irmãos, 3 tinham 1 irmão e 2 tinham 3 irmãos

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro