A luta de um operador condenado por um crime que não cometeu

Ex-cabista foi preso injustamente, demitido e luta para se reinserir

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  • Fernanda Santana

Publicado em 13 de julho de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto de Marina Silva/CORREIO

Durante quase um ano, Marcone não dormiu. Dia e noite era atormentado por um peso que não lhe cabia. As vozes dos policiais ainda o chamavam de ladrão e os dedos apontavam para ele sem direito de defesa. Acusado injustamente por roubo, associação criminosa e tráfico de drogas, Marcone empreendeu uma luta em busca de papeis e testemunhas que comprovassem sua inocência num assalto a ônibus. Ontem, descansou pela primeira vez. Demitido do emprego, agora luta para recuperar tudo que perdeu desde o dia 17 de agosto de 2018. O dia que ainda não terminou. 

A primeira imagem de Marcone Melo de Jesus, 31, como um assaltante de ônibus e traficante em tudo destoou de sua história. Somente no último dia 9 de julho, o Tribunal de Justiça da Bahia publicou a decisão que reconheceu a inocência do antigo cabista, responsável por instalar e reparar cabos na Rede Conecta, ligada à Oi. A foto já havia corrido Salvador e Marcone já era um ladrão aos olhos de quem não quis ouvi-lo. Desde a noite da operação da Operação Gêmeos da Polícia Militar em coletivos na Avenida Bonocô, que resultou em sua prisão, o silêncio forçado tinha sido a única alternativa. 

Por isso mesmo, a vitória ainda é comemorada silenciosamente. A vítima da abordagem policial ainda precisa de ajuda dos pais idosos para sobreviver e sustentar a filha de três anos. Os sucessivos currículos deixados em empresas de todos os tipos não resultaram em nenhuma oportunidade de emprego. Os culpados, ficou comprovado, foram os jovens Caio Felipe dos Santos, 19, e Roberto Luís Pita, 20. Daquela noite do dia 17, na sede do Gerrc, onde ficou preso por três dias, é impossível esquecer. “Me colocaram na frente do mural do crime, diziam que eu era o pior. Eu chorava tanto. Nessa hora eu chorei muito. Até os outros presos não acreditavam, me defendiam. Diziam para os dois: ele tá aqui por causa de vocês, um pai de família, não tá certo”, lembra. E ainda hoje, Marcone chora. A audiência de custódia aconteceu no domingo seguinte à prisão. Lá, primeiro ficou confinado numa sala minúscula, com os outros três suspeitos. Um senhor de 60 anos também chegou a ser acusado, mas foi liberado logo em seguida, depois de a família ser chamada. Chance não dada a Marcone. Mesmo vestido com a calça da empresa, carteira de trabalho e documentos no bolso, não teve direito sequer ligar para a mãe, residente em São Francisco do Conde.“Eles diziam que lá meu apito não fazia barulho. Pedi até para olharem meus antecedentes criminais. Mandavam eu calar a boca. Mas eu ainda tinha fé que tudo fosse esclarecido, eu era inocente.”, recorda.  De tanto ouvir falar de uma culpa que não era sua, de tanta violência, de tanto surrealismo, assinou, desorientado, uma nota de culpa. O documento notifica o preso sobre os motivos de sua prisão. Mas nem Marcone sabia as razões. O advogado Constantino Palmeira, à frente da defesa, comenta. “Marcone é jovem e negro. Isso imputa a ele o processo contrário do que seria normal”, diz.

A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) disse que a polícia divulga informações e imagens de casos de prisão em flagrante, cumprimento de mandado de prisão e foragidos. Sobre o caso de Marcone, afirmou não ter tido acesso à decisão judicial. Nesta sexta-feira (12), finalmente livre de qualquer acusação, Marcone pode falar por si próprio. Precisava contar aquilo que não pode ser esquecido. 

‘Deita no chão’ Fazia quatro anos que Marcone não andava de ônibus. Naquela manhã, no entanto, o carro não quis funcionar. Depois de deixar o pedreiro na obra da sua primeira casa própria, em Cajazeiras 11, decidiu ligar para o chefe e avisar o ocorrido. Como o veículo também funcionava a serviço da empresa, seria impossível chegar a São Francisco do Conde, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). Depois, acionou o guincho e pediu que o carro fosse levado para uma oficina na Suburbana, onde costumava fazer os reparos. 

Ficou ali até o início da noite, de onde seguiu para Mata Escura, orientado por um colega de trabalho que morava no bairro. No túnel Américo Simas, teve início a operação que mudaria a vida do cabista. No ponto de ônibus, Marcone já havia desconfiado de dois rapazes, com quem dividiria uma cela poucas horas depois. A dupla entrou no coletivo e Marcone sentou-se num banco único preferencial, atrás do cobrador. Próximo à passagem subterrânea, um material pesado bateu sobre o assoalho do ônibus. Era o som dos dois revólveres. Três mochilas também foram lançadas para a parte frontal do ônibus. 

A sede do Gerrc fica próxima dali e dois agentes rapidamente interceptaram o veículo.  Foram os mesmos que gritaram para Marcone: “Vai, deita no chão”. “Eu?”, respondeu Marcone. Dali, seguiu como um criminoso no chamado presídio de grade, no carro da polícia, para o Gerrc.“Tentei falar e o cabo dizendo para eu calar a boca. Eu dizia: poxa, não posso nem me explicar? Eles puxaram meu pescoço”, relembra.As horas passaram num completo desespero. Até o dia da audiência, Marcone permaneceu incomunicável. Ao chegar no salão, avistou os pais com um advogado. Saiu dali livre. Mas não completamente: levava as três acusações consigo. Quatro dias depois da soltura, a OI informou o desligamento do funcionário. “Senti uma insensibilidade. Trabalhei lá por quase três anos”, diz. 

A advogada trabalhista Ana Paula Rufino pondera uma questão a respeito da demissão de Marcone: existe poder demitivo do empregador, mas demitir um empregado pela existência de uma acusação é questionável. "Apenas se houver condenação. Por uma questão, mas lógica, porque o empregado não pode estar lá. A linha tênue é a questão da discriminação", explica. No momento da demissão, a OI alegou outras razões para a demissão, como insatisfação. Mas, um antigo coordenador de Marcone, sob juramento, afirmou que o funcionário era "excelente profissional e pessoa". 

Procurada pela reportagem, a OI afirmou que a Conecta é uma prestadora de serviços e que Marcone nunca fez parte do quadro de funcionários da empresa de telecomunicações. A Conecta não foi encontrada para comentar o caso.

A liberdade O acusado e o advogado Constantino iniciaram uma busca por todos os álibis possíveis. Recolheram a escritura do terreno da casa de Marcone, o comprovante da oficina, os depoimentos de pessoas com quem o cabista esteve naquele dia. “A linha de defesa foi refazer todo o dia de Marcone. Era necessário criar uma ordem cronológica”, justifica o criminalista. Não há estatísticas oficiais sobre os registros de prisão de inocentes, mas, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), entre os presos, quase 62% são negros. 

No período, Marcone seguiu a construção da casa com o pouco dinheiro restante e as verbas rescisórias. Evitou até onde pode pegar um ônibus. Mas, sem dinheiro para abastecer o carro, precisava do coletivo. Justamente para se deslocar em busca da liberdade. “Eu ficava em pânico e as pessoas também ficavam, quando me viam, daquele jeito assustado”, lembra. A procura seguiu em paralelo às cismas. Queria, a todo custo, descobrir quem estava a seu lado. Fechou-se para o mundo depois de ter sido privado dele.

Depois da demissão, não saiu do grupo do trabalho para investigar os apoiadores e inquisidores. De tanta vergonha, tirou até a foto do perfil de um aplicativo de mensagens. É como se quisesse se esconder não só do passado, como de um futuro novo. Então, nesta quinta-feira (11), o telefone de Marcone tocou. Era Constantino. "Ele me ligou em vídeo , me olhou, descontraiu e disse: você foi absolvido. Eu ia para o banheiro pulando, fazia tudo pulando. Desabei". As primeiras reações foram ligar pra os pais e avisar, no grupo do trabalho, a absolvição. Leu as mensagens dos antigos colegas e, em seguida, saiu do grupo. Os sorrisos de Marcone ainda são raros, mas a crença é de que a liberdade colocará cada coisa em seu lugar. 

*Com supervisão de Geraldo Bastos