Acervo com 4 milhões de documentos históricos vai mudar de endereço

Obras do novo equipamento que abrigará o Arquivo Municipal e o Museu da Cidade começam em fevereiro

Publicado em 23 de setembro de 2018 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Catarina nasceu Paraguaçu, índia tupinambá. Casou-se com Diogo Álvares, português apelidado de Caramuru, e é ainda hoje apontada como ‘primeira mãe brasileira’. Foi à França com o marido, lá foi batizada e adotou o nome de Katherine du Brèsil – ou Catarina –, e então voltou à Bahia, onde viveu até quase os 90 anos. A vida de uma das heroínas brasileiras é contada por muitos. Já a cópia do documento de 1528 que atesta o batismo da primeira brasileira em uma igreja católica, em Saint-Malo, repousa numa pasta própria no edifício de número 31 da Rua Chile, em Salvador. É lá que funciona há 32 anos o Arquivo Histórico Municipal de Salvador.

O lugar, na sede da Fundação Gregório de Mattos (FGM), reúne mais de 4 milhões de documentos – incluindo 13 mil fotografias –, datados de 1624 até 1990.“Depois do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb), no qualitativo, não no quantitativo, aquele é o principal arquivo. São informações que se cruzam. Existe uma documentação ali muito rica em relação ao tráfico de escravos e também institucional política, desde o século XVII, inclusive com informações dos navios que vinham do tráfico”, explica o professor e historiador Urano Andrade.A previsão é que, em dois anos, documentos como a certidão de Catarina Paraguaçu e um decreto da Câmara de Salvador que ordenava que os militares saíssem às ruas com tambores lendo o texto da Lei Áurea, de 1888, mudem de endereço.

Um novo Arquivo Municipal será construído no Comércio, num casarão ao lado do Mercado Modelo - o complexo terá 11 andares e vai funcionar junto com o Museu Casa da História, que vai reunir elementos que narram a construção, o cotidiano e os momentos histórico da primeira capital do país. 

Nova sede Na primeira semana deste mês, a prefeitura de Salvador enviou ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) os últimos ajustes no projeto do novo arquivo. O edital de licitação tem previsão para ser lançado no mês de novembro, enquanto as obras começam em fevereiro do ano que vem. “Elas devem durar 18 meses. Ou seja, devem ser concluídas até o final de 2020”, afirmou o secretário municipal de Cultura e Turismo (Secult), Claudio Tinoco.

Na prática, os documentos vão trocar o vai e vem da Praça Castro Alves pelo frenesi do bairro do Comércio. Segundo Tinoco, o novo prédio será maior e mais moderno para abrigar o acervo.“O novo Arquivo Municipal de Salvador vai funcionar em um prédio com 11 pavimentos, além do térreo, e terá um novo conceito, com espaço para oficinas de restauração, eventos, e exposição de documentos. É uma obra desafiante, mas também motivadora. Ele será um dos arquivos mais modernos e bonito do país”, disse.Confira imagens do projeto [[galeria]]

Depois que a nova unidade for inaugurada, o acervo será ampliado e atualizados diariamente pelos órgãos do município. Por  falta de espaço, nos últimos 28 anos, a documentação da administração pública municipal tem sido guardada nas próprias secretarias.

Essa é uma preocupação de especialistas no assunto. “O lugar é muito pequeno, não é mais um arquivo, e sim um depósito. Se no arquivo não há mais espaço, imagina nas secretarias. E esse não é só um problema do Arquivo Municipal, o Apeb também está sem espaço. É um problema nacional”, pontua Urano Andrade.

O projeto do novo Arquivo Municipal foi elaborado por uma empresa privada – a Sidney Quintela Arquitetos Associados –, a pedido da prefeitura, e submetido ao Ministério do Turismo, através do Programa de Desenvolvimento do Turismo. A construção do prédio será feita em conjunto com o Museu da Cidade (veja abaixo) e as duas obras vão custar R$ 33 milhões.

Além disso, serão aplicados outros R$ 5 milhões na compra dos equipamentos que vão compor os dois empreendimentos. Cerca de 50% do recurso será da prefeitura e o restante do BID.

O novo prédio vai ficar ao lado do Mercado Modelo, entre as ruas Portugal e Miguel Calmon, onde hoje existe uma fachada em ruínas e um terreno vazio. Em julho de 2019, a Fundação Gregório de Mattos, onde funciona o arquivo, vai mudar a sede para a Barroquinha. A prefeitura vai aproveitar o espaço extra para restaurar o acervo.

Raridade Entre os muitos livros gastos das estantes do Arquivo, está uma sequência de exemplares em capa preta que se destacam. Alinhados em duas prateleiras, eles guardam a movimentação de compra e venda dos negros escravizados. Era junho de 1863 e, naquela época, essas transações eram registradas pela Câmara. Em um deles, Maria da Glória de Macedo Silva, moradora da Rua do Rosário, negociava a venda de Clementina, uma negra de 28 anos, por 900 mil réis. Funcionária entre prateleiras do Arquivo Histórico Municipal de Salvador, na sede atual, na Rua Chile (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Passeando pelas estantes do Arquivo é possível encontrar títulos de eleitor dos primórdios da República. Um pernambucano chamado Eduardo Rodrigues da Costa, 28 anos, perdeu o título em 1890 e ele foi parar nos livros do Arquivo Municipal de Salvador. O documento era bem maior que a versão impressa de hoje. Continha o nome do pai do eleitor e até o estado civil.

A arquivista Adriana Pacheco, responsável pela organização do espaço, conta que estudantes universitários, arquitetos, urbanistas e historiadores são os mais interessados no acervo.“No arquivo estão reunidos documentos da administração municipal desde 1624. Poderia ter até mais, se eles não tivessem sido destruídos durante a invasão holandesa. São correspondências, documento de tributos, compra e venda de escravos, entrada e saída de navios, certidões de nascimento, casamento e óbito, enfim, bastante coisa”, lista. Confira abaixo quais são os documentos mais importantes que estão guardados no Arquivo Municipal.Hoje, uma das estantes mais movimentadas é da de certidões de nascimento, casamento e óbito. Não é por acaso. Segundo os funcionários do arquivo, em tempos de eleição tem crescido a procura pela dupla nacionalidade. Principalmente, as portuguesas e italianas, mais flexíveis em reconhecer cidadãos estrangeiros.

Estrutura O Arquivo Municipal foi criado em 1931 e mudou de endereço três vezes antes de ser abrigado pela Fundação Gregório de Mattos, em 1986. Atualmente, os arquivos estão distribuídos em três pavimentos e podem ser consultados através de visitas agendadas pelo telefone (71) 3202-7817/ 7831.

Quando o novo prédio for inaugurado, serão 11 pavimentos, além do térreo, onde vai funcionar o setor de recebimento e triagem de documentos. No primeiro andar, eles serão higienizados, de forma seca e úmida.

No segundo, estarão as salas para oficinas e cursos. No local, também será feito atendimento ao público. “O terceiro pavimento vai concentrar arquivos do Plano de Urbanismo de Salvador, chamados de Epucs, um material muito rico, além das salas de audiovisual”, contou o secretário de Cultura e Turismo, Claudio Tinoco.

A biblioteca vai ficar no quarto andar e do quinto ao sétimo, os arquivos permanentes. O oitavo e nono andares estarão livres para novos arquivos, o 10º será da administração e o 11º andar terá um auditório para até 150 pessoas. No terraço haverá um café com vista para a Baía de Todos os Santos. Cópia da certidão de nascimento de Catarina Paraguaçu (Reprodução: Gil Santos/CORREIO) Novo Museu da Cidade será inaugurado em 2020 O novo Arquivo Público de Salvador será inaugurado junto com o Museu Casa da História, que vai reunir elementos que narram a construção, o cotidiano e os momentos histórico da primeira capital do país.

Os dois empreendimentos vão funcionar um ao lado do outro, entre a rua Portugal e a Miguel Calmon, ao lado do Mercado Modelo, no bairro do Comércio. A área construída será de 6.161,85m². No terreno, existe hoje uma fachada abandonada de um casarão, que será restaurada.

Segundo o secretário Municipal de Cultura e Turismo, Cláudio Tinoco, os dois prédios terão sistema de combate a incêndio e outros recursos de segurança.“É um sistema moderno que detecta sinal de fumaça no ar e combate às chamas com gás, o que ajuda a preservar os documentos. Além de mais conforto, o novo prédio trará mais segurança”, disse.O Museu terá quatro pavimentos e será administrado pela prefeitura. O acervo que será exposto e as regras de visitação ainda serão definidos. Juntos, os dois empreendimentos devem custar R$ 67 milhões no final de todo o processo, sendo que 50% dos recursos são da prefeitura e o restante do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Historiador destaca importância de preservar o acervo Para o professor e historiador Urano Andrade, a mudança de endereço do Arquivo Histórico Municipal de Salvador é positiva, uma vez que o local que abriga hoje uma rica documentação histórica sobre a cidade encontra-se em um espaço pequeno, insuficiente. No entanto, ele chama a atenção para a necessidade de que o projeto pense a construção do lugar como um arquivo, não apenas como museu.

“Sair de onde está já é melhor. Mas tem a questão de mobilidade, de você transportar um arquivo. Papel pesa muito. Ali, no Comércio, é próximo ao mar, já é complicado, você tem a maresia. Então, precisa ver dentro da licitação se o espaço que vai receber o arquivo está preparado para isso, porque vai ser um edifício antigo se preparando para o novo, tem que ter uma equipe multidisciplinar para isso”, explica.

Segundo Urano, o único prédio que abriga um Arquivo Público no Brasil e que foi feito justamente para este fim é o do Estado de São Paulo, que possui porta corta-fogo, um sistema específico em que, em caso de incêndio, o ar não se propaga e que, em situação de chuva, o material não molha. Pesquisadores utilizam acervo do Arquivo Municipal (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Para além da necessidade de conservar os arquivos históricos e os que vão ser encaminhados ainda para o Arquivo, o historiador chama a atenção para a importância de disponibilizar o material para consulta digital. “Esses documentos não são mais para manusear. A política deve ser digitalizar o material e preservar o papel para a eternidade, porque o 'pegar, guardar e movimentar' já estraga”, recomenda.

Veja documentos importantes do Arquivo Público de SalvadorCertidão de Catarina Paraguaçu – Uma cópia do documento, datado de 1528, está disponível no arquivo para pesquisa. É um dos poucos que tem pasta própria devido a importância. Título de eleitor – Existem edições originais dos primeiros títulos de eleitor do Brasil, de cidadão baianos e de outros estados. O documento era bem maior que a versão imprensa de hoje. Continha o nome do pai do eleitor e até o estado civil. Termo de cessão da Câmara de 1808 – Ele que descreve como a população deveria se comportar durante a estadia da Família Real em Salvador, com casa iluminadas e janelas decoradas. Dois de Julho – Vereadores destacaram a coragem dos combatentes e nomes ilustres do movimento, além de saudar o imperador D. Pedro I. Decreto de 15/05/1888 – Sobre a aprovação da Lei Áurea. Os vereadores dizem que ela elevou o nível moral da nação e determinam que militares saiam andando pelas ruas para anunciar a abolição ao som de tambores. Sessão de 16/11/1989 - Narração com os feitos da proclamação da república. Graças ao telégrafo, a novidade chega à Salvador um dia depois do fato. A Câmara Municipal de Salvador apoiou o ato. Fevereiro de 1824 – Discussão sobre a aprovação da Primeira Constituição Brasileira, aprovada em novembro de 1823. Os moradores de Salvador são obrigados a jurar a constituição.    Escravidão – Uma série de pastas organizadas em duas prateleiras guardam os documentos de compra e venda de escravos em salvador, com os nomes e endereços dos proprietários e compradores, além da nacionalidade dos negros escravizados. Decreto de 1716 – Ele que proibia o uso de atabaques e marimbas nas ruas e praças de Salvador. Década de 1940 – Diversos documentos discutem o termo de contrato do primeiro plano de urbanismo da cidade de salvador, seus efeitos e peculiaridades. Sabinada - Vereadores comentando sobre os efeitos da revolta separatistas e fizeram até um inventário de tudo que tinha no local para evitar furtos e destruição por parte dos revoltosos.