Acervo do Museu do Recôncavo renasce nos restauros de José Dirson Argolo

Trabalho da equipe comandada pelo professor durou sete meses

Publicado em 13 de março de 2022 às 16:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Ana Albuquerque/CORREIO

Antes de virar santo, Benedito viveu no século 16, onde hoje é a Itália. Ele era negro, e foi apelidado como “O Mouro” por causa da cor de sua pele. Cozinheiro do Convento dos Capuchinhos, ele tinha o hábito de doar alimentos do convento aos pobres, prática que o levou a ser repreendido por um frade que era seu superior. Mas Benedito continuou a doar pães, agora escondidos sob seu manto, até que o mesmo frade o flagrou e quis saber o que era aquilo que ele levava. Benedito disse que eram flores, e naquele momento os pães viraram um ramalhete de rosas que se espalharam pelo chão.

Quem conta essa história do milagre das flores, em frente a uma imagem de São Benedito de quase 400 anos, é o professor e restaurador José Dirson Argolo, 76. No seu Studio Argolo, um casarão construído em 1894, no bairro do Garcia, ele e sua equipe trabalharam incessantemente nos últimos sete meses para restaurarem peças do acervo do Museu do Recôncavo Wanderley Pinho.

“O que me encantou mais no trabalho foi o acervo das esculturas, das imagens sacras. São peças de excepcional qualidade”, comenta Dirson Argolo, que tem mais de 40 anos de experiência em restaurações. A imagem de São Benedito tem um esfregão numa mão — ele lavava os pratos do convento — e flores na outra, numa referência a seu milagre. “É uma iconografia relativamente rara”, comenta Argolo.

Ao todo, 141 peças do museu foram restauradas por Dirson Argolo e uma equipe de 15 profissionais comandados por ele. A restauração do acervo incluiu cerca de 30 imagens sacras, além de mobiliário, cerâmicas, instrumentos de tortura e peças têxteis (estas restauradas à parte no Rio de Janeiro).

As obras sacras restauradas por ele são peças dos séculos 17, 18 e 19, representando santos da Igreja Católica e o martírio de Jesus Cristo na cruz. Entre as mais valiosas, pela antiguidade, destacam-se duas imagens de Nossa Senhora. “São nitidamente peças do século 17. A gente vê que são bem robustas, feitas num bloco único de madeira”, explica Argolo.

Para descobrir a pintura original das imagens sacras, normalmente soterradas por repinturas sem critério que foram feitas ao longo dos séculos, Argolo faz uma prospecção com um bisturi, como se fosse um biópsia, para depois remover as camadas mais novas sem danificar a original. Em alguns casos, propositadamente, lacunas não são completadas para que apenas os resquícios da pintura original sejam vistos pelo público.

Em outros, os retoques são feitos com base no original, inclusive com o douramento feito por folhas de ouro, cujos pequeninos grãos ornavam o rosto de Argolo, resplandecendo-o enquanto ele explica o trabalho feito no atelier. Equipe liderada pelo professor e restaurador José Dirson Argolo (Foto: Ana Albuquerque) “A gente fez com profissionalismo, usando sempre materiais de boa qualidade. As tintas vieram da Itália”, diz o restaurador. Quando estudou por lá, ele ia à biblioteca para consultar o fac-símile das anotações de Leonardo da Vinci sobre os materiais que o polímata renascentista usava em suas obras. Andando por Florença, enquanto consultava um mapa, Argolo conta que foi abordado por um gari, que sugeriu a ele que visitasse o Museu da Ópera do Duomo, citando obras e artistas como o escultor Donatello, que nasceu na cidade no século 14.

Em Salvador, anos depois, ele teve uma experiência contrária à de Florença. Atrasado para uma palestra no Museu Carlos Costa Pinto, ele pediu a um taxista que o deixasse na porta do museu. “Professor, eu como taxista posso entrar no museu?”, indagou o motorista. “Não só pode como deve!”, respondeu Argolo.

“Essas pessoas talvez não se sintam convidadas”, lamenta Argolo, ressaltando que no Brasil é preciso que um processo de educação faça desde cedo com que as pessoas tenham uma relação de pertencimento com o patrimônio cultural do país. “O italiano de todos os níveis tem uma paixão pelo patrimônio, ele conhece o patrimônio italiano”, compara.

Vênus de Milo e imagens enterradas

Há cerca de 30 anos, um roubo no Museu do Recôncavo fez com que os ladrões enterrassem algumas peças sacras, para escondê-las da polícia. “Eu acredito que tenha sido por isso que uma boa parte dessas peças já não tenham mais a pintura original ou sejam apenas fragmentos”, supõe Argolo.

A Vênus de Milo, famosa obra grega do século 3 a.c., que integra o acervo do Museu do Louvre, em Paris, nunca teve seus braços refeitos desde que foi redescoberta, em 1820. “Até hoje nenhum restaurador ousou reconstituir os braços da Vênus de Milo”, diz.

A restauração moderna não aconselha a reconstituição de partes importantes para não caracterizar o que se chama de um falso histórico. O objetivo é deixar claro para os visitantes do museu que aquilo é uma intervenção feita para ajudá-lo na leitura da obra, mas que não se trata de uma parte original, embora suas características estejam mantidas. “O que não se pode em um restauro é inventar”, adverte. Imagem de São Benedito tem cerca de 400 anos (Foto: Ana Albuquerque/CORREIO) “Quando se trata de peça de devoção, você tem que reconstituí-las, porque os fiéis dificilmente aceitam venerar uma imagem mutilada”, explica. Como as peças restauradas irão para o Museu do Recôncavo, algumas seguem o padrão da Vênus de Milo. Já nas imagens que estavam sem rostos e cabeças, Argolo optou por reconstituí-las em resina, um material diferente do resto do corpo das imagens, para caracterizar a intervenção, mas pesquisando antes para ser fiel aos originais.

Além dos santos, há uma coleção de paramentos, constituída por vestes litúrgicas, algumas com fios de ouro, utilizadas pelos sacerdotes durante o ato religioso. Já algumas das peças do mobiliário eram grandes demais para serem levados até o atelier no Garcia, e foram restauradas por Argolo no porão do Palácio da Aclamação.

No Museu de Arte da Bahia, havia também um carro de boi, que foi restaurado lá mesmo pela equipe do Studio Argolo, para ser levado para o Museu do Recôncavo. Terríveis instrumentos de suplício, que serviam para torturar pessoas escravizadas no antigo engenho que funcionava onde hoje é o museu, completam o acervo restaurado.

Dirson Agolo destaca ainda as Resfriadeiras — que serviam para resfriar água — com o brasão da família de Wanderley Pinho, que são algumas das peças de cerâmica mais bonitas que ele já viu no Norte e Nordeste.

“É sempre com emoção que a gente trabalha com a preservação do patrimônio, já que eu me formei para auxiliar na preservação do patrimônio de minha terra. Essa é a causa maior de minha vida”, diz o restaurador, que é baiano de Jaguaquara.

Quanto ao seu criterioso trabalho de restauro, José Dirson Argolo acredita que ajudará o acervo do Museu do Recôncavo a continuar atravessando o tempo, até que a próxima restauração seja necessária. “Se bem cuidado, certamente dura 100 anos. Ou mais”, calcula.

Museu do Recôncavo Wanderley Pinho

Inaugurado em 15 de fevereiro de 1971, no distrito de Caboto, em Candeias, a 60km de Salvador, o Museu do Recôncavo Wanderley Pinho funciona no antigo Engenho Freguesia, um casarão de quatro andares erguido no século 18. O primeiro proprietário do engenho de açúcar foi o capitão-mor Cristóvão da Rocha Pita. Mais tarde, o engenho foi adquirido pelo Barão de Cotegipe, e chegou a contar com 160 escravos na labuta da produção de cana-de-açúcar. O antigo engenho foi herdado por seu neto, José Wanderley de Araújo Pinho, ex-prefeito de Salvador, que dá nome ao museu. O local foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1944.

Segundo o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC), responsável pelos museus estaduais, o Museu do Recôncavo, que está fechado há mais de 20 anos para a visitação do público, recebeu um investimento de R$ 27 milhões, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para obras de restauração e recuperação do casarão e seu entorno, que inclue a capela, a antiga fábrica, serviços de paisagismo e a construção de um complexo museológico. Ainda segundo o IPAC, o objetivo é tornar o museu “o mais potente equipamento cultural do Recôncavo, com todos os problemas de acessibilidade resolvidos”.

As obras do local já estão praticamente concluídas, faltando apenas a montagem da museografia permanente, no casarão e na capela, mas ainda não há uma data oficial para a reinauguração. “O casarão é belíssimo e a restauração ficou muito bonita”, diz José Dirson Argolo, que visitou o museu durante as obras de recuperação.