Agenda Bahia: 'Monetizar sempre foi o desafio da arte'

Entrevista com Elisio Lopes Jr

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  • Donaldson Gomes

Publicado em 4 de novembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Na Grécia Antiga, era comum alguém ir ao médico e voltar com uma receita em que constava, entre outras coisas, duas peças teatrais e 30 minutos de silêncio, conta o roteirista Elisio Lopes Jr. Séculos depois, a arte tem sido grande companheira das pessoas nesses quase nove meses de distanciamento forçado. Mas é dura a realidade de quem torna mais leve os dias difíceis, diz o artista, que será um dos palestrantes do Agenda Bahia ao Vivo, hoje às 11h, no YouTube do CORREIO (@correio24h). Elisio Lopes acredita que a pandemia acelerou processos de transformação digital na arte, também acabou ampliando desigualdades. 

Como tem sido o período da pandemia para quem vive da arte no Brasil?

A pandemia acelerou uma série de processos, de diálogos da arte com outros meios de se comunicar com o público. Obviamente, a pandemia acelerou de uma maneira que acabou enfatizando as desigualdades. Quem tem acesso à estrutura, pôde fazer o exercício de linguagem de tentar ressignificar a sua arte para esses novos meios de comunicação, mas quem não tem, ficou ainda mais excluído. Você não tem um mercado cultural ou uma classe cultural, o que existe é um coletivo diverso de criadores que se dividiu entre quem tem acesso e quem não tem. A pandemia fortaleceu isso, aumentou esse buraco. 

Passada a pandemia, nós voltamos à situação anterior?

Eu não acredito na retomada de um lugar que não existe mais. Também não acredito em um novo normal. Não existe isso. O processo cultural demanda anos. É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito, como a gente diz. É muito mais fácil o mundo acabar e recomeçar do que ele se transformar em outro. Já se disse que o teatro iria morrer com a criação do cinema, depois que o cinema iria morrer com a criação da televisão. Depois se passou a dizer que a TV aberta morreria com o streaming, mas nada disso aconteceu. Eu continuo indo para uma sala de cinema mesmo tendo acesso aos filmes dentro da minha casa. A vivência cultural, a experiência de vivenciar a cultura, ela não se perde e a gente vai continuar querendo viver a experiência presencial. Agora, a sequela da perda de geração de desenvolvimento cultural e artístico, a gente vai pagar durante muitos anos. Essa parada que está acontecendo também nos órgãos públicos, nos projetos de audiovisual, nos projetos estruturais que estão parados, é muito ruim. Você vai ter o fechamento de casas de espetáculos, lacuna na produção de filmes nacionais e uma série de consequências que serão vividas nos próximos anos. Tem projetos que vão caducar, narrativas para teatros ou livros que hoje não fazem mais sentido porque o mundo é outro. A gente vai pagar sim um preço por este hiato, mas será muito mais caro para quem não teve a oportunidade de se exercitar por outras vias e outros caminhos. 

Tem alguma linguagem que você considera que sai fortalecida deste momento? Quais vão sofrer mais?

 O audiovisual se fortalece muito. A produção de ficção e de informação, em todos os veículos, seja pelas redes abertas ou serviços de streaming, se fortalecem. A companhia que a gente tem na pandemia é a ficção e a informação. Isso cresceu bastante e os dados de acesso às plataformas confirmam esse cenário. Serviços como Globoplay e Netflix cresceram muito. A música também se fortaleceu muito na venda online, mas as artes cênicas pagam porque são uma experiência presencial. O teatro, a dança estão bem mais atingidas. E como são artesanais em seu funcionamento, irão demorar mais tempo para se recuperar. 

Em Salvador e em diversas cidades do país nós temos experiências de drive-in. Como você vê esse tipo de iniciativas?

Todo caminho que viabiliza viver o seu ofício é um caminho de cura e portanto solução. De verdade, o teatro filmado não funciona. A gente que faz teatro e tem vivência com a arte cênica sabe que a diferença de fazer teatro está na experiência presencial. Quando você se apresenta através de uma tela, é outra arte, é teleteatro. A experiência de você se emocionar e rir comigo é algo que depende de estarmos em um mesmo ambiente. Estar dentro do carro com um sistema de som é uma outra arte, que não é exatamente o teatro que a gente aprendeu a fazer, que usa a potência vocal do ator, a sala de espetáculos no escuro... Mas eu acho que todas as experiências são válidas e se viabilizarem que o artista viva da sua arte, devem ser experimentada. 

Qual é o papel da arte numa sociedade cada vez mais digital?

A arte acaba ganhando mais relevância, não para quem faz. Para quem faz, a arte é cura. Eu estou falando do papel para a sociedade como um todo. A arte revelou a sua potência de cura e se revelou a melhor companhia para o isolamento. Um bom livro, um bom filme ou uma boa música ganharam um novo significado quando perdemos a possibilidade do encontro, da interação. Eu acho que temos um aprendizado muito grande, que é o respeito que precisamos ter com os criadores. O que seria do seu isolamento por oito ou nove meses se não fossem os artistas?

O que pode ser feito para tornar esse momento menos traumático para o setor?

A dificuldade não é só para o meio artístico, mas a gente está vendo um processo de flexibilização que funciona muito bem para várias áreas, mas que para a cultura não. Um espetáculo de teatro não se mantém em cartaz com 10% ou 20% da plateia ocupada, com distanciamento. A arte não se faz com essas regras da pandemia. 

Muitas vezes, mesmo com 100% a atividade ainda precisa de subvenção.

A arte tem uma característica muito própria que é a de nem sempre se manter. Poucos artistas vivem de uma bilheteria,  vivem do processo de criar, das leis de incentivo, dos incentivos públicos. Quando você entra em um regime de exceção como este, em que você tira uma das pernas, deixou o  setor cultural sem uma das suas pernas, que é a bilheteria, você condena uma área. Já voltou academia, salão de beleza e deixou escolas e teatros fechados. Isso vai cobrar um preço. 

Carlos Drummond Andrade define as artes como as grandes consolações da vida. E hoje as pessoas precisam mais do que nunca disso.

Diziam que na Grécia Antiga, quando você ia ao médico, ele te receitava, 'dois espetáculos de teatro' e meia hora de silêncio. Isso é muito verdade. A arte tem sido a grande companheira neste isolamento para todo mundo, para quem tem um acesso a mais recursos pagos, mas para quem acessa uma TV aberta. Os artistas são a companhia, o lúdico possível, mas eles não são valorizados neste lugar de cura que a arte promove. O ócio criativo, o espaço de contemplação, o direito à distração. O principal a falar sobre a arte hoje é que ela é a única que garante o direito à distração, a esquecer um pouquinho deste momento duro que a gente está vivendo. Mas isso não está sendo pago por auxílio nenhum. 

A sociedade está cada vez mais acelerada. Como encontrar tempo para criar?

O valor que é dado ao trabalho artístico, ao criativo, é o que é dado ao imaterial. Aí a gente entra numa discussão que é sobre a valoração do que você não necessariamente vê, mas é o que se produz a partir da capacidade criativa. Isso sempre foi um desafio para a monetização de qualquer linguagem artística. No mercado cultural, se trabalha com projeto, que é o seguinte: 'eu trabalho de graça, crio para você e depois você resolve se vai entrar comigo e ser meu parceiro, ou não'. Em nenhuma área profissional você cria antes de receber. Se você contrata uma arquiteto, um advogado, qualquer profissional, você vai pagar e depois vai receber o serviço. Na área cultural é diferente. 

Será que está não é a grande amarra brasileira para o desenvolvimento da inovação mais disruptiva?

O processo criativo disruptivo no Brasil é absolutamente aventureiro. Você se lança no vácuo e se sobreviver é um mérito absolutamente seu. Mas esta não é uma característica só da cultura. A gente está dentro de uma lógica capitalista, onde o estímulo não é pelo capital intelectual, mas para aquilo que se pode entregar como produto. O foco é muito grande para aquilo que é concreto e não para o sentido, o sentimento. A gente rema contra a maré. A lógica do mercado já era essa e com o advento da pandemia, se acirrou. 

O que a Bahia tem de mais marcante para o desenvolvimento de atividades criativas?

A farta e sólida base cultural. Nunca vi uma cidade tão talentosa quanto Salvador. O estado da Bahia é absolutamente talentoso para as artes. A inteligência corporal, musical, o nosso sotaque, a poética, leitura de mundo, o humor, tudo na Bahia é oferecido de maneira criativa. É sempre com um potencial criativo muito acima da média de outros estados do Brasil. Mas ao mesmo tempo, essa diversidade gigantesca acaba tendo que sobreviver sozinha. Não existe um cultivo estrutural. Você não cultiva a música, a percussão, a dança. Quando você encontra um talento, ou ele sobrevive por si, ou não terá uma incubadora para se desenvolver. 

Existem espaços para formar a, digamos assim, mão de obra para essa indústria?

Eu não tenho espaço na Bahia para ser talentoso, para que meu talento seja potencializado. Tem várias exceções, raríssimas. Mas se você é um escritor, onde vai poder exercer? Qual é o instituto ou laboratório onde vai poder desenvolver isso? A gente teve uma série de iniciativas pontuais, como o Liceu de Artes e Ofícios, o Projeto Axé, uma série de instituições que fizeram algo, como o Balé Folclórico da Bahia. Desses projetos saíram artistas que hoje ocupam espaços importantíssimos na arte mundial. Mas a gente não se enxerga como este celeiro e não investe nos novos talentos. A gente tem na Universidade do Recôncavo uma potência do audiovisual sendo desenvolvida, mas é cada um por si e Deus por todos. Não existe nenhuma linha de construção através de política pública que fomentem os novos talentos. Ou a gente consegue se sustentar em pé e parte para o mundo, ou os talentos ficam abafados pela falta de oportunidades. 

Agende-se O Fórum   Projeto de maior destaque no debate do desenvolvimento econômico e social do estado, o Agenda Bahia promove discussões sobre inovação, competitividade, qualificação e sustentabilidade, criando uma agenda propositiva e um observatório dos assuntos estratégicos para a Bahia. Em 10 edições, teve mais de 300 palestras e um público de mais de 10.700 pessoas.

Por que?   A pandemia antecipou futuros e colocou holofotes em antigos problemas sociais e estruturais. Obrigou o Homem a (re)definir prioridades, (re)pensar valores e a (re)aprender novas formas de viver, produzir, consumir, se relacionar e colaborar.

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