Apenas 6 em cada 100 bonecas produzidas pela indústria de brinquedos são negras

De todos os 1.093 modelos de bonecas contabilizados nos sites dos fabricantes de brinquedos associados à Abrinq, apenas 70 eram negras

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  • Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2020 às 10:51

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Para uma criança negra não é fácil comprar uma boneca parecida consigo. A cada 100 modelos do brinquedo produzidos pela indústria brasileira do ramo, apenas 6 são negros, aponta a terceira edição da pesquisa “Cadê Nossa Boneca?”, da Avante - Educação e Mobilização Social. O assunto não diz apenas sobre bonecas, mas sobre o papel da representatividade, especialmente, durante a infância. A ideia de representar uma diversidade de corpos e pessoas negras também é o que move o Afro Fashion Day, o evento de moda realizado pelo CORREIO.

O grande questionamento das responsáveis pela pesquisa é porque a indústria de brinquedos ainda não se deixou influenciar pelo movimento antirracista que ganhou força no Brasil e no mundo. “Já temos uma maior representatividade de pessoas negras nos meios de comunicação e em produtos de massa. Entretanto, isso não ocorre na indústria dos brinquedos, onde as bonecas negras são tratadas como objeto raro”, afirma a psicóloga e publicitária, Mylene Alves, que idealizou a pesquisa junto com Ana Marcílio e Raquel Rocha.

Levantamento feito em agosto de 2020, por meio de análise de sites de E-commerce de 14 dos 22 fabricantes de brinquedos associadas à Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), aponta que apenas oito empresas possuíam bonecas negras em seus inventários e, em todos os fabricantes, a proporção de modelos destas em relação às brancas é inferior a 20%.

De todos os 1.093 modelos de bonecas contabilizados nos sites dos fabricantes de brinquedos associados à Abrinq, apenas 70 eram negras, o que equivale a cerca de 6% do total da amostra. O cenário atual representa uma queda de um ponto percentual na comparação com os resultados de 2018, quando 7% das 762 bonecas eram negras. Em 2016, eram pretas 6,3% das 1.945 bonecas analisadas.

Os dados apontam para um sub-representação das pessoas negras, que são 56,2% da população brasileira, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual de 2019 (1ª visita), do IBGE,. Em Salvador, se identifica como negro 79,2% da população.

Revendedores Do ponto de vista dos revendedores, a representatividade das bonecas negras também é baixa.  Dos três E-commerces nacionais analisados pela pesquisa, a Magazine Luiza era a loja que possuía a maior quantidade de bonecas do tipo à venda, com 1.171 de 9.393, ou 12,46%, do seu estoque composto por esses brinquedos.

A quantidade de bonecas negras tem a pior situação no Submarino, com apenas 917 bonecas são negras em um total de 12.259, o que representa 7,48% dos brinquedos do tipo à venda no E-commerce. A Americanas está no meio da lista. Neste site, das 9.611 bonecas comercializadas 11,4% são negras. 

Na comparação com 2018, a proporção de bonecas negras vendidas em e-commerces aumentou em 5 pontos percentuais, passando de 4% para os atuais 9%.

Representatividade Mãe de Iana, de 2 anos e 5 meses, Bárbara Carine, 33 anos, que também é idealizadora da escolinha Maria Felipa e professora do curso de Química Ufba, é muito atenta a forma como brinquedos que representam bem sua filha constroem uma auto imagem positiva na menina. 

“A boneca precisa ter a referência positivada para que as meninas negras possam ter essa representatividade de potência. Minha filha é pequena, mas já se identifica com a boneca. Ela penteia o cabelo do brinquedo com um ouriçador, assim como eu faço no dela. Ela entende essas semelhanças”, diz Bárbara.

Ao fazer compras para a escolinha, Bárbara percebe a dificuldade para comprar bonecos negros. Mesmo quando encontra modelos mais em conta, ela percebe que existe uma rejeição. “Eu encontrei uma boneca acessível na loja de R$ 1,99, mas nesses espaços ele não acaba sendo a mais escolhida já que o processos de racismo reverberam na escolha”, comenta a professora, que percebe que muitas crianças negras não conseguem ter acesso a brinquedos mais inclusivos.

O interesse é que as pessoas negras não sejam apenas consumidores, mas se vejam representados nos produtos. Para as crianças, esse processo é primordial pois é com brincadeiras da infância que são geradas identificações e exercidos papéis sociais, aponta Alves. 

“Com a boneca, o menino e a menina negros podem se ver como objeto de carinho ao ver seus traços representados. Mas essas crianças acabam não vendo suas feições representadas no ambiente da infância, isso deixa marcas profundas no processo de identidade. A boneca é o espelho do que a sociedade preconiza como belo e aceitável. A negação do corpo negro faz com que se crie uma ausência e uma lacuna de aceitação”, aponta Alves.

Os produtos também reproduzem uma noção de beleza, aponta a doutora em estudos de mulheres, gênero e feminismo pela Ufba, Cintia Cruz. “A boneca tem essa função de trabalhar a cabeça das crianças para reproduzir padrões. A Barbie, por exemplo, é um brinquedo muito vendido impõe um padrão de beleza e de identidade de gênero. Esses produtos influenciam na construção da identidade das meninas”, diz a doutora. 

O brinquedo é um instrumento para ensinar sobre o mundo. Não basta apenas entregar uma boneca negra para uma criança, é necessário usar essa oportunidade para instruir os pequenos, afirma a psicopedagoga presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia – Seção Bahia, Joanice Bezerra.

“Temos que dar a boneca negra e observar como será a brincadeira. Ver em que posição a boneca é colocada. O brinquedo é inanimado, o que o ser humano faz com ele é a questão mais importante. Sem orientação, a criança vai continuar com os seus questionamentos, nada vai mudar. A construção da criança ocorre dentro da realidade em que ela está inserida e temos que mostrar porque é necessário valorizar a diversidade e amar a mesma”, instrui Bezerra. 

As crianças podem se projetar em um brinquedo a partir do que ela recebe de informação da sociedade, ressalta a psicopedagoga. Se um criança negra, por exemplo, escuta que seu cabelo é feio, ela pode passar a desejar ter o mesmo cabelo da Barbie loira. 

“Se eu me vejo em um boneca, começo a olhar como se ela fosse um espelho meu. A construção da minha identidade é uma contribuição das pessoas ao meu redor. Se ouço que certa característica que eu possuo é feia ou ruim, minha autoestima fica encolhida. Com isso posso passar a me ver de uma forma que não sou e me projetar em um brinquedo é o meu oposto. Se isso não for trabalhado, pode se transformar em um problema no futuro”, afirma Bezerra, que ressalta que o educador tem um papel na elevação da autoestima das crianças. 

Bonecas negras para todos A possibilidade de brincar com bonecas pretas não é apenas uma necessidade de crianças negras, mas de todos os pequenos. É na infância que conhecemos e temos contato com a sociedade que estamos inseridos. Para Joanice Bezerra, o brinquedo é uma forma de mostrar, ainda na fase infantil, a realidade da vida adulta. Por esse motivo, é importante que as crianças tenham contato com a diversidade também por meio das brincadeiras.

“As famílias precisam educar as crianças para que elas peguem essas bonecas e, por meio da imaginação, comecem a respeitar o ser humano do jeito que ele é. Quando a criança quer a boneca negra, mas a família escolhe outra que eles consideram mais bonita, isso é parte do processo de educação, nesses detalhes, a família mostra o preconceito para a criança. Temos que mostrar a diversidade do mundo para a criança desde cedo”, afirma a psicopedagoga, que ressalta que os pequenos aprendem pela observação e pelo exemplo. Geo Nunes acredita que o acesso a brinquedos diversos apoia uma educação antirracista (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal) O brincar não é apenas brincar, ele é parte da educação. Com a inclusão de uma gama diversa de brinquedos, a criança pode passar a receber uma orientação mais antirracista, acredita Geo Nunes, idealizadora da loja Amora Brinquedos Afirmativos.

“Os brinquedos afirmativos são uma ferramenta lúdico-pedagógica antirracista. Se eu uso um giz de cera cor de pele com uma pluralidade de cores, não apenas aquele mais puxado para o rosa, eu mostro que o correto é uma pluralidade de tons, não apenas um mais claro”, complementa a empreendedora, que a cada boneca vendida, doa outro brinquedo afirmativo para escolas públicas.

Quanto mais diversos os brinquedos, mais diversidade eles mostram para as crianças. Ao ver uma boneca bebê negra, as crianças passam a se reconhecer e a reconhecer o próximo, explica Cruz. “Não existe um incentivo para que as pessoas compram bonecas para trabalhar padrões. Deve existir um movimento para que as crianças tenham contato com outros imaginários para crescer e ser educados em um contexto onde outros meninos e meninas façam parte de uma percepção plural do que é ser criança”, afirma. 

Mercado Em 2016, quando a pesquisa foi realizada pela 1ª vez, a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) foi questionada sobre a baixa quantidade de bonecas negras no mercado. Sem respostas. Na época, os revendedores de brinquedos afirmaram para as pesquisadoras que “boneca negra não vende”. Na Amora Brinquedos Afirmativos a ideia é outra.

“Eu só produzo bonecas pretas e eu sei que vende. A falta desses brinquedos no mercado é reflexo de um sistema estruturalmente racista. As bonecas não refletem a diversidade do nosso povo”, diz Geo Nunes.

A empreendedora tem percebido um aumento na procura pelos brinquedos afirmativos também por pessoas brancas. Ela acredita que o movimento mostra que existe uma expansão da consciência racial com o fortalecimento de movimentos de luta contra o racismo. “Existe uma demanda reprimida já que as indústrias não ofertam o produto como deveriam. Cabe a nós, pequenas empresas com produção artesanal, fazer esse trabalho”, pontua Geo.

As grandes empresas perdem ao não atenderem a demanda por bonecas negras, além de desinteresse e desrespeitos, a fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo, Naira Gomes, acredita que a indústria de brinquedos escolhe não representar meninos e meninas pretos.

“É como se não importasse oferecer um produto mais específico e de qualidade porque as crianças negras vão consumir a outra opção. Acredito que existe uma intencionalidade. Esses bonecos negros produzem bons reflexos nas crianças, mas existe um boicote pois, ao não ter oferta no mercado, se fragiliza a infância negra e marca a experiência do brincar com racismo.  Existem vilões negros, ladrões negros, essa é uma mensagem subjetiva eficiente do lugar que racismo deseja apontar para essas crianças na sociedade”, afirma Gomes.

A coordenadora-geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN), Iraildes Andrade, aponta que a indústria tenta forçar uma representação em imagens que não representam as crianças negras. "Não tem bonecas negras suficientes para que as crianças escolham e possam decidir a que querem. Fui comprar uma que a minha neta queria, a Baby Alive. A negra era mais cara e vi pais e mães  querendo compara a negra, mas tiveram que escolher a branca. Parece que as coisas são feitas para nos afastar do que é nosso. Se eu quero comprar, mas é muito mais caro e eu não ganho para isso. Vou escolher o que? O que não me representa", comenta.

Afro Fashion Day A diversidade é o foco no Afro Fashion Day, cuja 6ª edição ocorre pelo TikTok devido à pandemia. Nas seletivas, negros e negras com todo tipo de corpo, gênero, orientação sexual postaram um vídeo desfilando na rede. Os 12 semifinalistas seguem para a grande final e os 6 posts com a maior quantidade de likes serão selecionados para participar de um Fashion Film produzido pelo CORREIO.

“Não temos diversidade seletiva, todas as pessoas pretas podem participar. Temos esse cuidado com a diversidade porque, muitas vezes, a população negra não tem visibilidade. Os desfiles de moda possuíam um padrão de mulheres brancas e magras. Buscamos fazer o oposto e trazer a ideia de representatividade para a passarela”, aponta a coordenadora de projetos do correio Vanessa Araújo.

Os três homens e três mulheres finalistas vão integrar a equipe com modelos profissionais para desfilar para as lentes do jornal. O vídeo será postado no Youtube do CORREIO em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Confira a agenda do evento abaixo

AgendaDivulgação dos semifinalistas pelos jurados técnicos: 9 de outubro

Votação popular no Tik Tok: entre 12 e 14 de outubro

Publicação do Fashion Film no Youtube do CORREIO: 20 de novembro

Publicação do caderno especial no CORREIO sobre a .6ª edição do Afro Fashion Day: 28 de novembro

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro