Após 8 meses de tortura e cárcere privado, mãe e filho são resgatados em Salvador

Jovem teve unha arrancada com dente e criança de 3 anos só era alimentada a cada dois dias; suspeito nega crimes

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  • Tailane Muniz

Publicado em 8 de março de 2019 às 19:08

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Almiro Lopes/CORREIO

Mais do que uma sexta-feira, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, hoje é dia de renascimento para a jovem Luz*, 18 anos. Mãe de um menino de 3, ela e a criança sobreviveram a agressões físicas e psicológicas durante os oito meses que passaram em cárcere privado, no bairro do Jardim das Margaridas, em Salvador.

O algoz, identificado pela Polícia Civil como William Guimarães de Oliveira, 28, estuprava, espancava e chegou a arrancar uma unha da vitima com os dentes. A criança, filho da jovem, William só alimentava de dois em dois dias, como forma de punir a mulher.

William, que é carioca, foi preso em flagrante na quinta-feira (7), depois que a mãe de Luz denunciou o caso na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Periperi, onde a jovem morava com a família.

Responsável pela investigação do caso, a titular da Deam de Periperi, delegada Simone Moutinho, afirmou que Luz foi encontrada trancada no cômodo de um apartamento. O filho estava deitado, sem se alimentar, em outro quarto. Por medo, negou que fosse vítima de violência doméstica e, por pouco, de feminicídio. Chegou a afirmar que os machucados eram consequências de uma queda que levou no Carnaval.

"Ela estava bastante assustada. Eu apelei para o meu lado mãe, abracei ela e disse: fale a verdade, colabore, senão você vai acabar morta. Ela me disse que apanhou todos os dias, durante esses oito meses. Fazia sexo sem qualquer prazer, porque tinha medo de ser ainda mais machucada, temia pelo filho", relatou Simone, durante a coletiva de apresentação de William, na tarde desta sexta-feira (8), na sede da Polícia Civil, na Piedade.

Preso em flagrante por cárcere privado e tortura contra a mãe e filho, o suspeito negou todos os crimes em interrogatório. Ao ser questionado pelo CORREIO, reiterou que nada fez às vítimas. "A família dela inventou tudo isso aí. Nossa convivência é ótima", disse. Sobre os maus-tratos à criança e quanto à unha arrancada de Luz, ele respondeu: "Negativo. A unha ela me disse que perdeu no Carnaval", se limitou a dizer. 

'A partir de agora, você é só minha' A Polícia Civil não deu detalhes da vida de Luz para preservar a identidade e integridade da vítima e do filho, que agora estão sob os cuidados de uma rede de assistência às vítimas de violência doméstica. Simone, no entanto, narrou o início da triste história de horror vivida pela jovem, que, à delegada, confessou ter tentado suicídio durante o cárcere.

Luz e William, segundo Simone Moutinho, se conheceram por intermédio de amigos há exatos oito meses e trocaram as primeiras mensagens por WhatsApp. Juntos, foram para a ilha passar um final de semana, onde um primeiro desentendimento afastou o então casal por poucos dias."Começaram a namorar na primeira semana. Só que ao chegar na ilha, brigaram. Ela voltou para Salvador e ele continuou lá por quatro dias. Retornou, procurou ela, que reatou o que já era um namoro. Neste mesmo dia, ele disse a ela: 'A partir de agora você é só minha, e de mais ninguém'. Ela não tinha contato com qualquer pessoa, era privada de tudo", explicou Simone.Luz e o filho eram mantidos presos, cada um em um cômodo, porque, segundo a polícia, o agressor acreditava que, se tivesse acesso à criança, a jovem poderia fugir. A vítima não tinha mais o celular ou qualquer possibilidade de falar com outras pessoas sobre o que passava. As agressões, no entanto, chamaram a atenção de vizinhos da localidade em que o suspeito morava, em Paripe.

A Polícia Civil afirma que Luz e o filho eram levados para lugares diferentes sempre que pessoas percebiam as agressões às quais eram submetidos, diariamente. "Ela me contou que eles se mudavam sempre. Moraram também em outros lugares do Subúrbio, como Vista Alegre. Por último, foi para o Jardim das Margaridas, há pouco mais de um mês", acrescentou. As delegadas Simone Moutinho e Claudenice Mayo (à direita) relataram crime (Foto: Almiro Lopes/CORREIO) Pedido de socorro No tempo que passou sob o mesmo teto em que o algoz, além de fazer sexo e passar por sessões diárias de espancamento, segundo a polícia, a jovem também era impedida de ver o filho. Foi a criança, no entanto, quem livrou a jovem da morte."Ela disse que quando começou a se cortar, ela tem as cicatrizes, ouviu a voz do filho falar 'mãe', e desistiu. Me disse que pensou: 'Meu filho está aqui, é minha razão, precisa de mim. Eu pedi tanto a Deus que me devolvesse à luz'", comentou a delegada.Há dois dias, William acabou deixando o celular próximo a Luz, enquanto carregava. A jovem, que já tinha decorado a senha do aparelho, conseguiu falar com uma amiga pelo aplicativo WhatsApp. Na mensagem, descrita por Simone Moutinho como muito triste, a vítima pede socorro. Luz também encaminhou uma foto em que aparecia "bastante machucada".

Foi quando a mãe da jovem, que já não tinha notícias da filha, e não sabia por onde procurar, foi até a polícia e pediu ajuda. "A mensagem é muito triste. Ela acreditava que ia morrer. Era muito sofrimento, porque ele tinha tesão em bater, em machucar e torturar. Levou muitos socos e pontapés".

Quando foi encontrado por agentes civis, na noite desta quinta-feira (6), William estava próximo ao prédio, com as chaves do apartamento onde as vítimas estavam presas. Ele não resistiu à prisão, embora negue o crime. William está custodiado na Deam de Periperi, onde aguarda para ser submetido, neste sábado (9), à audiência de custódia com o juiz. Ele vai responder pelos crimes de cárcere privado, tortura e lesão corporal contra a mãe e a criança.

'Coisificação das mulheres' Além de dizer que é garçom, William não deu detalhes sobre a vida. De acordo com a Polícia Civil, ele tem passagens por roubo a coletivos, e se relaciona com um homem que está preso por roubo a bancos - com quem chegou a morar, junto com as vítimas. Não há informações sobre há quanto tempo ele mora em Salvador e se responde a crimes no Rio de Janeiro, de onde é natural.    Ao narrar a história de horror vivida pela jovem, a delegada Simone Moutinho afirmou que muitas mulheres são submetidas, todos os dias, às agressões vividas por Luz. Algumas, às vezes, por ainda mais tempo. Histórias como a da estudante Eva Luana, que chegou a engravidar do padrasto cinco vezes, vítima de inúmeros estupros, além de outras violências físicas e psicológicas."É aquela coisa de coisificar a mulher. Vivemos em uma sociedade patriarcal, onde machistas se acham donos de uma coisa e começar a usufruir dessa coisa. William é bastante dissimulado, e ele tem toda consciência de tudo o que fez, sim", considerou.Simone disse, ainda, que um detalhe durante o depoimento do suspeito chamou sua atenção. O fato dele ter afirmado que não é "esse monstro todo". "Ou seja, ele sabe que as coisas que fez são tão horríveis, que relacionou a um monstro". Coordenadora do Departamento de Polícia Metropolitana (Depom), a delegada Claudenice Mayo afirmou que vítimas estão recebendo acompanhamento psicológico.

"Algumas mulheres que tiram da dor e conseguem se libertar. Tantas outras são encarceradas, sofrendo e sendo torturadas. As pessoas que têm conhecimento de violência doméstica precisam se envolver, ajudar a salvar vidas que podem estar caladas. Agora, Luz e a criança estão acolhidas, estão bem, vão recomeçar a vida". 

A delegada disse que histórias como a de Luz, Eva, Isabela, e tantas outras mulheres, devem se tornar públicas. Ela defende que quanto mais as pessoas se envolvem, denunciam, mais mulheres têm a chance de se libertar, "ver a luz" e, quem sabe, estarem vivas no próximo Dia Internacional da Mulher. 

*Luz é o nome fictício que o CORREIO escolheu para se referir à vítima