Ary Rosa e Glenda Nicácio, a dupla que dirige a ascensão do cinema do Recôncavo

‘Trilogia’ é início empolgante de cineastas formados na UFRB; veja como assistir

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  • Da Redação

Publicado em 29 de junho de 2020 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Ary Rosa e Glenda Nicácio criaram a Rosza Filmes, produtora cinematográfica com sede em São Félix (Foto: Divulgação)   Um dos meus sonhos, para um futuro não tão-tão distante, é estudar Cinema na UFRB, o que faz esse texto ter uma ponta de iceberg. Na verdade eu ia dizer ponta de inveja, como você imaginou, mas a analogia daquilo que é grande (au!) escondido sob pequena amostragem é bem mais apropriada ao que está por trás (lá nele!) de três longas (ui!) metragens assinados por uma dupla de cineastas criados na universidade com sede em Cachoeira.

A masculinidade frágil do primeiro parágrafo é idiota e inadequada, mas também fingida e mal encenada, usada aqui de forma estratégica para contrastar com a feminilidade potente deste segundo, representada na figura de Glenda Nicácio, 28, primeira mulher negra a dirigir um longa de ficção no Brasil desde 1983 (e esse dado é escandaloso, como não?), e Ary Rosa, 33, também roteirista dos filmes que trazem temáticas duras como um blocão de gelo, mas submersas em afetos, subjetividades e outras sutilezas.

Tudo isso está dentro dos aclamados e premiados ‘Café com Canela’, ‘Ilha’ e ‘Até o Fim’ - estas duas últimas produções, aliás, novíssimos pretextos para minha manifestação empolgada sobre o trabalho dos dois.

E a boa notícia é que ‘Ilha’ e ‘Até o Fim’, dois filmaços gravados em Ilha Grande, uma pequena ilha de Camamu, no Baixo Sul (embora o cenário intencional seja o Recôncavo), estão disponíveis no YouTube, até 2 de julho, para quem quiser ver, sem pagar nada - faço apelo para que assista, como uma espécie de dever cívico, não à toa com o prazo final na nossa data magna. ‘Café com Canela’ já tá dos tempos na Amazon Prime, que é uma Netflix improvisada.

Sinopses Antes de continuar, é importante você saber do que os filmes tratam. Abaixo vão as sinopses, ligeiramente adaptadas, e os vídeos já embedados, que você vai voltar pra ver depois que ler o texto todo, combinado? 

Café com Canela (2017 | ficção | 100 minutos): “Margarida vive em São Félix, isolada pela dor da perda do filho. Violeta segue a vida em Cachoeira, entre adversidades do dia a dia e traumas do passado. Quando Violeta reencontra Margarida inicia-se um processo de transformação, marcado por visitas, faxinas e cafés com canela, capazes de despertar novos amigos e antigos amores.” 

Ilha (2018 | ficção | 94 minutos): “Emerson quer fazer um filme sobre sua história na Ilha, apenas as partes mais importantes de sua vida naquele lugar, onde quem nasce nunca consegue sair. O plano começa, não há mais limites, afinal, cinema também é jogo.”

Até o Fim (2020 | ficção | 90 minutos): “Geralda está trabalhando em seu quiosque à beira de uma praia no Recôncavo, ela recebe um telefonema do hospital dizendo que seu pai pode morrer a qualquer momento. Ela avisa suas irmãs. O encontro promovido pela espera da morte se torna um momento de desabafo e reconhecimentos das irmãs que não se reúnem desde a morte da mãe, há 15 anos.”

Crítica Chamei os filmes de ‘Trilogia do Recôncavo’ por pura ousadia que, dentro em breve, vai virar erro de cálculo com o lançamento de novas obras da dupla dentro do mesmo espaço/estética. Mas por que os filmes de Glenda e Ary são fodásticos, e por que devem ser assistidos? Com a palavra, meu amigo cineasta Álvaro Andrade, que saiu da Bahia e foi viver em Minas, caminho inverso dos diretores.

“São filmes corajosos, que se arriscam em muitos sentidos, principalmente na forma. Mas ao mesmo tempo não são herméticos, nem apáticos ou distantes. Pelo contrário, são filmes pulsantes, à flor da pele, que não temem o exagero, o brega, então eu poderia dizer que são filmes que também têm uma vocação popular. Juntar tudo isso de modo convincente é difícil, raro, e eu acho que eles conseguem”, analisa Alvinho, que viu de perto quando ‘Café com Canela’ foi ovacionado no Festival de Brasília de 2017. 

Foi uma largada realmente impressionante para a dupla, com direito a Candango de Melhor Roteiro (Ary Rosa) e Melhor Atriz (Valdinéia Soriano), além de Melhor Filme pelo Júri Popular.

Mas hoje, três anos depois, e com bem mais prêmios nacionais e internacionais, como a cena os enxerga? “Os filmes de um modo geral têm sido muito bem recebidos. Quando novos cineastas chamam a atenção, a expectativa é sempre por mais filmes. É uma vontade de ver como aquele olhar irá se desenvolver, se continuará a apostar nas mesmas escolhas, se os filmes manterão o vigor dos primeiros”, torce o crítico de ocasião.

Ary já indica que fôlego não falta. “Mais do que uma trilogia, é uma filmografia do Recôncavo que a gente tá propondo porque, apesar de a gente ter três filmes prontos, estamos editando outro, gravando outro e tá começando a pré-produção de um sexto filme”, explica ele, destacando ainda o papel de outras produtoras associadas e outros realizadores da região de São Félix/Cachoeira que trabalham com intuitos e intentos em comum.  Visão e produção Ok, mas foco na dupla. Glenda e Ary se conheceram em 2010, na primeira turma de Cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), ingressos via Enem/Sisu. De mala e cuia em Cachoeira, passaram a ter uma convivência quase familiar, acelerando a parceria que os motivou, já no ano seguinte, a fundar a Rosza Filmes, empresa por trás das películas aqui propagandeadas e outros projetos. “Já produzimos eventos, nos tornamos produtores, diretores juntos, e acho que é uma irmandade que vai se firmando cada vez mais”, destaca Glenda.

Tão importante quanto a parceria - para chegar longe assim tão cedo - foi a visão de mercado precoce, como explica Ary. “A gente abriu muito cedo a nossa empresa e, quem sabe, isso tenha sido fundamental para a gente conseguir também ser um dos primeiros a conseguir editais maiores, a ter diálogos mais profundos, pensando de uma forma mais institucional. Foi fundamental esse passo que a gente deu”, analisa. 

Vencedores de editais, ‘Café com Canela’ e ‘Ilha’ custaram cerca de R$ 800 mil, cada, e movimentaram as economias locais de Cachoeira e Ilha Grande, com a contratação de atores, figurinistas e técnicos de diversas áreas que moram próximo às locações. (Previsto para final de 2021, o longa do ‘Na Rédea Curta’, com Sulivã Bispo (Mainha) e Thiago Almasy (Júnior), também foi um financiamento público conquistado pela Rosza; as gravações pararam no meio por conta da pandemia, mas voltam).

Já ‘Até o Fim’ foi o primeiro reinvestimento importante da Rosza - dinheiro que sobrou da arrecadação de ‘Café com Canela’ nas salas de cinema e das vendas para TV e streaming -, e foi feito num espaço diminuto, com apenas 11 profissionais na frente e atrás das câmeras.

Representatividade Na frente, aliás, somente atores negros (ou melhor, pretos, como defende Babu Santana, que atua de forma brilhante em ‘Café com Canela’), seguindo a demografia própria de Cachoeira, São Félix ou Muritiba, por exemplo.

“Claro que é uma política a gente só trabalhar com atores negros. Glenda é a segunda mulher negra a gravar um longa de ficção no Brasil desde Adélia Sampaio, em 1984. Entre elas são 33 anos de um vácuo histórico. Por outro lado, como eu posso contar uma história que se passa no Recôncavo, que é a maior concentração de negros no Brasil, se não for através de corpos, de histórias negras? Tem uma escolha política, mas muito óbvia”, sustenta Ary. Glenda e Ary vieram do interior de Minas e se conheceram em 2010, em Cachoeira (Foto: Júnior Aragão/Divulgação)   Também na luta por cada vez mais representação e reparação histórica à população afrodescendente, Glenda lamenta o fato de ela e Adélia serem exceções a uma regra vigente. “Isso é um dado horrível, que machuca mesmo de você parar para pensar assim nas nossas trajetórias enquanto realizadoras, mas enquanto espectadoras também, que cresceram querendo ser vistas, consumindo um tanto de coisa que nunca falava de si, de mim. Fico contente de poder cada vez mais poder participar de festivais, sessões de cinema, cineclubes onde eu encontro espectadoras negras, realizadoras, produtoras negras defendendo seus projetos”.

Foi justamente o impacto que a obra de Glenda e Ary causou numa dessas novas espectadoras negras que acelerou minha vontade de falar sobre o trabalho deles. No Instagram, uma garota comentava admirada sobre ‘Café com Canela’: “Eu acho que a cultura é muito bem marcada ali no filme. Acho que é o primeiro filme que eu vejo grande quantidade de negros”, mapeava a estudante, se dirigindo à sua professora de teatro, a baiana Lua Morkay, que atua num projeto dentro de comunidades pobres da periferia de São Paulo.

No início do ano, Lua se bateu com Glenda, com quem tem amizades em comum, aqui em Salvador, e ambas trocaram figurinhas sobre cinema e ativismo social. A diretora indicou à professora que assistisse ao filme recém-incluído na Amazon.

“Assinei, assisti e comecei a trabalhar, a pensar a cena na aula de teatro. Sempre procuro essas referências, trazendo vozes para a sala de aula, tornando real o diálogo com eles e fazendo com que eles se fortaleçam o tempo inteiro. E aí eu pensei em trazer o cinema da Glenda, adaptar”, explica Lua, que além de exibir o filme para a garotada da Associação Vidas Jovens, conseguiu o roteiro original para estender as discussões.

“Sempre trago referências muito reais para os meus alunos… E o cinema da Glenda e do Ary é um trabalho riquíssimo do ponto de vista estético, político e pedagógico. A maior parte do depoimento dos meus alunos é: 'pró, eu me vi ali naquele filme', 'parecia que tava falando da minha família'. Eu acho que eles se sentem pertencentes a algo que é deles, porque a maioria também é descendente de nordestinos”, pontua Lua.

O desfecho das atividades com ‘Café com Canela’ ainda está por vir. “É um módulo de cinema e teatro. Online vai ter a cena (feita com base no roteiro) e a gente vai finalizar com eles conhecendo a Glenda. Vai rolar um bate-papo deles com ela, que vai falar sobre a obra”, adianta.

De cá, a pró Glenda comemora o impacto da obra. “Acho que é um dos máximos que um filme pode atingir e que talvez seja a vocação dele. É muito bom poder pensar que tem uma geração que vai se ver projeto nas telas e poder projetar seus futuros a partir de histórias mais generosas”, conclui a cineasta, que dentro de alguns anos corre o risco de ser raptada por uma ex-aluna da pró Lua interessada em contar sua própria história.