Caçadores de presentes: oferendas para Iemanjá se tornam artigos disputados

Artigos valiosos oferecidos a Iemanjá são tirados do mar no dia seguinte

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  • Fernanda Santana

Publicado em 3 de fevereiro de 2019 às 12:20

- Atualizado há um ano

Nem tudo são flores. Há também a maquiagem, o espelho, os colares. E também o plástico sobre os objetos que Ricardo retira do mar um dia depois da Festa de Iemanjá, no Rio Vermelho. Cinco anos antes, num passeio pelas areias na manhã de 3 de fevereiro, o vigia encontrou de dinheiro a aliança. “Aí não tem como não voltar, a gente vicia”, conta. (Foto: Fernanda Lima/CORREIO) As ondas trazem de volta à areia presentes e ofensas - as garrafas plásticas, bitucas de cigarro e sandálias, por exemplo. “Bom, dizem que Iemanjá leva, mas não acho que leva. Perfume tem aos montes, dinheiro. Olha lá dentro [aponta para o mar], aquele pontinho branco é um mergulhador tentando encontrar coisa”, afirma Ricardo Souza, 47, de frente para o mar de onde já tirou, inclusive, R$ 200.“Como é que não volta? ”, provoca o vigia.A coleta de presentes valiosos leva à praia os caçadores. É como se uma tradição tivesse surgido. Nem tão religiosa, mas tão antiga quanto às celebrações a Yayá, a rainha do mar. Nas pedras, Luís Marine, 52, veste o equipamento de mergulho e se prepara para o dia de buscas. “Dinheiro já achei muito. Vou deixar estragar é? Não posso”, diz. “Agora, se for assim, uma flor, coisa assim, não vou pegar, é presente”.

Os caçadores iniciam as buscas, geralmente, antes do amanhecer. Não querem correr o risco de os agentes da Limpurb descartarem como resíduo aquilo que, para eles, pode ser não só utilizável, como rentável. Na beirada do mar, colocam numa saca de frutas vazia os garimpos do dia. “Eu já encontrei relógio aqui, vendi. Tem até como ganhar dinheiro”, comenta um dos rastreadores de presentes, com pedido de não ser identificado. 

Ao que parece, a prática nem sempre é tão bem-vinda. Principalmente pelos filhos de orixá. Tirar do mar um presente para Iemanjá é uma ofensa à tradição e à espiritualidade, acreditam. No dia 3 de fevereiro, integrantes de terreiros também vão à praia para entregar novas e secretas oferendas. Quando ouviu da reportagem a prática, Washington Alves Silva, 51, respondeu: “O que colocamos lá [no mar] é de lá. Isso não existe, é feio, não se faz com Iemanjá. Pior ainda para quem pega, que vai atrair uma energia negativa, pois nos presentes estarão arriados também os nossos próprios pedidos”. Pela sustentabilidade Às 6h30 do dia 2 de fevereiro, Patrícia Iglesias chegou à Praia do Rio Vermelho, de canoa. Na volta para a Praia da Preguiça, no Comércio, o remo travava em sacos e garrafas de plástico. Idealizadora do Projeto Praia Limpa Salvador, criado no ano passado, ela decidiu levar a ação de limpeza deste domingo para ali justamente para contribuir na redução da quantidade de lixo. Com ela, um grupo de pelo menos 20 pessoas, todos funcionários do Tecon Salvador, foram às areias do Rio Vermelho retirar os resíduos do dia anterior.“Ouço muita gente dizendo que não tem ação, mas as ações existem [...] Sou devota e o melhor presente para ela [Iemanjá] é esse: a conscientização, o respeito”, declara a diretora comercial.Os voluntários acharam de um tudo: até rosas de plásticos. “Esse aqui não quis colocar nem a flor natural”, brincou Bruno Ambrosi, 36, engenheiro. (Foto: Fernanda Lima/CORREIO) A diferença da ação é tentar diferenciar o que é lixo do que é oferenda.“Quer dizer, a tarefa é repensar como isso [a festa] pode acontecer de maneira mais sustentável. Até porque, o maior problema é sempre o microlixo”, opina Gilberto Robortella, 34, administrador  Na busca pelo respeito à tradição, o grupo se aliou à Colônia de Pescadores do Rio Vermelho. Quem melhor do que eles para lidar com o mar? “Ano passado, demos até premiação para as pessoas que recolhessem mais lixo. Isso é para mostrarmos que o mar precisa ser sustentável“, acredita Marcos Souza, 38, conhecido como Branco. Todos sabem, no entanto, o que não podem tirar do mar. “Não pegamos o que é dela [de Iemanjá] porque não pode”, determina.   

Em 2018, o vencedor foi Antônio Santana, 56. Ganhou, de prêmio, equipamentos de mergulho. “Tem muito vidro, garrafa, já vi isso assim que cheguei, umas 6h”, disse. Neste ano, ele e outros pescadores voltaram ao mar para tirar o lixo de perto de Iemanjá. Saudaram, de um jeito diferente, a Rainha de Mar. 

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro