Cachorros transcendentais

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 27 de maio de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Amaria mais os cachorros se não latissem. Quanto mais finos os latidos – daqueles que trincam cristais – mais intoleráveis são. Por isso o meu amor imorredouro pelos gatos – que, silentes, se ensimesmam nas profundezas mentais e nas enigmáticas vidas interiores que os engendraram, num estoicismo genuíno que cães nunca terão.

[Talvez o latido sempre agressivo e aterrador seja maneira de os cachorros gritarem o horror atávico que sentem de nós, canalhas humanos que lhes somos desde tempos imemoriais].

A única atitude canina que o torna crível como vilão e assassino são os latidos traiçoeiros à queima-roupa – disparados por cérberos de olhos esbugalhados, dispostos a tudo para se vingarem de algo que sofreram no passado, claro, sob a clava algoz de seres ditos humanos.

[Cidades brasileiras desfilam manadas de cachorros abandonados a se esgueirarem pelas ruas, focinhos-enfiados-nos- rabos-uns-dos-outros, esquálidos, latidos sussurrados – apenas desejados por abutres com fome que, em lei da selva sequencial e ecossistêmica, os estripam e os devoram].

Duas outras características dos cães, em oposição aos latires ‘cerberais’, os aproximam mais dos santos e dos poetas. Paremos para apreciar cachorro de rua dormir ao relento da noite fria ou ao sol inclemente filtrado por alguma remelenta marquise de loja. Dormem fétidos, mas plenos, lhanos, íntegros, serenos.

A segunda caraterística canina que o imanta de ar sagrado é um certo olhar. A ponto de eu, ainda aterrado com as possibilidades de selvageria dos latidos dos cães, não sentir desconforto em afirmar:  não há nada mais transcendental que o olhar do cachorro. Domingo, 20 de maio, 2018, compareço a piquenique no amplo quintal da casa de sobrinha + marido + mãe do marido + sobrinhos-netos + respectivas namoradas. Todos radiantes e dispostos a afastar o bode odiento destes tempos sombrios. Os visitantes: eu, o meu irmão e a minha cunhada. À sombra de frondoso pé de acerola, amainamos o calor do veranico tórrido. Também nos aconchegam os três cães da casa: Broa, Sol – vira-latas simpaticíssimos, risonhos e francos – e  Lua – pitbull fêmea, pelo macio e lânguidos olhos cor verde-âmbar.

Lua e eu. Eu e Lua. Flertamos sem exageros, mas com firmeza nos olhares e nas minhas afagadas mancheias no dorso dela e nas lambidas dela nos meus pés: puro êxtase.

[Take do curtíssima-metragem ‘A gênese do trauma’: Noite. Talvez anos 1980. Três da madrugada. Bairro da Graça. Jovem retorna d´alguma festa regada a drogas diversas. Segue pela rua da Graça rumo a uma das muitas casas onde morou nesta Salvadores. Bêbado, se esfrega feito gata no cio nas grades forradas de heras dos casarões à margem da via. Cérbero de grandes proporções entra em cena e lhe dispara latido letal. O jovem não desmaia. Mas mija nas calças. Tremelica feito vara verde. E segue caminho, descompensado].

Desse evento ex-machina herdou toque que dura até hoje. Nunca segue pelas beiradas das casas. Anda nas ruas de todas as cidades do mundo naquele interregno entre a calçada e o asfalto, no limiar do limiar.