Cada vez mais jovens na UTI: perfil de pacientes graves de covid-19 vem mudando

Entre as hipóteses consideradas pelos médicos, estão as novas variantes e a maior chance de inflamação; confira relatos

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  • Thais Borges

Publicado em 6 de março de 2021 às 06:30

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Na mesma madrugada, chegaram dois pacientes na faixa dos 30 anos: um de 32; outro de 34. No último sábado (28), os dois deram entrada no plantão do fisioterapeuta Giovani Assunção, 33 anos, no Hospital Aliança. Sem conseguir respirar direito, precisando receber oxigênio pelas complicações da covid-19. Da emergência, entraram direto para leitos na unidade de terapia semi-intensiva.

Em poucas horas, veio a piora no quadro. Às 8h da manhã do dia seguinte, o paciente de 34 anos,  que estava acompanhado da esposa - também com a doença, mas com sintomas leves -, já tinha sido transferido para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Em casa, a filha do casal, de 14 anos, também tinha testado positivo para o coronavírus. "Nós percebemos um aumento dessa população mais jovem. Pode ser pela maior exposição, pela fragilidade do isolamento. Eles já chegam com dependência de oxigênio e piora na função respiratória muito rápida. E são relativamente poucas comorbidades. Entre os mais novos, a maioria não tem", conta o fisioterapeuta, que trabalha em UTIs há 10 anos. O relato de Giovani é comum entre os profissionais de saúde da linha de frente: a maioria deles já observa que hoje há mais pacientes com menos de 60 anos entre os casos mais graves de covid-19 do que havia até o ano passado, na primeira onda da pandemia. E não se trata só de um aumento proporcional, devido ao número crescente de casos confirmados. Agora, entre os casos graves, há cada vez mais pacientes jovens. 

Essa percepção já começa a dar sinais nos números. Ao CORREIO, algumas unidades de saúde confirmaram que uma mudança de perfil vem acontecendo aos poucos. Só no Hospital Santa Izabel, houve um aumento de 25% de pacientes com idades entre 30 e 59 anos de dezembro para cá, em comparação aos meses de março a novembro. 

O Sistema Hapvida, que administra uma rede de hospitais que inclui o Hospital Teresa de Lisieux, também confirmou essa tendência. Nas UTIs da rede, 65% dos internados têm menos de 60 anos. Nos outros leitos, 84% são ocupados por pacientes com essas idades. 

A Secretaria Municipal de Saúde confirmou o crescimento de jovens entre casos graves. O órgão não divulgou estatísticas, mas o percentual de pacientes com menos de 60 anos internados na rede municipal na última sexta-feira (5) era de 20,9% - 226 dos 1.077. A Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), por sua vez, não identificou mudança no perfil dos pacientes internados.

De certa forma, isso já era esperado - estatísticas de outros estados, como São Paulo, já davam mostras de que poderia acontecer por aqui. Esta semana, o governo paulista confirmou uma inversão: se antes os mais jovens ocupavam 40% das UTIs e 60% das enfermarias, hoje, 60% deles está na UTI. 

Na última quinta-feira (4), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, anunciou uma realidade parecida em seu estado. Em uma UTI de saúde que visitou, apenas dois pacientes internados tinham mais de 60 anos - todos os outros tinham idades entre 24 e 40. 

Com e sem comorbidades Encontrar pacientes com idades próximas sempre foi algo marcante para o fisioterapeuta Giovani Assunção. Só que, antes da pandemia, as situações eram outras - acidentes de carro, por exemplo. Desde o início do ano, porém, não só se tornou algo mais comum, mas também mais preocupante, com o aumento de casos no estado. 

Além do Aliança, Giovani trabalha no Hospital Espanhol desde agosto do ano passado e acredita que o cenário é o mesmo nas duas unidades: o número de pacientes mais jovens com quadros mais graves de covid-19 só aumenta. 

No Espanhol, que faz parte da rede de referência para covid-19, as quatro UTIs que existiam em agosto do ano passado se tornaram oito. Com a equipe de fisioterapia, ele atende diariamente pacientes para compensar a perda de musculatura que pode acontecer, quando são assistidos por ventiladores mecânicos. 

No início da semana, o Espanhol tinha seis pessoas com idades entre 20 e 40 anos na UTI. De 41 a 60, eram 31. Considerando os 88 internados naquela ocasião, 42% tinham até 60 anos. Antes, era raro aparecer alguém na faixa etária dos 20 aos 40, como pondera Giovani.“Eu não tive a covid-19, mas atender esses pacientes tão próximos me deixa assustado, porque é independente de idade e comorbidade”, diz o fisioterapeuta. “Você percebe no semblante que eles também estão assustados. Mesmo com televisão nos quartos, muitos preferem deixar desligada porque, na TV, são muitas notícias de covid-19. Isso assusta”, completa. Na rotina do enfermeiro André Livino, 38, que atua desde o começo da pandemia em uma UTI de covid-19 de um hospital público de Salvador, o crescimento de casos em geral fez com que ele percebesse mais pessoas com idades entre 40 e 50 anos. 

"Antes, se falava que a covid acometia as pessoas mais idosas, mas hoje vem acometendo outras. Não sei se é o grau de virulência, ou a genética do vírus que vem se modificando, ou mesmo a genética das pessoas", avalia. 

Ele ainda lembra do caso de uma paciente com 50 anos que chegou em um de seus plantões. Aparentemente bem, estava lúcida e aguardava em um leito para as suspeitas. No plantão seguinte, ele foi visitá-la. Ela já estava em um leito onde ficam os pacientes com diagnóstico, porém mais cansada. Em termos técnicos, tinha 'rebaixamento de consciência'. No plantão seguinte, a paciente não estava mais lá. Em uma semana, morreu de covid-19. 

"A gente acaba tendo perdas, porque infelizmente o vírus é mais forte nesse momento. Não temos tratamento (específico), não temos nada. Estamos vivendo uma guerra biológica, uma guerra mental, tudo misturado. Nunca pensei que fosse viver isso na minha vida", desabafa. 

Inflamação  No Hospital Santa Izabel, a segunda onda trouxe mais pacientes desde o início deste ano - e veio com mais força em fevereiro. De 1º de dezembro do ano passado até o início deste mês, os pacientes com idades entre 30 e 59 anos eram 20% do total. Só que até novembro de 2020, eles correspondiam a 16%. Essa diferença de quatro pontos indica um aumento de 25% entre os pacientes mais graves nessa faixa etária - seja em UTI, seja em enfermaria, de acordo com o diretor técnico assistencial do Santa Izabel, o infectologista Ricardo Madureira. 

Segundo ele, muitos dos pacientes atendidos lá têm algum fator de risco. "A nossa percepção é de que a maioria tem sobrepeso, obesidade ou diabetes. Os relatos são muito em cima desses grupos de risco", afirma. 

Há algumas hipóteses que poderiam explicar esse aumento, como destaca o infectologista. Uma tem a ver com o surgimento das novas variantes do vírus - como a cepa registrada originalmente em Manaus - consideradas mais transmissíveis. Além disso, outras possibilidades são a da demora ao acesso ao tratamento - hoje, de forma geral, há menos leitos disponíveis nos estados do que no início da pandemia - e a de que doentes jovens produzem mais inflamação. "Quando a gente é agredido por um agente externo, nosso sistema imunológico produz uma defesa que gera uma inflamação no corpo. É como se o indivíduo mais jovem, ao contrário do idoso, produzisse mais inflamação. Isso acaba adoecendo mais o corpo de algumas pessoas e pode gerar necessidade de tratamento por mais tempo. São algumas considerações, mas não dá para afirmar que é uma delas", pondera. Os quadros inflamatórios mais graves também são apontados pelo médico Victor Porfírio, que atua na emergência de covid-19 de dois hospitais de Salvador. Ele afirma que, ainda que os jovens não sejam a maioria entre os graves, muitos atendidos por ele chamam atenção justamente porque não têm fatores de risco. 

"Mesmo sem ter as comorbidades, o processo inflamatório que eles têm leva à necessidade de maior suporte de oxigênio, leito de terapia intensiva. Desde o começo, é falsa essa impressão que muitas pessoas tinham de que o paciente jovem não adoece. Adoece menos, mas o jovem sem comorbidades adoece também", reforça. 

No Hospital Sagrada Família, a médica Nathália Figueirêdo, 38, também tem se deparado com um cenário diferente do que via no começo da pandemia. Se antes, a maioria dos pacientes era idoso, ela já percebe muitos jovens com menos de 45 anos. 

“Os jovens estão se expondo mais por vários motivos. Uns porque não querem mais ficar em casa, estão de saco cheio e vão para a rua à procura de entretenimento, mas muitos desses jovens são trabalhadores e provedores da família. Eles se obrigam a sair de casa pra trabalhar mesmo. Então, tem jovem doente de todo jeito... Uns por descuido, outros porque necessitaram se expor”, avalia. 

Chamados No dia a dia do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), os chamados para pacientes jovens também cresceu. O coordenador de Urgência e Emergência da Secretaria Municipal da Saúde, Ivan Paiva, explica que se antes eles vinham com sintomas leves, agora, é comum que precisem de medidas mais invasivas no atendimento. 

O Samu é responsável tanto pelo encaminhamento de pacientes que não conseguem se deslocar como pela transferência dos internados nos gripários para as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e hospitais. "Agora mesmo, acabei de internar um primo meu com menos de 50 anos, relativamente jovem. Atleta, foi vice-campeão mundial de jet ski. Mas a gente tem percebido que essa nova cepa termina atingindo pessoas mais jovens de forma mais agressiva", alerta Paiva. Essa piora rápida dos pacientes é uma observação comum, entre os profissionais ouvidos pelo CORREIO. Em muitos casos, é o motivo apontado para que jovens saudáveis não resistam à covid-19. Ainda não é possível dizer que houve aumento de mortes entre os mais jovens, mas, só nesta semana, duas instituições de ensino superior lamentaram a morte de estudantes com menos de 35 anos pela covid-19.

Na última quarta-feira (3), a Universidade Federal da Bahia emitiu uma nota de pesar pela morte do estudante de Arquitetura Jailton Almeida dos Santos Barbosa, aos 34 anos. Segundo a instituição, Jailton era um aluno “atento, que contribuía com as aulas  e pesquisas trazendo sempre reflexões repletas de curiosidades e inquietações”. Na terça-feira (2), o Instituto Federal Baiano (IF Baiano) lamentou a morte da estudante Juliana Cardoso Silva, aluna do curso Subsequente em Agroindústria. 

Crianças  Os casos mais agressivos entre os mais jovens têm feito ligar o alerta até das equipes pediátricas. Ainda que não tenha havido um aumento percentual das crianças com sintomas graves de covid-19, os casos que chegam, por si só, são mais graves do que antes, de acordo com o pediatra Risvaldo Varjão, diretor técnico da Liga Álvaro Bahia Contra a Mortalidade Infantil, a entidade mantenedora do Hospital Martagão Gesteira. 

Na unidade, que faz parte da rede de referência para covid-19, o percentual de crianças internadas por covid-19 tem ficado em torno de 9% a 11%, desde o começo da pandemia."Como tem mais gente doente, vai ter mais criança doente. O que temos visto agora é que as crianças em nossas UTIs estão tendo quadros mais graves. Geralmente, eram crianças com comorbidades, mas agora não", diz. Os casos graves incluem necessidade de ventilação mecânica e permanência na UTI por dias. Até o tempo que elas ficam internadas aumentou, ainda que o médico não tenha estimado em quantos dias. Por isso, o Martagão Gesteira já espera um crescimento também dos casos da síndrome multissistêmica pediátrica, que atinge crianças depois da fase aguda da covid-19. 

Pai diz que menina morta por síndrome pós-covid não teve sintomas

"O que podemos supor para essa piora é a chegada dessas novas variantes, mas como a gente não recebe a confirmação de que é nova variante ou não, a gente não pode afirmar. Mas temos observado que elas têm problemas mais graves", reforça. 

‘Sou jovem, saudável, me alimento bem. De repente, fui acometida por um vírus traiçoeiro’

A contadora Joicy Moreira, 35 anos, sempre teve atenção especial com a saúde. Mantinha a alimentação saudável, fazia crossfit cinco vezes por semana. Mesmo sendo asmática, tem a doença controlada há anos. "No ano passado, por exemplo, só tive crise uma vez", lembra. Quando a pandemia chegou, continuou tomando os cuidados em casa. Joicy sempre cuidou da saúde, mas teve uma das formas graves da covid-19 (Foto: Marina Silva/CORREIO) Mas, em fevereiro deste ano, veio o baque. Ela entrou para a estatística da segunda onda da covid-19 no estado. E mais: com comprometimento de 25% dos pulmões, se tornou uma das pacientes jovens que precisou ser hospitalizada em Salvador. Até a última terça-feira (2), esteve internada no Hospital Sagrada Família. "Eu me questionava muito no início, porque sou jovem, saudável, me alimento bem. De repente, fui acometida por um vírus traiçoeiro. Não é uma matemática exata. Você nunca sabe o que vai sentir de fato. Eu sempre me questionava: por que eu, se eu me cuido tanto?", contou Joicy, em entrevista ao CORREIO, na última quinta-feira (5). Começou com uma tosse seca - era uma quarta-feira, dia 17 de fevereiro. Com a mudança de tempo, achou que pudesse ser uma alergia. Mas, no dia seguinte, a dor no corpo fez com que ela entendesse que não era só isso. 

Fez o teste PCR para covid-19 no mesmo dia. No sábado (20), dois dias depois, recebeu o resultado positivo. Naquele dia, já se sentia muito mal. Não conseguia conversar por mais de dois minutos e a dor no corpo fazia com que mal conseguisse andar. Sem olfato, sem paladar e com febre, decidiu ir à Unidade Básica de Saúde do Marback, no Imbuí, para ter uma orientação médica. 

Foi examinada e a equipe constatou que o nível de saturação de oxigênio dela era bom. "Voltei para casa e fiquei me cuidando, sentindo esses sintomas. Mas se eu fizesse um café, ficava cansada como se tivesse feito uma hora de exercícios", explicou. 

No oitavo dia de sintomas, novamente sentiu a moleza no corpo. A febre, de 38,5 graus, não baixava por nada. Com muitas dores e calafrios, voltou à unidade de saúde. Lá, já ficou internada. "Eles passaram alguns exames e disseram que meus pulmões podiam estar comprometidos, mas que era melhor ficar em observação. Só que não tinha vaga. Fiquei numa sala com outra pessoa com covid, numa cadeira, a noite toda". 

No dia seguinte, um médico que assumiu o turno disse que ela poderia ir para casa. Mais tarde, na mesma quinta-feira, ela foi até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) dos Barris, onde fica o gripário. No Marback, estava tão cheio que não conseguia ser atendida. 

"Quando cheguei no gripário, tinha 120 pessoas na minha frente. Mas, graças a Deus, por volta de 1h da manhã de sexta, consegui ser transferida para o Hospital Sagrada Família. Cheguei sentindo falta de ar, mas saturando bem. Foi quando eles descobriram que parte dos meus pulmões estava comprometida", afirmou. 

Completamente isolada, vieram os dias de cuidado no leito clínico do hospital. Era examinada, recebia medicação e fazia exercícios de fisioterapia para garantir a capacidade respiratória. Sem celular e sem ter muito o que fazer, ela ganhou um caderninho da equipe médica para que pudesse escrever seus pensamentos. Além disso, os profissionais de saúde imprimiram caça-palavras para que ela passasse o tempo. A contadora Joicy teve alta na última terça-feira (2) (Foto: Marina Silva/CORREIO) "Depois daquele primeiro momento de questionamento (de se perguntar por que teria adoecido mesmo com os cuidados), a gente vai se transformando. A gente vai se autocurando, porque se não você surta lá dentro. Ao invés de focar nos problemas, você começa a focar nas pequenas conquistas", disse. O medo veio, em alguns momentos, enquanto estava no hospital. No terceiro dia, chegou a chorar de desespero. Mas, como explica, não era o medo da morte. Segundo ela, era o medo do incerto, do que a covid-19 pode trazer para a vida de alguém. 

Joicy não sabe como pegou covid-19. Tinha voltado a trabalhar presencialmente nos últimos meses - ela é servidora da Sesab -, mas, além disso, só saía de casa para fazer atividade física. "Quando a gente é jovem, a gente acha às vezes que pode tudo, mas a gente não pode. Nosso corpo precisa de um tempo. Ele tem um limite e nossa mente é tão acelerada, mas às vezes o corpo não responde. Depois, você começa a ficar alegre pelas pequenas conquistas, como andar sem se cansar", completa. Para ela, a covid-19 mostra que é preciso pensar no coletivo. O individual vem depois. "A gente precisa pensar mais nisso e menos no nosso ego. Nesse momento, tem que esquecer de tudo que antes a gente achava que não podia viver sem. Tem gente que diz que não pode viver sem festa, sem um final de semana na praia. Mas isso é básico. O importante é a saúde de todos". 

'É uma roleta russa. Meu irmão se colocou em risco conscientemente'

No começo da pandemia, toda a família da arquiteta Priscila*, 29 anos, andava muito rígida com as medidas de isolamento social. Os pais dela, que trabalhavam na loja da família, deixaram de ir, enquanto os dois irmãos mais velhos seguiam no trabalho presencial no comércio. 

"Eles estavam bem rigorosos, mas acho que, com o passar do tempo, eles foram perdendo. Foi como se dissessem: 'por que tenho obrigação de sair para trabalhar e não posso sair para um lazer, para algo que vai me fazer bem? Eles sempre questionavam se a vida não ia continuar", lembra. 

Até que, no meio do ano passado, o irmão mais velho, de 40 anos, ficou internado por covid-19. O segundo irmão, Bento*, de 33 anos, chegou a testar positivo na época, mas ficou assintomático. A surpresa veio em fevereiro deste ano: Bento foi internado na UTI, por complicações da covid-19, que contraiu pela segunda vez. Ele ficou em um hospital privado baiano até a última segunda-feira (1º)."Ele ainda mantinha o cuidado público, com o outro, mas por exemplo, a gente trabalha em um escritório sem janela, que não renova o ar. E, no Carnaval, ele viajou. Não sei exatamente para onde foi, porque ele meio que esconde de mim também. Quando voltou, encontrei com ele e estava já sentindo um desconforto na garganta", explica. No dia seguinte, uma quinta-feira, os dois teriam uma reunião de trabalho. Mas o encontro não aconteceu. Com febre, Bento ligou para avisar que estava passando mal e que achava que era covid-19. O teste, naquele mesmo dia, confirmou a suspeita. 

Na segunda-feira seguinte, outro sintoma: na tosse, percebeu que havia sangue. Assim, procurou o hospital. Lá, os médicos chegaram a divergir se ele deveria ir direto para a UTI, por não estar com a saturação do oxigênio baixa. A equipe médica achava que o estado emocional dele, abalado pela doença, poderia contribuir negativamente para a recuperação. "Ele é diabético, obeso e hipertenso e sempre citava um amigo diabético, obeso e hipertenso que ficou assintomático. Dizia que não acreditava que ele teve tudo isso e o amigo não teve nada. Ele ficou bem mal emocionalmente", conta Priscila. Bento não chegou a ser intubado, mas usou uma máscara não reinalante. "É muito sofrido, muito angustiante. Como ele foi para a UTI, a gente não conseguia falar com ele", desabafa a arquiteta.

Mesmo assim, ela diz não ter ficado surpresa quando ele adoeceu e teve uma das formas graves. "Honestamente, é uma roleta russa, independente da comorbidade. Não vejo o vírus escolhendo. Claro que fiquei triste e queria o tempo inteiro que ele melhorasse, mas sabia que ele se colocou em risco conscientemente. Entendo que foi um risco que escolheram correr, porque não foi no contato diário. Foi nos momentos de extravasar mesmo", analisa. 

*Nomes ficíticios 

'Peguei da minha mãe, que tem 60 anos e está bem. É uma loteria'

Os sintomas do assessor jurídico Edson Luis Ping, 37 anos, começaram na segunda-feira da semana passada. Primeiro, veio a dor de cabeça e a dor de garganta. “Pensei logo em covid-19”, conta ele, que conversou, por escrito, com o CORREIO. 

No quinto dia dos sintomas, já não conseguia respirar direito. Foi assim que decidiu procurar atendimento médico. “Fui logo internado e eles perguntaram se eu tinha confirmação de covid-19, porque já iam entrar com antibiótico e corticóide”, diz. Desde então, Edson Luis está internado na enfermaria do Hospital da Cidade. 

Ele pegou o vírus da mãe. Aos 60 anos, ela teve a covid-19, mas de forma leve. Não precisou ser hospitalizada e, hoje, já está bem.“Tive receio, mas não medo. Essa nova cepa veio para varrer quem não pegou ainda. É muito agressiva”, avalia. Para Edson, o coronavírus é uma loteria. “Você pode não ter nada, como pode desenvolver algo grave e o pior: passar para algum familiar. Se cuidem porque, se for para ficar internado, não tem vaga. E não é fácil”, alerta ele, que, ainda que tenha tido melhoras na última semana, ainda não tem previsão de alta. 

'Ela tem 19 anos, saudável e está com 38% dos pulmões comprometidos'

A preocupação da líder indígena Thyara Pataxó, 29 anos, com a prima de 19 anos começou na semana passada. Os sintomas de covid-19 evoluíram rápido: esta semana, na última segunda-feira (1°), uma tomografia indicou o comprometimento de 38% dos pulmões. 

"Ela é uma menina jovem que tem uma filha e vive dentro de casa com um idoso de quase 80 anos, a mãe e o padrasto. A assistente social do polo da Sesai (Secretaria da Saúde Indígena) disse que ela deveria ficar internada, pela situação, mas no hospital mandaram ela voltar para casa e tomar medicamento", explica. A jovem já foi ao hospital quatro vezes, mas não ficou internada em nenhuma delas. 

Thyara e a prima vivem na aldeia Novos Guerreiros, em Porto Seguro. O município foi um dos que decidiu não acatar o lockdown parcial decretado pelo governo do estado no fim de semana passado. "A gente sempre pensa na comorbidade, quando vem de uma pessoa idosa. Mas, por ela ser jovem e estar com esses sintomas, estou muito preocupada e indignada. Aqui, no fim de semana, teve uma quantidade de turistas tão grande que fiquei abismada", diz. A jovem trabalha vendendo brinquedos na praia com a família. Em janeiro, a mãe, o padrasto e o avô dela contraíram a covid-19. Todos só tiveram sintomas leves. "Ela é completamente saudável e faz atividade física na academia. Mas não querem internar porque o médico diz que só com falta de ar grave. Enquanto isso, ela só fala para mim que está com muito medo da situação piorar", diz. 

Em Porto Seguro, a taxa de ocupação dos leitos de UTI era de 80% na última quinta-feira (4), de acordo com a prefeitura da cidade. A assessoria de comunicação da prefeitura não foi localizada para comentar o caso da jovem de 19 anos.