Carbono zero até 2049: Salvador inicia plano para enfrentar mudanças climáticas

Além de anunciar redução de emissões de gases do efeito estufa, prefeitura pretende adaptar cidade e sua população às alterações do clima

Publicado em 15 de janeiro de 2020 às 22:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Max Haack/Secom

A Prefeitura de Salvador estabeleceu uma meta para o aniversário de 500 anos da cidade. Até o ano de 2049, a capital baiana deve zerar a emissão de carbono, afirmou o prefeito ACM Neto durante o evento de início da elaboração do Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima em Salvador, nesta quarta-feira (15), no Teatro Gregório de Mattos.

Esse é apenas um dos objetivos do projeto, que também prevê formas de reduzir a vulnerabilidade da cidade e sua população às alterações do clima.

Com a crise climática, as marés ficam mais altas, a cidade mais quente e as chuvas mais concentradas e fortes. Essas problemáticas devem ser abordadas no plano cuja elaboração é fruto de um investimento de US$ 600 mil, resultado de financiamento do C40 e do BID, a partir do Prodetur.

Com execução prevista de nove meses, o projeto é realizado pelo consórcio formado pela WayCarbon, ICLEI – Governos Locais pela Sustentabilidade e a ONG internacional WWF, além de uma equipe de consultores e do apoio local da Aganju Sustentabilidade.

Segundo o prefeito, é necessário possuir um plano com metas de curto a longo prazo para poder manter o compromisso com a agenda da sustentabilidade nos próximos anos, mesmo após o seu governo. Para isso, Neto aponta que é necessário investimento em várias áreas.

“Garantir a neutralidade de carbono até 2049 é uma meta audaciosa que depende da união do poder público, das instituições, da sociedade e do cidadão. O plano também vai qualificar os quadros da prefeitura para que todas essas metas possam ser perseguidas. Salvador assumiu protagonismo no Brasil na defesa das medidas que possam mitigar e ajudar a adaptar as nossas cidades aos efeitos da mudança do clima que são reais e não podem ser negligenciadas”, afirmou ele.

A capital baiana foi a primeira cidade da América Latina a assumir compromissos com o Pacto Global de Prefeitos pelo Clima e Energia, formado por para implementar políticas e ações para redução das emissões e adaptação das cidades aos efeitos das mudanças climáticas. O plano é uma das ações previstas no pacto. 

O Plano Municipal de Adaptação e Mitigação às Mudanças Climáticas foi fruto da Semana Latino-americana e Caribenha sobre Mudança de Clima e é parte da Estratégia de Resiliência lançada pela prefeitura, em março de 2019.

Mesmo sem ter todas as metas traçadas, o secretário municipal de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência, André Franga, ressalta a necessidade de agir nos segmentos de transporte, energia e resíduos para conseguir neutralizar as emissões de carbono até 2049.“Existem metas de curto, médio e longo prazo para a cidade. Dentre os três setores que mais contribuem nas emissões, o transporte é o principal desafio porque é preciso financiar a mudança da frota, trabalhar por emissão de menos poluente e utilizar apenas veículos elétricos no futuro”, disse o titular da Secis.Do ponto de vista da energia e dos resíduos, o secretário apontou que existem possibilidades de atuar com o incentivo da implantação de micro e minigeração de energia solar fotovoltaica, ampliar a coleta seletiva e reduzir a geração de resíduos, por exemplo. E essas são apenas soluções que existem atualmente, outras inovações podem surgir até 2049 e ajudar Salvador a ser mais sustentável.

Um dos membros da equipe de consultores para o documento, o cientista e climatologista brasileiro, Carlos Nobre, afirmou que a capital baiana sai na frente das demais cidades brasileiras ao tratar as questões ambientais como prioridade. Mesmo com a meta audaciosa, Nobre reconhece que é possível zerar as emissões de gases estufa com políticas públicas e a participação da sociedade.“Muitas metas dependem de políticas públicas e é possível nessa escala de tempo atingir a meta sem perda de qualidade de vida, inclusive, com melhora na saúde. Esse caminho é possível e há experimentos mundiais que comprovam isso”, disse o climatologista.Além do que cabe aos governantes, como a compra de ônibus elétricos e a utilização de fontes de energia renováveis, a população também tem um papel fundamental no plano. “Precisaremos da população, de representantes de entidades e do máximo possível de especialistas e estudiosos, todos envolvidos. Afinal, esse não é um plano da Prefeitura, mas sim uma política que ficará de legado para a cidade”, complementa Fraga.

Nobre apontou que uma decisão individual de mudar seu estilo de vida pode ter um grande impacto se tomada por muitos soteropolitanos. O climatologista explicou que optar por uma dieta mais saudável e com menos emissão, como uma alimentação com menos carne, é uma das ações que pode ser tomada pela população. “O papel das populações é muito importante para lutar para a adaptação das mudanças climáticas”, afirmou.

“Salvador é uma cidade costeira. Por isso, já tem que se preocupar com o nível do mar que está aumentando, as ressacas se tornando mais fortes, as ondas de calor e os eventos extremos que causam estragos em Salvador. O clima está mudando e a cidade precisa se adaptar a essas mudanças”, conclui Nobre.

Ao todo, serão realizados 15 eventos voltados para a divulgação de informações e engajamento ao plano. Na programação do encontro desta quarta também foram realizadas reuniões técnicas paralelas para instituições convidadas. O calendário com os demais eventos que serão realizados ao longo do ano será divulgado posteriormente. Climatologista Carlos Nobre participa da elaboração do plano municipal (Divulgação) Entrevista com Carlos Nobre O climatologista brasileiro, Carlos Nobre, compõe o time de especialistas que vai elaborar o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima em Salvador. Em entrevista ao CORREIO, Nobre comenta os desafios para a meta de zerar o carbono na capital baiana até 2049, além do papel que cabe ao governo e a cada um de nós no caminho de redução da crise climática. Confira a seguir:

Quais os impactos das mudanças climáticas que já são perceptíveis em Salvador?

No Brasil como um todo e em Salvador não é diferente, a gente começa a perceber uma mudança do padrão. Não que uma chuva fora da época ou uma chuva intensa nunca tivesse ocorrido, mas esse evento começa a acontecer com mais regularidade e mais intensidade. Era algo que acontecia uma vez a cada 20 anos e agora ocorre uma vez a cada dois anos. Isso já é um sinal das mudanças climáticas. Os extremos de chuva e de seca acontecem com mais frequência. 

Para além dos problemas causados pelas chuvas com uma frequência cada vez maior, o que mais é fruto da crise climática?

Em 100 anos, o nível do mar aumentou cerca de 20 a 25 cm na costa dessa parte da Bahia. É um fenômeno lento, mas é real. Então, ele tem que ser levado em consideração. As taxas de aumento do nível do mar têm se acelerado muito nos últimos 20 anos e as projeções, mesmo com sucesso no acordo de Paris, estão entre um aumento do nível do mar de 80 centímetros a um metro até o final do século. Por isso, uma política de adaptação de uma cidade costeira, como Salvador, tem que levar isso em consideração. Quando o aumento do nível do mar não é levado em conta, você começa a ter uma série de problemas em ocupar espaço. O planejamento urbano de uma cidade recebendo os impactos das mudanças climáticas tem que levar em consideração as projeções e buscar adaptação para essas mudanças climáticas já projetadas, principalmente, o aumento da frequência dos extremos climáticos.

Como a população da cidade sofre com os extremos climáticos e como os soteropolitanos podem agir para mitigar ou se adaptar às mudanças no clima?

Lentamente, mas pode se perceber, com o clima ficando mais quente, o pico das temperaturas de ondas de calor aumentam e isso é muito perceptivo no sistema de saúde. Como Salvador já é uma cidade tropical, do lado do oceano e muito úmida, as ondas de calor que ocorrem com muito mais frequência aumentam demais o número de internações por doenças respiratórias e doenças cardiovasculares, principalmente, dos idosos e de bebês. Esses extremos também diminuem a produtividade do trabalho. A redução das emissões passa muito por uma decisão individual, familiar e coletiva de mudar a vida. Para que a nossa pegada de carbono mude muito ou zere, é possível usar biocombustíveis no transporte, energia renovável, como optar por energia solar e eólica. Mudanças nos hábitos alimentares para uma dieta não só mais saudável, mas com menos emissão, como a redução do consumo de carne, também são importantes. Do ponto de vista da adaptação, as pessoas devem entender os impactos e têm que ter participação nas ações. Um exemplo é a necessidade de ter mais cuidado com os extremos climáticos com a proteção adequada.

A meta de zerar as emissões de carbono até 2049 é muito audaciosa? O que pode auxiliar a prefeitura na busca por uma cidade mais sustentável?

A meta é simbólica e histórica. Zerar as emissões do gás do efeitos estufa até 2049 é possível, muitas cidades do mundo assumiram esse compromisso, mas tem que ter uma política pública, como um plano de longo prazo de eletrificação da frota de transporte para reduzir as emissões e melhorar a qualidade do ar. Muitas metas dependem de políticas públicas como energia e transporte. Com as melhorias, se diminui o risco do aquecimento global, melhora a qualidade de vida e saúde. Com o ambiente mais preservado, se houver restauração florestal no ambiente urbano, é possível diminuir a temperatura, os desastres naturais e melhorar qualidade do ar. Se Salvador honrar o compromisso em zerar as emissões até 2049, beneficia a todos.

Qual é a diferença entre a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas?

Mitigação é um termo técnico que é sinônimo de atenuação e isso tem como principal ferramenta reduzir emissões. Isso pode ser feito com a redução da queima de combustíveis fósseis, das emissões da agricultura e do desmatamento ou com a retirada do gás carbônico, cuja forma melhor de se fazer é com o crescimento de árvores. Isso é mitigação. Já a adaptação é tornar a sociedade, as atividades econômicas, a natureza, a biodiversidade e nós mesmos menos vulneráveis aos impactos da mudanças climáticas. É por exemplo, se tem mais extremo de chuva, tem que construir proteção contra os desastres, tirar as pessoas de áreas de risco, revegetar. Essas são medidas de reduzir a vulnerabilidade à mudança climática que já acontece e ainda vai acontecer.

Para conseguir atingir as metas do plano é preciso fazer grandes mudanças. Você acredita que é possível que a prefeitura enfrenta resistência para aplicar o projeto?

Redução das emissões e adaptação são igualmente importantes, não existe uma sem a outra. As duas devem ser perseguidas. Para uma cidade chegar nas duas dimensões tem que vencer uma série de resistência como aspectos culturais, com o incentivo de dietas saudáveis com uma menor pegada de carbono, também é preciso haver uma mudança no transporte público. Mudanças de comportamento muito importantes e o sistema educacional é de extremo valor para isso. Existem outras alterações que são muito mais difíceis, como a disciplina sobre o uso da terra em zonas costeiras com o aumento do nível do mar, que tem aspectos muito arraigados em todos os lugares. Apesar de ser complicado, esses obstáculos têm que ser atacados para os impactos não prejudicarem a médio e longo prazo a cidade, inclusive a economia.

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.