Cenas de crimes e histórias reais inspiram jornalista baiana em livro de contos

Mariana Paiva escreve sobre violência, invisibilidade social, feminicídio e amor em primeiro livro de microcontos: Canto da Rua

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  • Laura Fernades

Publicado em 4 de fevereiro de 2017 às 06:15

- Atualizado há um ano

A jornalista e escritora Mariana Paiva apresenta o primeiro livro de microcontos: Canto da Rua(Foto: Iracema Chequer/Divulgação)Na infância, quando passeava,  com seus pais e tios, na entrega voluntária de mingau, pão e sopa pelas ruas de Salvador, a escritora e jornalista Mariana Paiva, 33 anos, não deixava escapar nenhum detalhe ao seu redor. Observava tudo. Em um desses passeios, conheceu Bileu, um menino de rua da sua idade, “que ficava ali pela Fonte Nova, sempre no mesmo lugar, porque tinha o dia certo do mingau”, lembra Mariana.

Anos depois, já formada e com passagem pelos principais jornais de Salvador, a jornalista baiana foi chamada para uma pauta de polícia. “Mais uma morte”, pensou Mariana, até ouvir o pai da vítima dizer o apelido do filho que morreu: Bileu. “Meu Deus, Bileu! Foi aí que eu lembrei”, revela a jornalista, ao telefone, enquanto resgata a história que deu origem a um dos 80 microcontos que compõem seu novo livro, Canto da Rua (Penalux | R$ 32 | 108 páginas).

“O pai me explicou, do lado de dentro da grade do estádio de futebol, onde a família vivia: dois homens chegaram numa moto e atiraram. A dor da gente às vezes sai no jornal”, diz um trecho do microconto que abre Canto da Rua e dá o tom do que o leitor vai encontrar no livro. São histórias curtas - como se cada uma fosse um lead (parágrafo principal da notícia) -, que não terminam com um ponto final e, por isso, provocam a imaginação curiosa a extrapolar os pequenos textos.

Assim como Bileu, outros personagens reais pescados das ruas inspiraram a primeira obra de microcontos de Mariana, que sucede a biografia Damário da Cruz: Um Homem, Uma Surpresa (Edições ABL, 2015), o livro de poemas Lavanda (Kalango, 2014) e o de minicrônicas Barroca (P55). A apresentação fica a cargo do escritor e jornalista cearense Xico Sá e a ilustração é da tatuadora baiana radicada em São Paulo Carol Miag.Personagens das ruas povoam o livro, que tem ilustrações de Carol Miag(Ilustração de Carol Miag/Divulgação)“A primeira história resume bastante o espírito do livro: Bileu é mais um jovem negro assassinado na cidade grande, mais uma vítima do sistema que a gente vive. Qual é a importância do Bileu? Todas essas pessoas existem, a despeito de uma sociedade que não quer. Essa vida está ali, pulsando todo o tempo nas ruas, nos barracos, nas páginas policiais”, destaca Mariana, doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp.

A relação do indivíduo com a rua é difícil, ressalta a autora, porque, “ao mesmo tempo que acha que tem direito à rua, tem medo”. Mas foi justamente a experiência de entregar mingau ainda criança que fez Mariana querer conhecer as histórias que fervilham na cidade. “Várias histórias foram colhidas nesse período, porque foi quando aprendi a gostar de gente, a não ter medo de gente. Muito disso vem da minha infância, de acompanhar meus pais e os amigos nesse grupo”, completa.

InvisívelCenas de crimes, quartos de hotéis, táxis, pontos de ônibus, seção de laticínios do mercado e outros cantos da cidade grande rendem boas histórias para Mariana Paiva que, em seu quarto livro, passeia por temas como violência, invisibilidade social, feminicídio e amor.

Entre outras tramas que aparecem no livro  estão a de um taxista que não faz corrida para o cemitério onde enterrou a esposa; a de uma mulher estrangulada com o fio de um ferro de passar roupa; a de um travesti chamado Paloma; a do menino de rua que sempre pedia “curative” e a de uma mulher agredida pelo próprio namorado.

“Você, leitor, mesmo que vira-lata como os relatos arruaceiros de Mariana Paiva, não saberá o desfecho a essa altura. Que livro para nos deixar vivos e paudurescentes! O poder da rua, a liberdade mesmo para os que cismam e temem estar no mundo. Viver não é para dublê de corpo. A alma cobra a tua presença”, elogia Xico Sá na apresentação de Canto da Rua.Crimes reais inspiraram o livro Canto da Rua, de Mariana Paiva(Ilustração de Carol Miag/Divulgação)O principal objetivo do livro, diz a autora, é trazer à tona o sujeito invisibilizado e deixar de invisibilizar a violência contra as mulheres. “A mulher estrangulada é real, acompanhei  a história para um jornal. Por trás daquela morte, daquilo que parece seco, tem muita vida”, reflete Mariana.

Assim, a maioria das histórias é real, com elementos pontuais de ficção misturados às experiências vividas pela autora, ou contadas por outros. Acostumada com a poesia, Mariana garante que Canto da Rua é bem diferente dos trabalhos anteriores e revela que teve medo de escrever um livro duro demais. “Por isso meu tom de lirismo está presente, fazendo com que poesia e ficção trabalhem para que essas pessoas deixem de ser invisíveis”, afirma.

Com um livro de poesia quase pronto e previsto para este ano, chamado Brilho Antigo, Mariana conta que está escrevendo um romance sobre a saudade que sente de Salvador. Faz dois anos que se mudou para Campinas para estudar, mas o amor por sua cidade só fez aumentar. “Sempre fui muito apaixonada por Salvador. Sou colorida, falo alto, sou filha de Iemanjá, adoro acarajé, tenho todos os estereótipos de uma baiana”, ri.

“Leonina com ascendente em sagitário” - faz questão de frisar -, Mariana sempre acreditou em contar histórias. “Nosso desafio – e da arte contemporânea também – é resgatar esse humano. A gente precisa disso, em qualquer esfera. Canto da Rua é uma clara tomada de posição: não quero esquecer das pessoas”, confessa.